Erros e Acertos de “Boa Vontade
Mundial”
Carlos
Cardoso Aveline
Os Himalaias, em obra de Nicholas Roerich
Estudante A:
Quais são as diferenças e semelhanças entre a teosofia clássica e a proposta de ação dos seguidores de Alice Bailey?
Estudante B:
O modo como devemos olhar para os empreendimentos humanos voltados para a fraternidade universal deve incluir tanto o espírito crítico como um voto de confiança no processo de aprendizado destes empreendimentos, que não ocorre de repente. Há aspectos positivos e negativos no movimento criado por Alice Bailey. Na média, a sua ação tem um caráter humanitário que é útil à evolução humana e estimula a consciência planetária. Os erros que vamos assinalar a seguir, como os equívocos que vemos na Sociedade Teosófica de Adyar, são pontos que podem e devem ser corrigidos.
A obra escrita de A. Bailey toma como alicerce e ponto de partida as afirmativas imaginárias feitas anteriormente sobre os Mestres de Sabedoria por Charles Leadbeater e Annie Besant. A teosofia folclórica de Adyar construiu um credo de adoração a Mestres amplamente imaginários. Bailey tomou esta literatura e esta construção “teológica” como seu ponto de largada.
Fogos-de-artifício não substituem sabedoria. Bailey constrói uma ampla rede de detalhes pessoais e de informações imaginárias sobre os Mestres, sua aparência física, suas atividades, suas casas físicas e outros temas de profunda irrelevância. Isto tudo tem como resultado prático desviar o foco mental do estudante para longe do que interessa, que é a substância da filosofia esotérica dada pelos Mahatmas à humanidade.
Seguindo as pegadas de Charles Leadbeater e Annie Besant, Bailey constrói um complicado organograma convencional da “hierarquia”, ou comunidade dos Iniciados, com “cargos” específicos para cada Mestre. Generosamente, ela cria alguns postos “mais importantes” para certos Mestres, em relação aos postos igualmente imaginários que eles já haviam “recebido” de Leadbeater e Besant. O organograma da “hierarquia” parece tão burocrático e compartimentado como a estrutura de qualquer conglomerado financeiro e multinacional do mundo de hoje. Talvez mais. Esta tentativa de transformar os grandes instrutores da humanidade em “personalidades famosas”, diretores executivos e ídolos pop torna ainda mais atual um versículo do velho “Tao Te King” chinês, segundo o qual, no que tange a certas coisas do mundo sagrado, sobre as quais pesam votos de silêncio -
“Quem fala não sabe, quem sabe não fala.” (Capítulo 56)
Já se disse que foi o homem que criou Deus à sua própria semelhança, e não o contrário. Alice Bailey parece haver criado os Mestres segundo sua própria imaginação. Ela inclui em seu organograma, por exemplo, um certo “Mestre Saint-Germain” – que já havia sido inventado antes por Charles Leadbeater e descrito como “senhor do sétimo raio”. É conveniente lembrar que os detalhes folclóricos sobre os sete raios não pertencem à teosofia autêntica. Quanto ao grande místico e iniciado Saint-Germain, a informação sobre ele nas Cartas dos Mahatmas aponta na direção de ele haver-se retirado para os Himalaias, ao final da sua experiência europeia do século 18. Na ocasião, diz um Mahatma, ele fez sua “última saída, para o LAR” (Carta 20 da edição brasileira).
Estudante A:
Você está dizendo que H. P. B. jamais falou de “Mestre Saint-Germain”? Tudo o que se fala sobre este tal “Mestre” foi então inventado por Besant e Leadbeater e depois adotado por Bailey e outros?
Estudante B:
Precisamente. Nem H.P.B., nem Damodar Mavalankar, nem Henry Olcott, nem William Judge ou qualquer um dos pioneiros do movimento falou jamais de Saint-Germain como um Mestre ou disse qualquer coisa sobre ele que se referisse a um período posterior a seu “último adeus”. O mesmo se aplica a Isabel Cooper-Oakley, que escreveu um livro famoso sobre ele. Tudo foi fabricado durante o conhecido período de fantasias clarividentes em Adyar (1900-1934).
Estudante A:
Certo. Continue, por favor.
Estudante B:
Quando um sábio apareceu na Europa usando o nome de “Saint-Germain”, tratava-se de um iniciado, mas não de um Mahatma. Ao inventar a versão segundo a qual aquele sábio era no século vinte um Mestre, Leadbeater esqueceu de fabricar para o “novo Mestre” um nome que correspondesse à sua nova encarnação. Tanto “Rakoczy” como “Saint-Germain” são nomes que correspondem à encarnação do século 18, quando ele não havia alcançado a libertação da roda do renascimento, isto é, o adeptado, e só por isso podia interferir diretamente em assuntos externos do mundo, como fez. Um Mestre nunca interfere com o mundo, mas apenas inspira - em planos sutis de consciência - discípulos autônomos cuja meta é servir a humanidade. Não sendo Mestre, o místico teria que renascer, isto é, ter outra encarnação.
