21 de fevereiro de 2016

A Sabedoria dos Poetas

Filosofia Esotérica em Forma de Versos

Carlos Cardoso Aveline



Desde a mais remota antiguidade, a literatura oral utilizou versos e lendas para transmitir de geração em geração a sabedoria espiritual acumulada. 

Os versos ritmados facilitavam a memorização do ensinamento. Assim eram abordados a vida, a morte, o amor, a guerra, o absoluto - e o universo. Poetas de todos os povos e tempos mergulham na  fonte de sabedoria que está acima da mente consciente.  Dali eles trazem para o mundo visível  ritmos, estruturas,  mantras, imagens cósmicas e padrões vibratórios que elevam o foco da consciência humana.

Algumas poesias são verdadeiros tratados sobre a caminhada espiritual. As escrituras das grandes religiões incluem poemas. Entre os sábios que usaram versos estão Jalaludin Rumi, Kabir, São João da Cruz, São Francisco de Assis, Lao-Tzu e inúmeros outros místicos budistas, cristãos, taoistas, islamistas, judeus ou hinduístas. Centenas de poetas têm expressado lições da sabedoria universal. Entre eles, William Wordsworth, Alfred Tennyson,  Christina Rossetti, Walt Whitman, Jorge Luis Borges,  Rabindranath Tagore e a brasileira Cora Coralina.

Vejamos, por exemplo, o modo como o poeta  Mário Quintana (1906-1994) aborda o tema da morte. Com imagens fortes e versos vigorosos, Quintana  não só sugere a possibilidade da reencarnação, mas também  faz com que aceitemos em paz a nossa  fragilidade física, revelando de modo certeiro nossa imortalidade essencial:

Da primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada ...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz,  trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca! [1] 

A consciência de que estamos de passagem no mundo ensina que a vida deve ser administrada corretamente. É aconselhável vencer a  preguiça. A lição é simples, quase óbvia, mas ainda assim  aprendê-la é difícil.  Os sábios usam o seu tempo de vida para conhecer a si mesmos e ao cosmo em níveis cada vez mais elevados. Para eles, morrer é um ato que faz parte da vida.

Quem morre a cada instante para o passado é capaz de renascer a todo momento para a vida eterna. No seu livro Viagem a Ixtlán, Carlos Castaneda diz que a morte é  conselheira do guerreiro espiritual. E há um poema em que Mário Quintana fala da morte, ou transcendência, como sua amiga pessoal:

Minha morte nasceu quando eu nasci.
Despertou, balbuciou, cresceu comigo...
E dançamos de roda ao lugar amigo
Na pequenina rua em que vivi.

Já não tem mais nada daquele jeito antigo
De rir e que, ai de mim, também perdi!
Mas inda agora a estou sentindo aqui,
Grave e boa, a escutar o que lhe digo:

Tu que és a minha doce Prometida,
Nem sei quando serão as nossas bodas,
Se hoje mesmo... ou no fim de uma longa vida...

E as horas lá se vão, loucas ou tristes ...
Mas é tão bom, em meio às horas todas,
Pensar em ti ... saber que tu existes! [2] 

A cada morte corresponde um renascimento. O tema da reencarnação aparece com clareza na poesia de Olavo Bilac (1865-1918). Para ele, também, a evolução do nosso espírito imortal não ocorre em uma única vida. Diz Bilac: 

Outras almas talvez já foram tuas:
Viveste em outros mundos ... De maneira
Que em misteriosas dúvidas flutuas,
Vida, de vidas múltiplas herdeira!

Servo da gleba, escravo das charruas,
Foste, ou soldado errante na sangueira,
Ou mendigo de rojo pela ruas,
Ou mártir na tortura e na fogueira...

Por isso, arquejas num pavor sem nome,
Num luto sem razão: velhos gemidos,
Angústias ancestrais de sede e fome,

Dores grandevas, seculares prantos,
Desesperos talvez de heróis vencidos,
Humilhações de vítimas e santos ... [3]  

“Sangueira”, por onde vai o soldado errante, é a batalha, o derramamento de sangue.  “Dores grandevas” são dores que duram  tempos imensos.

