O Clássico Chinês ‘Wen-tzu’
Traz
Uma Proposta para os Países
Ocidentais
Carlos Cardoso Aveline
Uma imagem de Lao-tzu, e a capa do
livro
Quem olha para o cenário político dos países
ocidentais percebe que é oportuno expandir na vida comunitária fatores como a
ética e a cooperação.
E para isso será útil levar em conta uma obra de
linguagem suave e misteriosa, escrita na China há mais de 2000 anos.
O “Wen-tzu” é
uma escritura do taoismo filosófico, e tive a honra de traduzi-la para o
português. A obra contém ensinamentos de Lao-tzu. Transmite ao leitor uma
sabedoria milenar que é útil para resolver os males atuais da civilização.
Com o subtítulo “A Compreensão dos Mistérios”, o “Wen-tzu” foi escrito meio século antes da era
cristã, mas sua tradução para o inglês só apareceu nos Estados Unidos em 1991.
A obra mostra com clareza impressionante a proposta eterna e cíclica de uma
sociedade ideal. Mas ela revela também como funcionam os mecanismos da
decadência e da destruição.
O Caminho do
Equilíbrio
O taoismo pode ser definido como uma forma de mergulho no
que é autêntico e natural. Para esta religião-filosofia, o Tao ou Caminho é o
princípio supremo do equilíbrio e da harmonia, que está presente em todas as
coisas. Usando uma linguagem simbólica, o “Wen-tzu” rejeita a astúcia e a
manipulação:
“Uma orquídea não perde sua fragrância só pelo fato de
ninguém cheirá-la, um barco não afunda só porque não há ninguém dentro dele; e
uma pessoa não deixa de praticar o Caminho apenas porque ninguém tem
consciência disso: a orquídea, o barco e a pessoa exemplar são assim por
natureza [1]”.
Ao ler este trecho pela primeira vez, pude ver a
diferença moral entre uma orquídea e um hipócrita. A orquídea é sempre a mesma,
esteja ou não sendo observada. O hipócrita só é ético enquanto há alguém a
observá-lo.
Essa ideia, porém, dá lugar a algumas perguntas:
“Quem são os hipócritas? Serão sempre os outros? Nós
nunca erramos?”
Esse trecho do “Wen-tzu” pode ser surpreendentemente incômodo, quando o aplicamos a nós
mesmos. Ele nos convida a refletir sobre o nosso grau de autenticidade pessoal.
Até que ponto fazemos a coisa certa, mesmo quando não há alguém olhando e
ninguém sabe do que fazemos? Será que exageramos nossa boa conduta na frente
dos outros? Por acaso perdemos parte do nosso entusiasmo pela ética e pela
virtude, quando estamos sozinhos e sabemos que não haverá aplausos? Este não é
apenas um dilema que cada um de nós enfrenta: ele também é vivido, em escala
maior pelos políticos profissionais.
É claro que o êxito de curto prazo dos líderes depende
especialmente da imagem e da aparência das coisas. Isso empurra os políticos de
visão curta para aquela “filosofia”
segundo a qual “em política não há fatos, só há versões”.
Os que se consideram espertos trocam a realidade pela
aparência. Buscam muito mais parecer honestos e eficazes do que ser, de fato,
uma coisa ou outra. Quando opta pela astúcia, o político profissional renuncia
à inteligência espiritual e abandona as propostas e ideias claras. Ele evita
comprometer-se, adota uma ambiguidade capaz de sugerir vários significados
diferentes, e dá a entender uma coisa para cada interlocutor.
Um pensamento atribuído a um líder político deste tipo
diz o seguinte:
“Em política é melhor não falar; se você falar, é bom não
dizer; se disser, é bom não escrever; se escrever, é bom não assinar; se assinar,
assine com a mão errada”.
O líder adequado é aquele que tem algo útil a dizer a
todos os setores, porque capta a situação de conjunto e sabe onde a comunidade
inteira deve avançar. Ele tem uma visão universal e não precisa ser ambíguo ou
dizer uma coisa para cada pessoa, na tentativa fragmentária de agradar a todos.
Para evitar a prática da
hipocrisia e da propaganda mentirosa, é preciso que os cidadãos construam um
novo tipo de liderança baseada em uma visão integral da vida, e afastem os
políticos contorcionistas.