Estudante A:
Você disse no início do diálogo que havia aspectos positivos no movimento de Alice Bailey. Mas se a obra dela é tão fantasiosa, que aspectos positivos pode haver no trabalho da Escola Arcana e do movimento “Boa Vontade Mundial”?
Estudante B:
A força das boas intenções pode ser maior que as limitações conceituais de qualquer pessoa. O resultado prático de qualquer proposta de ação altruísta e humanitária depende da relação viva entre dois fatores fundamentais, entre outros:
1) Nível de clareza conceitual e
2) Nível de altruísmo e generosidade na motivação.
Você pode conhecer pessoas que são católicas romanas, cujo esquema conceitual e referencial é portanto imensamente mais limitado que o dos seguidores de Bailey, e perceber que tais pessoas fazem um excelente trabalho humanitário e útil em muitos aspectos, e que possuem uma mente aberta.
Por outro lado, você pode ter um erudito na mais pura teosofia, alguém que memorizou belos textos e os repete de memória sem esforço, mas cujo orgulho intelectual ou ambição espiritual impedem toda ação solidária. No caso da Escola Arcana e do movimento Boa Vontade Mundial, você vê um esquema conceitual e referencial limitado. Mas também vê que a motivação e a vontade ativa compensam em parte este problema. É claro que devemos procurar o melhor possível nos dois fatores: clareza conceitual e pureza de altruísmo. Mas um coração puro pode ir além dos limites conceituais. Se for possível voltar agora à avaliação dos erros...
Estudante A:
Perdão.
Estudante B:
Outra limitação do pensamento de Alice Bailey é que, movida por sua imaginação bem- intencionada, ela transformou um velho místico tibetano do século 19, o sr. D. K. - um discípulo avançado, cem por cento oriental - em um “Mestre de Sabedoria” pessoalmente encarregado de dirigir a grande aventura messiânica cristã e ocidental imaginada modestamente por ela própria no século vinte.
Esta aventura messiânica, aliás, foi uma repetição não muito original da tentativa da Sociedade de Adyar de produzir o Cristo e Messias através do jovem Jiddu Krishnamurti. O fracasso da “Operação Krishnamurti” é bem conhecido. Já o “Cristo” anunciado por Alice Bailey sequer chegou a ser oficialmente apresentado ao mundo. O projeto parece ter sido discretamente arquivado algum tempo atrás pelos seguidores de Bailey.
Haveria lições úteis a tirar do fracasso da tentativa, se fosse feita uma avaliação franca e transparente. Uma delas é que devemos deixar de lado as especulações sobre contatos pessoais com os Mestres.
O contato ostensivo deles com a humanidade ocorreu entre 1875 e 1891, preparando a era de Aquário. Aquele contato direto, através principalmente de H. P. Blavatsky, constituiu uma exceção à regra geral, segundo a qual eles trabalham em silêncio. O produto do esforço foi mais do que suficiente. Cabe a nós, agora, estudar e vivenciar o ensinamento dado por eles à humanidade. O contato com os Mahatmas e Iniciados existe hoje como sempre houve, e é não-verbal e não-visual. Ocorre nos planos superiores de consciência, conforme esclarecido na última carta mandada pelos Mestres, a carta de 1900. Aquela mensagem parece corresponder ao fechamento oficial dos contatos, e foi recebida no ano e no mês do início da nova era de Aquário.
Estudante A:
Em resumo, então?
Estudante B:
Resumindo, não se pode pensar que o movimento dos seguidores de Alice Bailey seja teosófico. Nem que ele tenha qualquer precisão ou autenticidade em termos de aspiração ao discipulado. Levá-lo a sério como proposta de caminho espiritual propriamente dito seria uma ingenuidade desaconselhável. Mas é um trabalho humanitário digno de respeito e consideração. Cabe deixar de lado as suas ilusões sobre discipulado, a sua invenção do mestre “Tibetano” e os seus contatos, ingenuamente imaginários, com Mestres que realmente existem.
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Uma versão inicial do texto acima foi publicada de modo anônimo na edição de maio de 2008 do boletim “O Teosofista”. O artigo foi publicado como texto independente em julho de 2015 e atualizado em setembro de 2024.
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Leia mais:
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Sobre o mistério do despertar individual
para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos
Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014
por “The Aquarian Theosophist”.
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