Acelerando o Processo pelo Qual
os
Seres Humanos se Tornam Mais
Sinceros
Carlos Cardoso Aveline
Capa e página de abertura da obra de Maria Manieri
A luta entre honestidade e corrupção é mais secreta do que pública. Ela só
faz barulho nas suas instâncias secundárias. Ela ocorre primeiro e
primordialmente na alma humana.
É a partir do plano essencial da existência que o combate
entre sinceridade e o seu oposto se expressa nas esferas exteriores da vida. E
isso acontece no nosso âmbito familiar, na política do município e no convívio
entre as nações.
Além de combater a corrupção nos
meios políticos, é preciso construir a sociedade inteira com base no princípio
da honestidade consigo mesmo e com seus semelhantes.
O grande e o pequeno são espelhos um do outro. O
indivíduo que é sincero numa esfera da existência tende a ser honesto nas
outras. Aquele que se desliga da alma em um determinado aspecto do dia-a-dia
corre o risco de ver a sua derrota moral ampliar-se.
Tudo está interligado. Em cada dimensão da vida humana, começando
no relacionamento do cidadão com sua própria consciência, há um conflito aberto
ou implícito entre sabedoria e ignorância, sinceridade e ilusão, decência e falsa
esperteza.
O contraste desdobra-se tanto no indivíduo como na
comunidade. Está vivo nos partidos de esquerda e nas agrupações de direita.
Em seu livro “Fraternidade” [1],
a ex-senadora socialista italiana Maria Rosaria Manieri propõe a ideia de que o
mundo político do século 21 deve resgatar o “esquecido” conceito de
Fraternidade. Este termo, para ela, significa amizade e ajuda mútua.
Naturalmente, na vida e na política
não existem fatos isolados. A ética e a ajuda mútua andam juntas. O roubo e a
mentira são geralmente inseparáveis.
O conceito de
Fraternidade é central em teosofia e na filosofia maçônica, porque decorre inevitavelmente
da percepção da unidade de todos os seres. Está presente no judaísmo e nas
outras religiões autênticas.
Desde o mundo antigo a
ideia fraterna constitui um ponto decisivo de qualquer enfoque sério da
Política.
A filosofia não enxerga
a política como uma “luta pelo poder”, mas como a construção permanente de um
poder criativo baseado na ajuda mútua e na confiança recíproca. O verdadeiro
dever da Política é melhorar uma Pólis ou comunidade e mantê-la viva através do
sentimento da comunhão.
Embora a ideia da fraternidade seja central nos vários
aspectos da vida humana, há muito ele vem sendo subestimado em quase todas as áreas
de conhecimento.
Na sua busca ansiosa de seguidores, organizações
espiritualistas e políticas optam pela fraternidade nominal e deixam de lado a
tarefa de construir associações profundamente unidas. A troca da realidade pela
aparência ocorre por falta de conhecimento.
A ignorância espiritual gera uma ausência de boa vontade.
Crimes, erros, dor e injustiça recebem atenção prioritária por parte dos
desinformados. A repetição de slogans e frases feitas é mais fácil do que
pensar. Ser criativo é desafiante.
A psicologia convencional poderia fazer um esforço maior
diante da questão profunda de como produzir fraternidade.
Mesmo em teosofia original e clássica, o tema merece mais
atenção do que vem recebendo. O primeiro objetivo do movimento teosófico
moderno está voltado para a fraternidade universal, e o tema está na agenda da Loja
Independente de Teosofistas.
Nascida em 1943 e experiente em lutas sociais, Maria
Rosaria Manieri escreve:
“Quando se diz fraternidade, o pensamento imediato vai
para sua concepção religiosa, em geral judaico-cristã. Ao contrário, da
fraternidade, em seu significado mais propriamente civil e republicano, como
princípio orientador do agir público e como critério ético da decisão e da
avaliação política e social, desapareceram pouco a pouco os traços. Tanto é que
dela se fala como de um princípio
esquecido. [2] O termo caiu praticamente em desuso no
léxico público contemporâneo.”
Esta é uma séria derrota para o ideal humanitário.
Maria Rosaria prossegue:
“As próprias formações políticas que historicamente
nasceram como resposta à demanda de fraternidade perderam, em tempos de
fundamentalismo liberista, o sentido e o alcance dela. E esta também é uma das
causas profundas de sua perda de identidade, de seu estado irreconhecível e de
seu declínio. Até a palavra solidariedade, que constituiu no século XX a
declinação política mais importante da fraternidade, agora está distante do
contexto de lutas e reivindicações que acompanharam sua afirmação na legislação
e nos estatutos sindicais da Europa Ocidental. O tema se tornou monopólio quase
exclusivo das formações religiosas (…).” [3]
O egoísmo coletivo domina mais de um sindicato e
associação nominalmente altruístas. Tampouco está completamente ausente de
associações filosóficas, teosóficas e espiritualistas.