Porém, não é possível exigir dos líderes
políticos algo que não fazemos como cidadãos na vida privada. Cada um deve
começar a reforma por si. O espaço público de um país revela de modo ostensivo
aquilo que a média das pessoas costuma fazer de modo discreto. Quando na vida
cotidiana as pessoas dizem pequenas mentiras umas para as outras, os políticos
dizem mentiras em escala maior, dirigidas à população toda. Há uma relação
inevitável entre o espaço público e o espaço privado. Por isso só um ser humano
justo pode construir uma sociedade solidária.
Para o “Wen-tzu”, quando alguém
sabe governar com sabedoria a sua própria vida é capaz, também, de liderar um
povo. Mas quem não governa bem a si mesmo não pode liderar corretamente uma
cidade, uma família ou uma nação. É preciso viver com sabedoria para construir
melhores estruturas de relacionamento em sindicatos, câmaras de vereadores,
igrejas, associações de moradores e partidos políticos. E também nos grupos
familiares.
De um modo geral, cada povo tem
não só o governo, mas também a classe política e a legislação que merece. O
mérito cármico de um povo se reflete nas condições em que ele vive. As leis dão
uma estrutura à vida comunitária e determinam em grande parte o grau médio de
felicidade. Leis incoerentes, aprovadas por motivos demagógicos, assim como
leis que não são aplicadas ou que não valem igualmente para todos, causam
confusão e sofrimento. O mesmo ocorre com as leis demasiado rigorosas, porque
não são respeitadas e levam ao caos.
Cumprir a Lei, e Evitar o Excesso de Leis
O “Wen-tzu” ensina:
“As leis das sociedades recentes
colocam suas medidas no alto e punem aqueles que não podem viver de acordo com
elas; as leis tornam as responsabilidades pesadas e castigam aqueles que não
podem suportá-las; tornam as dificuldades perigosas e castigam aqueles que não
ousam confrontá-las. Quando as pessoas ficam sobrecarregadas (...), elas fazem
uma demonstração de esperteza para enganar seus governantes; as pessoas se
tornam falsas e atuam de modo perigoso. Neste caso nem mesmo leis severas e
castigos rigorosos podem evitar que as pessoas sejam traiçoeiras”.[2]
O “Wen-tzu” afirma no capítulo 10
que “as leis rígidas e as punições rigorosas não são obras de grandes líderes:
bater excessivamente no cavalo não é a maneira de chegar a uma longa
distância”. Em outro trecho, a obra adverte:
“A lei não desce do céu, e tampouco
emerge da terra; ela é criada através da autorreflexão e da autocorreção
humanas. (...) Se você tem algo em você mesmo, não o negue para os outros; se
você não o tem em si mesmo, não lance a culpa sobre a condição social. O que
está estabelecido para os escalões inferiores não deve ser ignorado nos
escalões superiores; o que é proibido para o povo não deve ser praticado por
indivíduos privilegiados. Por isso, quando os líderes humanitários estabelecem
leis, primeiro eles devem aplicá-las a si mesmos para testá-las e comprová-las.
Assim, se uma regulamentação funciona para os próprios governantes, ela pode
ser aplicada à população”.[3]
Infelizmente, algumas leis dos
países ocidentais induzem o cidadão à ilegalidade, e as consequências morais disso
são graves.
O excesso de leis e
regulamentações, somado ao fato de que elas são muitas vezes distantes da
realidade e destituídas de bom senso, acaba empurrando o povo para a mentira e
a ilegalidade. Quando há desprezo pela lei, os políticos corruptos se multiplicam
no poder legislativo. Em consequência, as leis ficam ainda mais inadequadas.
O “Wen-tzu” destaca a necessidade
de que as leis de um país sejam planejadas de modo que estimulem um
comportamento adequado por parte do povo:
“Abra um caminho para que eles
possam ser bons, e os indivíduos se voltarão para a direção correta”. [4]
Vejamos o que significa este
princípio básico, por exemplo, no caso
concreto da segurança pública. Abrir caminho para que os seres humanos sejam
bons implica garantir casa, comida, educação e oportunidades profissionais para
as crianças e jovens do país. Feito isso, os índices de criminalidade cairão
radicalmente.
É verdade que os órgãos policiais
precisam ter eficiência para enfrentar e vencer o mal que já não pode ser
evitado preventivamente. Mesmo assim, é possível abrir espaço para a
recuperação humana de milhares de pessoas que erraram. Basta organizar cursos
de reabilitação e de formação profissional dos presos no sistema penitenciário.