Os bons poetas têm saudade do que é eterno.  Sentem-se exilados no tipo miúdo de espaço-e-tempo em que vive o mortal comum,  com seus dias de semana, sua pressa, seu tempo contado em minutos. O poeta prefere  os grandes temas da filosofia esotérica. A teosofia ensina que existe o Devachan,  um “local” divino entre uma existência terrestre e outra.  O Devachan é  um longo sonho abençoado que dura milênios. É um estado de espírito elevado. Nele, a alma imortal do indivíduo recorda e vivencia, durante uma pequena eternidade, o que houve de melhor e de mais espiritual em sua vida passada. A alma só sai do Devachan no  momento de preparar-se para voltar ao mundo, descansada e purificada,  e viver mais um período de aprendizado ativo.

O Devachan corresponde aos Campos Elísios da tradição greco-romana,  à  Terra Pura do budismo japonês e à  Terra Sem Males dos índios tupi. Helena Blavatsky disse que o Devachan tem certa similaridade simbólica com o céu da tradição cristã. 

Olavo Bilac não só escreveu um longo poema dedicado a Gautama Buda,  mas também   compôs inúmeros versos carregados de sabedoria espiritual. E há um poema de Bilac em que o poeta -  cansado dos sofrimentos do mundo - parece sentir, claramente,  saudades do Devachan. 

Diz Bilac: 

Quem o encanto dirá destas noites de estio?
Corre de estrela em estrela um leve calafrio
Há queixas doces no ar... Eu, recolhido e só,
Ergo o sonho da terra, ergo a fronte do pó,
Para purificar o coração manchado,
Cheio de ódio, de fel, de angústia e de pecado...

Que esquisita saudade! - Uma lembrança estranha
De ter vivido já no alto de uma montanha,
Tão alta, que tocava o céu... Belo país,
Onde, em perpétuo sonho, eu vivia feliz,
Livre da ingratidão, livre da indiferença,
No seio maternal da Ilusão e da Crença!

Que inexorável mão, sem piedade, cativo,
Estrelas, me encerrou no cárcere em que vivo?
Louco, em vão, do profundo horror deste atascal,
Bracejo, e penso em vão, para fugir do mal!
Por que, para uma ignota e longínqua paragem,
Astros, não me levais nesta eterna viagem?

Ah! Quem pode saber de que outras vidas veio?
Quantas vezes, fitando a Via-Láctea, creio
Todo o mistério ver aberto ao meu olhar!
Tremo... e cuido sentir dentro de mim pesar
Uma alma alheia, uma alma em minha alma escondida
- O cadáver  de alguém de quem carrego a vida ...  [4]

Além de Mário Quintana e Olavo Bilac, o tema da reencarnação aparece na obra de outro grande poeta  brasileiro, o mineiro Augusto de Lima (1859-1934). [5]   

Sobre o mesmo tema, o pensador paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914) escreveu no poema “Dolências”:

Eu fui cadáver, antes de viver!....
- Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo,
Sofreu o que olhos de homem não têm visto
E olhos de fera não puderam ver!

Acostumei-me, assim, pois, a sofrer
E acostumado a assim sofrer, existo...
Existo! ... - E apesar disto, apesar disto
Inda cadáver hei também de ser!

Quando eu morrer de novo, amigos, quando
Eu, de saudades me despedaçando,
De novo, triste e sem cantar, morrer,
Nada se altere em sua marcha infinda
- O tamarindo reverdeça ainda,
A lua continue sempre a nascer! [6]

O místico e o poeta necessitam de sossego.

Ninguém desenvolve uma visão profunda da vida se não viver de modo calmo e pacífico.  Só quem se afasta da praia agitada da mente superficial pode, de fato,  navegar no oceano da sabedoria.  Por isso o poeta inglês Alexander Pope  escreveu, no século 18,  sua “Ode à Solidão”, um  hino à simplicidade voluntária. Mesmo perdendo  a musicalidade das palavras inglesas, traduzo a seguir os versos do poema:    

Feliz quem limita seus desejos e atividades
aos poucos  hectares paternos,
contente de respirar o ar nativo
em suas próprias terras.
Lá o gado dá o leite, os campos fornecem o pão,
as ovelhas possibilitam o traje;
as árvores lhe dão sombra no verão, 
e lhe garantem fogo no inverno.