No entanto, uma civilização só se sustenta na medida
em que houver boa vontade e ajuda mútua entre os cidadãos. O fim de uma
civilização baseada no egoísmo é inevitável. Cabe observar portanto como são produzidas
na sociedade contemporânea a generosidade e o egocentrismo, os pensamentos
solidários e os sentimentos destrutivos, a ignorância e a sabedoria.
O Pai Espírito e a Mãe Natureza
Olhando para a prática da vida política e a dinâmica
social de um país, podemos ver a força ou a fragilidade do respeito mútuo no
espaço comum.
Palavras vazias são armadilhas para o indivíduo e para
a nação. Grandes absurdos podem ser feitos em nome de belos ideais.
Por outro lado, vasta quantidade de boa vontade e justiça
social pode ser produzida sem qualquer ideologia que se pretenda infalível.
Belas palavras tampouco bastam para os movimentos
teosóficos e filosóficos, e a ação com frequência mais eficaz é feita de modo
despretensioso. Construir o futuro é criar modos saudáveis de produzir
conhecimento solidário, e expandir o projeto entre pessoas honestas.
O livro “Fraternidade” ajuda a reduzir a distância
entre a política e a filosofia. Ele presta um serviço às associações que visam
melhorar a experiência humana durante o século 21.
Maria Rosaria Manieri escreve:
“A ideia de fraternidade permanece há séculos ancorada nos
pressupostos judaico-cristãos da comum paternidade divina, que gera o
mandamento do amor fraterno entre os homens.”
A expressão “deus pai” é uma personalização e uma
metáfora. Ela serve para popularizar o conhecimento. Simboliza a lei eterna e universal,
ou lei natural, que regula tanto o espírito como a matéria.
Do casamento entre deus-pai e a mãe-natureza (isto é, a
virgem Maya, a virgem Maria, a matéria primordial) nasce a humanidade.
Esta visão básica da polaridade criativa está presente de
várias formas na tradição andina, assim como nas lendas religiosas do oriente e
do ocidente.
Os seres humanos são todos filhos do Carma (isto é, do
Pai, da Lei, do Espírito). A figura paterna universal coloca em movimento periodicamente
a expansão da vida na Natureza (a Mãe, Maya, a Matéria). Todos os seres são
irmãos, porque decorrem do encontro criador entre o Espírito e a Existência
Material.
A ideia básica da irmandade entre todos os seres - muito
anterior ao cristianismo - não fica parada no tempo. Ela evolui ao longo da
história, renasce e reencarna adotando formas diferentes, e Maria Rosaria afirma:
“Com o início da revolução moderna, que a partir do Renascimento
afirma a dignitas et excellentia do
homem, faber fortunae suae (‘autor do
seu próprio destino’), buscam-se novos fundamentos para a ideia de fraternidade
e se lançam as bases de um humanismo laico e mundano, que inspirará a ética das
modernas sociedades secularizadas.” [4]
A autora usa o termo “jusnaturalismo” para referir-se à
ideia da Lei Natural, um princípio básico em teosofia moderna:
“Primeiro o jusnaturalismo e, em seguida, o iluminismo chegam
a uma concepção nova deste princípio [da
fraternidade], não mais baseado no recurso de autoridade a uma fé que nem
todos têm, mas na razão de que todos os seres humanos são dotados como tais. A
fraternidade revelada é substituída por uma fraternidade universal, baseada na
natureza humana e na razão.”
O conceito de fraternidade humana se liberta - no mundo “cristão”
- e transcende o dogma estreito das igrejas.
Maria escreve:
“A época moderna se abre com uma grandiosa tradução laica
do princípio paulino: ‘Não existe judeu ou grego nem escravo ou liberto’, não
porque são ‘um em Cristo’ mas porque todos [são]
seres humanos. A fraternidade se
baseia na humanidade e se estende a toda a humanidade.” [5]
Numa visão simplista e egocêntrica, a proposta da
fraternidade universal consiste em esperar “que todos pensem como eu”, e
concordem com a minha ideologia política ou religiosa, ou aceitem a ideia de
que a minha nação, igreja ou seita é superior a todas as outras. Este
fraternismo simplório gera grande quantidade de intolerância e fanatismo. O
movimento teosófico não está inteiramente livre deste problema.