O dirigente que tem um respeito
profundo por si mesmo também respeita o povo. Ele possui uma visão de longo
prazo, não abandona a ética nem a decência e por isso consegue criar uma
situação social luminosa e saudável:
“Quando os líderes da humanidade
pensam, os seus espíritos não se agitam em seus peitos, seu conhecimento não é
exibido aos quatro cantos, mas eles abraçam o coração da benevolência. (...)
Eles alimentam bem o povo: a autoridade não é exigente, o sistema legal não é
complicado, a educação é espiritual. As leis são amplas, as punições são leves,
as prisões ficam vazias.” E ainda: “Os sábios (...) procuram ter poucas coisas,
e assim ficam satisfeitos; são benevolentes sem esforço, inspiram confiança sem
falar”. [5]
No capítulo 136, o “Wen-tzu”
avança na descrição de um povo feliz:
“Uma ordem social clara e calma
se caracteriza por harmonia e tranquilidade, franqueza e simplicidade,
serenidade e ausência de agitação. As pessoas estão internamente unidas com o
Caminho, externamente harmonizadas com a justiça, a fala é breve e lógica, a
ação é sensível e movida pelo contentamento. Os corações são pacíficos e
verdadeiros, as obras são simples e sem adornos. Não há estratagemas no início
e não há debate no final. Imóveis quando calmas, ativas quando estimuladas, as
pessoas formam uma continuidade com o céu e a terra.”
O capítulo 137 amplia a ideia:
“Em uma sociedade bem organizada
os empregos são fáceis de manter, o trabalho é fácil de fazer, as boas maneiras
são fáceis de colocar em prática, as dívidas são fáceis de pagar. Por isso as
pessoas não têm mais de um cargo simultaneamente, e os cargos não são ocupados
por mais de uma pessoa ao mesmo tempo.”
O “Wen-tzu” ensina ao guerreiro
sábio e ao dirigente eficaz como podem identificar-se com a água:
“Nada no mundo é mais suave do
que a água. O caminho da água é infinitamente largo e incalculavelmente
profundo; ele se estende indefinidamente e flui ilimitadamente longe. (...)
Bata nela, e ela não fica prejudicada; perfure-a, e não fica ferida;
atravesse-a com uma faca, e ela não é cortada; queime-a, e ela não faz fumaça.
Suave e fluida, não pode ser dispersada. Ela é suficientemente penetrante para
perfurar metais e pedras, suficientemente forte para submergir todo o mundo.
(...) A razão pela qual a água pode corporificar essa virtude suprema é que ela
é suave e escorregadia. Por isso eu digo que o que é mais suave no mundo dirige
aquilo que é mais duro no mundo (...). O que não tem forma é o grande ancestral
dos seres, o que não tem som é a grande fonte das espécies.”
Esta é uma maneira sábia pela
qual o cidadão pode orientar também sua vida individual. A autenticidade produz
a paz:
“A prática da virtude não é agressiva; o seu
uso não é forçado. Você não vê a virtude quando a olha, e não a ouve quando
tenta escutá-la. Ela não tem forma, mas as formas nascem dela. Ela não tem som,
porém todos os sons são produzidos nela...”. [6]
Em qualquer país ou cidade do
mundo, a democracia nasce do respeito e da tolerância mútuos, que parecem “vazios”
e não ocupam espaço.
Quem sabe ceder, sabe ganhar. O
bom dirigente pensa nos outros. Ele avança usando firmeza e flexibilidade em
meio aos extremos da vida:
“O Caminho dos sábios é ser magnânimo porém
severo, rigoroso mas solidário, amável porém correto, agressivo mas
humanitário. O que é muito duro quebra, e o que é excessivamente brando se
dobra: o Caminho está exatamente no meio entre a dureza e a suavidade”. [7]
NOTAS:
[1] “Wen-tzu, a Compreensão dos
Mistérios, Ensinamentos de Lao-tzu”. Tradução do chinês de Thomas Cleary.
Tradução do inglês, Carlos Cardoso Aveline. Editora Teosófica, Brasília, maio de 2002, 198
pp. Veja a p. 98.
[2] “Wen-tzu”, pp. 150-151.
[3] “Wen-tzu”, obra citada, p. 176.
[4] “Wen-tzu”, capítulo 53, p. 69.
[5] “Wen-tzu”, capítulo 19, pp.
44-45.
[6] “Wen-tzu”, capítulo 7, p. 31.
[7] “Wen-tzu”, capítulo 153, p. 165.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da
situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu
formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas
prioridades a construção de um futuro
melhor nas diversas dimensões da vida.
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