29 de abril de 2016

A Arte de Fazer Anotações

Um Modo de Ampliar a Visão da Vida

Carlos Cardoso Aveline




Há milênios, a prática de registrar por escrito percepções pessoais sobre a vida tem sido para muitos uma parte central da busca da verdade. A teosofia convida cada estudante a registrar as lições que aprende sobre o ideal do autoaperfeiçoamento humano, e um Mestre de Sabedoria escreveu:

“Como você pode discernir o real do irreal, o verdadeiro do falso? Só através do autodesenvolvimento. Como conseguir isso? Primeiro, precavendo-se contra as causas do autoengano. E isso você pode fazer dedicando-se, em determinada hora ou horas fixas, a cada dia, totalmente só, à autocontemplação, a escrever, a ler, a purificar suas motivações, a estudar e corrigir seus erros, ao planejamento do seu trabalho na vida externa.” [1]

No caminho da sabedoria, fazer anotações significa falar para nossa própria consciência e também escutá-la. Ao escrever aprendemos e ensinamos. Diferentes vozes internas dialogam, e podemos examinar a vida desde vários pontos de vista. Um dos maiores filósofos brasileiros, Farias Brito, confessou:

“Eu sou um indivíduo que encerra muitos homens dentro de si mesmo: alguns extremamente brandos, condescendentes e humildes, sempre tímidos, desconfiados de si próprios, e duvidosos do próprio valor; outros violentos, apaixonados, quase agressivos; outros inclinados à solidão, um tanto idealistas, sonhadores e poetas; outros sombrios, tempestuosos, sempre prontos para a luta e para a revolução; outros curiosos da verdade, sempre dispostos a investigar o desconhecido, sempre prontos para os combates do pensamento, metafísicos e um tanto visionários; uns, vendo tudo luminoso e risonho, resplandecente de luz e refletindo o  amor e a bondade; outros, tudo vendo obscuro, carregado, cheio de maldade e de ódios: quase todos tristes, amargurados mesmo, sem confiança nos homens, sem fé na justiça…” [2]

Escrever é uma forma de pensar lentamente, enquanto observamos os diferentes aspectos da nossa consciência.

É avançando devagar que o pensamento se torna amplo e profundo. Aquilo que anotamos é durável, e o fato de sabermos que a palavra escrita permanece no tempo é um motivo para construir as frases com mais cuidado.

Ao redigir, podemos revisar o texto e construir parágrafos que mereçam viver mais de um dia. Cada frase é um espelho caleidoscópico, enquanto está sendo construída. Revela possíveis falsidades a evitar, e mostra maneiras estáveis e preferíveis de dizer a verdade.

Fazer anotações sobre a ciência do viver é uma forma de estar na presença do silêncio sagrado. O ato de reler e revisar uma e outra vez um texto possui um valor meditativo. As anotações refletem o estado de alma do peregrino enquanto ele busca sem pausa o ponto neutro de equilíbrio que reconcilia os diferentes fatos da vida, na consciência curativa do espaço eterno e do tempo infinito.

Quando estamos em contato com as camadas superiores da consciência, a mente se liberta de velhos conteúdos e torna-se criativa. Por outro lado, a influência exagerada de pressões externas ameaça a bênção interior. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer escreveu:

“Assim como uma mola acaba perdendo sua elasticidade pela pressão incessante de outro corpo, o espírito perde a sua pela imposição constante de pensamentos alheios.” [3]

A afirmação de Schopenhauer está parcialmente correta, porque ressalta a necessidade de pensar por si, mas a questão central não está em “ler mais” ou “ler menos”. É a forma de ler que faz a diferença. O estímulo externo pode ter efeito extremamente positivo. A leitura é valiosa quando está combinada com a contemplação e o pensamento próprio.

O silêncio entre uma frase e outra dá legitimidade à leitura porque permite ao leitor escutar a sua alma. O bom leitor reescreve em sua própria consciência aquilo que lê. A comunhão de pensamentos existe: um bom autor revela fatos da alma de todos. Cabe apreciar devidamente o valor universal do que foi escrito por grandes pensadores.

É claro que, ao reproduzir por escrito o pensamento de outrem, o peregrino deve citar detalhadamente a fonte. Respeitando o autor, ele evita a prática do roubo e preserva o seu respeito por si mesmo. [4] Com estas condições, ele tem todo direito de partilhar o que foi dito por quaisquer pensadores.

O exame da sabedoria eterna desde o ponto de vista da prática é desafiador e estimulante. Escrever é como uma ferramenta com a qual a alma constrói sua libertação. Tudo na vida do buscador da verdade deve ser observado no contexto da sua meta essencial. As anotações são o testemunho de uma batalha e de um confronto de longo prazo com a sabedoria, com a ignorância, e com aquela transmutação do eu inferior, que leva à consciência celestial.

NOTAS:

[1] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, compiladas por C. Jinarajadasa, Ed. Teosófica Brasília, Primeira Série, seção “Cartas Para e Sobre Laura C. Holloway”, Carta II, p. 146.

[2] “Inéditos e Dispersos”, Notas e Variações sobre Assuntos Diversos, Farias Brito, Editorial Grijalbo, 550 pp., ver p. 184.

[3] Arthur Schopenhauer, em “A Arte de Escrever”, Ed. L & PM Pocket, 2005, Porto Alegre, 169 pp., ver p. 128.

[4] O bem mais precioso de um peregrino é a honestidade da sua alma.

000

Uma versão inicial do texto acima foi publicada de modo anônimo na edição de abril de 2016 de “O Teosofista”.

000 

Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.


Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.

000