O processo de ser fraternos coloca diante de nós o
desafio de perceber a unidade na diversidade, enquanto perseveramos na busca ativa
do que é verdadeiro. Não podemos abrir mão da sinceridade na tentativa de ser
amáveis. O desafio da fraternidade nos coloca diante da
necessidade de viver a unidade sem negar o contraste e a imperfeição. É preciso
melhorar constantemente o nosso modo de ser.
Cabe observar a unidade dos contrários.
O próximo passo evolutivo dos humanos é perceber que a
paz é maior que o paradoxo. Consiste em estabelecer as bases de um diálogo
intercultural durável, abrindo as portas para a cooperação entre todos os povos,
e também entre todos os setores sociais de cada nação.
Não existe razão para ter pressa. Nem para estar ocioso. Há
tempo suficiente para alcançar este ideal nobre. A prova do “tempo suficiente” está
no fato histórico indiscutível de que as civilizações passam, enquanto a busca
da fraternidade permanece.
Os processos de ajuda mútua avançam ao longo do tempo.
Eles se renovam a cada século. E toda vez que uma civilização se torna
demasiado materialista, corrupta e arrogante, ela nega o princípio básico da
fraternidade e desaba, sendo substituída por outra civilização melhor e mais
honesta, que tampouco será eterna.
O Convívio Harmonioso
O capítulo três da obra de Maria Rosaria Manieri é dedicado ao tema da
tolerância e da fraternidade. Reivindicando o respeito entre diferentes
igrejas, religiões e formas de pensar, Manieri cita longamente Voltaire e John
Locke.
A autora está certa em defender a flexibilidade e o convívio harmonioso
entre diferentes pontos de vista. Ao fazer isso, porém, não se deve esquecer
que há uma Lei da Simetria nas relações sociais.
Todo exercício de flexibilidade precisa ser compensado por alguma forma de
firmeza.
Cabe transcender uma antiga ilusão de pensadores idealistas de esquerda: a
ideia segundo a qual o ser humano já é bom o suficiente, agora mesmo, e não
necessita evoluir no plano moral.
“Para que floresçam a justiça e a felicidade geral na comunidade”, dizem os
ingênuos, “basta que sejam eliminados os limites e as obrigações, e a
tolerância mútua seja imposta como a grande lei.”
O violento fracasso de quase todas as revoluções sociais que pretenderam
“tirar o poder das elites” mostra que é o ser humano que necessita ser
melhorado em primeiro lugar. Pensar que ele já é perfeitamente honesto e bondoso
em todos os casos, sofrendo apenas devido à injustiça social, tem sido há
séculos uma receita eficaz para o desastre.
Na verdade, cada um deve cuidar da sua própria revolução interior. É possível
ajudar os outros e ser ajudado por eles, mas o processo de produção de bom
senso será desafiante.
Se alguém pretende ser generoso com os outros, terá de praticar o
autocontrole. É a austeridade pessoal que permite ser fraterno com os demais.
A propaganda unilateral em torno da tolerância, como se ela fosse um valor
absoluto e válido em si, termina por levar a sociedade à mera indulgência e à irresponsabilidade
moral.
A generalização do roubo, a popularização da violência e do alcoolismo, a
adoção mal disfarçada da pornografia nos meios de comunicação social, o uso epidêmico
de drogas, a influência política dos traficantes de narcóticos e a corrupção na
administração pública levam invisivelmente à destruição do sentido de
comunidade, atacam o sentimento fraterno e ameaçam a democracia.
Maria Manieri tende a atribuir o controle e a “coação” ao estado, enquanto
na sociedade civil deveriam reinar a tolerância e a aceitação. Neste ponto, não
é possível ignorar o fato incômodo de que, quando o cidadão não é capaz de
“coagir” a si mesmo, praticando a autorrestrição e mantendo uma conduta
correta, a vida e o Carma irão “coagi-lo” de maneiras imprevisíveis e
indesejáveis.
Cabe resgatar o bom senso. Para que haja uma comunidade ética, é necessário
existir uma capacidade firme de rejeitar a degeneração dos hábitos e dos costumes.
A busca cega do prazer irresponsável destrói o sentido comunitário. A esquerda
sensata, capaz de pensar, deve descobrir as lições da psicanálise freudiana. Será
útil valorizar o pensamento de psicólogos voltados para a fraternidade, como Alfred
Adler, Viktor Frankl, Erich Fromm, Rollo May, Karen Horney, Fritz Kunkel e
outros.