Abençoado quem vê sem preocupação 
os dias e as noites passarem;
com saúde no corpo, e  a mente em paz;
em sossego de dia,
e com sono profundo à noite;  estudo
e descanso combinados; doce lazer;
e com inocência, que se adapta melhor
à meditação.

Que eu viva assim, desconhecido, esquecido;
que  eu morra assim, sem ser lamentado,
longe do mundo;
e que nem sequer uma pedra diga
onde fica o meu local de descanso.  [7]

A simplicidade voluntária e a aceitação dos limites naturais da vida nos tornam mais capazes de perceber a beleza ilimitada do mundo.

A indiferença diante de dor e prazer pessoais nos livra de ilusões e revela a fonte da satisfação eterna. 

A teosofista inglesa Ianthe Hoskins mostrou em um poema que só sendo forte alguém pode ser sábio, e assim andar sem  muletas.  Traduzo:

Não há um caminho para mim, nenhum Deus, guia nenhum.
Afasto-me de luzes e de mãos que dão indicações.
Não tenho espada nem bengala - ou amigo - a meu lado.
Sem companheiros ou armas, busco um lugar que desconheço.

Com os dedos feridos, os pés sangrando,
Avanço solitariamente. A meu redor e diante de mim
Ataca-me um inimigo após o outro, e eu os cumprimento a todos,
Como amigos que me levarão ao local por conhecer. 

Não me dê conselho, não ofereça ajuda.
Não há estrela em minha noite impenetrável.
É em solidão e sem mais ninguém que devo fazer a viagem
Desde a escuridão daqui até a Luz de mais além.

Deste modo o peregrino saberá de onde veio e
A faísca se unirá com a chama eterna.  [8]

O eu inferior, nossa personalidade externa,  avança pela vida enquanto sangra e sofre,  mas ligado à sua fonte de inspiração. O eu superior está acima do plano da dor e vive a bem-aventurança sem limites. A poeta brasileira Cecília Meireles dá conselhos práticos para quem busca horizontes mais largos:   

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens ... 
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade ...
É a eternidade.
És tu. [9]

As diferentes dimensões da vida são inseparáveis entre si. Matéria e energia são intercambiáveis. O espírito habita a substância física e dá vida a ela. O  eterno existe dentro do instante presente.   
Ao descrever o seu Nirvana individual,  o poeta Augusto dos Anjos cita não só o filósofo alemão Arthur Schopenhauer - discípulo leigo da filosofia esotérica oriental - mas também  menciona as Ideias Abstratas da filosofia platônica:

No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero,
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhaueriana,
Onde a Vida do Humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero,
Na imanência da Ideia Soberana!
Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato - ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebeias -

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Ideias! [10]


NOTAS:

[1] “Mário Quintana - 80 Anos de Poesia”,  org. Tânia Franco Carvalhal,     Ed. Globo,  SP,  ver p. 13.

[2] “Mário Quintana - 80 Anos de Poesia”,  obra citada, p. 15.

[3]  “Olavo Bilac - Poesias”, Posfácio de R. Magalhães Jr., Edições Ediouro, SP, ver p. 189, poema “A Um Triste”.

[4] “Olavo Bilac - Poesias”, obra citada,  pp. 94-95, poema intitulado “Midsummer’s Night Dream”.

[5] Veja, por exemplo, o poema “Nostalgia Panteísta”, de Augusto de Lima, que está disponível em nossos websites associados.  

[6] “Augusto dos Anjos - Obra Completa”, Ed. Nova Aguilar,  RJ, 2004, 884 pp., ver p. 489.   

[7] “Essay on Man and Other Poems”, Alexander Pope, Dover Publications, Inc., Nova Iorque, EUA, 98 pp., ver p. 01.

[8] Poema “The Search”, no livro “Reflections on Time, Duration and Immortality”, de Ianthe Hoskins, Theosophical Publishing House, Londres, 2001, ver p. 37.

[9] “Cânticos”, Cecília Meireles, Editora Moderna Ltda., SP, 1983, Poema II.

[10] “Augusto dos Anjos - Obra Completa”, Ed. Nova Aguilar,  RJ, 2004, obra citada,  ver p. 310, poema intitulado “O Meu Nirvana”.

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Uma versão inicial do texto acima foi publicada na revista “Planeta”, de São Paulo, edição de setembro de 2001.  

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