As obras de Carl Jung, profundo simpatizante do nazismo e adversário da
ética, não serão úteis nessa tarefa.
O ser humano é complexo. Precisa evoluir através do conhecimento das suas
contradições internas e avançar fazendo uma “reforma interior” enquanto luta pela
regeneração coletiva. O renascimento social resultará da mudança interna.
É nosso dever criar uma cultura em que as pessoas são estimuladas a buscar
o seu progresso moral. O cidadão que deixa de lado a ignorância já não perde
tempo falando demasiado dos defeitos alheios ou criticando a “classe dominante”.
Ele abandona os velhos bodes expiatórios e esquemas neuróticos antes usados para
fugir da visão dos seus próprios fracassos.
Uma tarefa inevitável das esquerdas é, portanto, compreender que o progresso
social verdadeiro resulta de um avanço do indivíduo em autoconhecimento,
autorrespeito, autocontrole, equilíbrio e sabedoria. Cada um deve transcender por
mérito próprio o culto ao dinheiro e derrotar em si mesmo outras formas de
ilusão materialista, para trilhar em paz o caminho da simplicidade voluntária.
Nenhuma propaganda ideológica pode substituir a consciência individual. A
capacidade do cidadão de ouvir sua consciência moral está na base e no alicerce
de toda ação política correta. A resposta saudável aos problemas sociais se
baseia no despertar ético do cidadão. Os partidos políticos de esquerda e direita
devem perceber este fato antes de poderem ajudar com eficiência o povo dos países
em que atuam.
O Ideal de Perfeição Humana
É no capítulo 4 da obra “Fraternidade” que Maria Rosaria Manieri examina a presença
da ética e do dever individual na construção de relações sociais corretas.
Nos escritos de Immanuel Kant, afirma ela, o dever cristão da busca do
autoaperfeiçoamento alcança um caráter universal e não-sectário. Cada ser
humano está chamado a vencer o egoísmo instintivo presente em si mesmo:
“A busca de perfeição do homem, para quem o Evangelho cristão coloca a
medida mais alta - ‘sede perfeitos como perfeito é vosso Pai que está nos céus’
(Mateus 5, 48) -, experimenta em Kant uma conversão consciente ao mundo
material, tal como sobrevinda com o Renascimento e a Reforma. O ideal de
perfeição está agora posto no exercício de domínio teórico e prático do homem
sobre a natureza, inclusive a natureza humana.” [6]
O tema do ideal de perfeição humana é teosófico e corresponde ao processo
iniciático. O assunto diz respeito à essência de todas as religiões e
filosofias, e Maria Manieri escreve:
“A cultura do direito e da moralidade é a última meta da razão
moderna e é ela que ‘eleva o homem completamente acima dos animais’.” (p. 85)
Neste ponto vemos Kant avançando na mesma direção que Sigmund Freud, Erich Fromm
e todos os pensadores éticos, além da teosofia clássica. Através do
autoconhecimento, o ser humano transcende o mundo animal e se eleva até o plano
da Razão, da percepção superior, da alma imortal, da fraternidade entre todos
os seres.
Maria resume a posição de Kant:
“O homem conquista o direito à fraternidade quando, vencendo as
resistências que à lei interior da moralidade opõe o plano das inclinações [animais], faz prevalecer sobre os
instintos egoístas a racionalidade; sobre a variedade e a conflituosidade de posições
e interesses particulares, o princípio da legislação universal; sobre a
anarquia e as incertezas do hobbesiano bellum
omnium contra omnes (‘a guerra de todos contra todos’), as garantias da
ordem civil e a dignidade da lei moral.” (p. 86)
Aqui o dever ético se transforma em lei e em ordem social. A justiça é o
supremo bem, e não a felicidade pessoal de curto prazo. Kant tem algo a ensinar
aos partidos políticos de esquerda e de direita. A fraternidade, como
imperativo da moral, é uma tarefa da prática política digna e correta.
Deve haver uma hegemonia da razão sobre os egoísmos e as paixões. A tarefa
de construir esta hegemonia já não pertence a alguma elite de sábios, como em
Platão, mas a cada cidadão consciente (p.104). A existência desta obrigação ética
cria um risco moral, provocado pela distância entre o dever e o ser, entre a
tarefa grandiosa e a modesta realidade atual do ser humano (p.105).
O princípio ético da fraternidade não tem nada de quietista ou
contemplativo (p.108). Em Kant, assim como em qualquer visão que tenha bom
senso, a construção de uma sociedade justa não é uma tarefa meramente política
ou econômica, e muito menos um projeto de propaganda eleitoral. Trata-se de acelerar o processo pelo qual os seres humanos se tornam
mais honestos e equilibrados.
A sociedade será harmoniosa quando os cidadãos tratarem-se com equilíbrio e
tiverem boa vontade mútua. Antes de chegar a esta meta, porém, as agrupações
políticas de esquerda deverão priorizar o estímulo à autoeducação e à formação
independente de cidadãos responsáveis.
A obra de Maria Rosaria faz um resumo útil dos enfoques da filosofia
ocidental em relação à Fraternidade. Ela é em certo sentido modesta e pouco
ambiciosa porque não elabora em detalhes o que deve ser feito. Maria aponta um
fato básico: o tema da fraternidade é central sempre que se discute a realidade
humana, e merece estudo. Esta é uma verdade inegável tanto para estudantes de
filosofia e teosofia como para ativistas sociais.
A Decisão de Construir o Futuro
O quinto e último capítulo da obra “Fraternidade”
mostra como é difícil para a autora perceber o que é fundamental e o que é
secundário, nas várias formas pelas quais o problema da fraternidade humana foi
tratado durante os séculos mais recentes.
Depois de resumir no capítulo quatro a visão ética de
Kant, Maria Manieri passa a discutir Marx e as suas teorias economicistas. E
faz isso como se tivesse esquecido a proposição fundamental de Kant, que coloca
o indivíduo “comum” como o grande responsável pela construção de uma sociedade
melhor.
Menciona apenas marginalmente no alto da p. 137 a
ideia de que a melhoria social necessita da transformação do indivíduo, e o
bem-estar de cada cidadão se torna mais fácil graças ao progresso social. Em
nenhum momento Maria coloca no centro da sua visão das coisas o fato incômodo e
fundamental da responsabilidade ética de cada cidadão. Ela parece esquecer Kant
e não saber da necessidade da revolução individual na direção do altruísmo,
como base do progresso coletivo.
Maria não construiu um pensamento próprio.
Sua obra, em parte, consiste em uma resenha dos
principais enfoques do pensamento ocidental sobre fraternidade, vistos como fatos
isolados e sem optar por nenhum deles. Tampouco constrói um esquema referencial
independente. Seu livro é útil mesmo assim e importante.
É fácil constatar que os grupos de esquerda em geral estimulam
a fraternidade dentro das suas fileiras enquanto postergam a experiência da
fraternidade universal (ou da fraternidade nacional) para algum momento mágico que
deveria ocorrer após terem conquistado o poder político e o controle do estado.
Porém, depois que a postergação da fraternidade ocorre
uma vez, ela tende a ser automaticamente renovada. Os pretextos para justificar
a ausência de respeito pelos outros se multiplicam à medida que passa o tempo.
A cura para este problema é simples, e no entanto realizá-la
é difícil, porque nem todos aceitam o desapego necessário para viver a
simplicidade.
Ao contrário de lutar fundamentalmente “contra” algo, as
esquerdas precisam aprender a construir.
Cabe dar menos prioridade à tomada de poder político nominal e burocrático. É
mais eficiente perceber a importância
decisiva da construção daquele poder
criativo que permite estabelecer novas relações sociais, inclusive relações de
produção e modo de produção, começando em pequena escala.
Exemplos desse processo criador são o cooperativismo, os
mutirões comunitários do interior brasileiro, as hortas comunitárias, as
pequenas ações econômicas e sociais de ajuda mútua e os kibutzim e moshavim
israelenses, assim como a ação de Mohandas Gandhi e Vinoba Bhave na Índia. [7]
A obra de Maria Manieri tem o importante mérito de
erguer o tema da fraternidade e mostrá-lo como central para o pensamento
político. Neste aspecto, o livro contém uma lição valiosa para os movimentos
teosóficos, maçônicos e filosóficos. Um sábio dos Himalaias escreveu:
“A expressão ‘Fraternidade Universal’ não é vazia de
significado. A humanidade em seu conjunto tem um direito supremo sobre nós
(...). [A fraternidade] é a única base segura para uma moralidade universal. Se
isto é um sonho, pelo menos é um sonho nobre para a humanidade: e é a aspiração
do verdadeiro adepto.” [8]
A fraternidade é a relação correta entre os seres humanos.
A sua construção é tarefa de todas áreas de conhecimento, inclusive a ciência
“exata”, que deve ser colocada a serviço da vida e não da acumulação de riqueza
material nas mãos de poucos. As ações que ferem o princípio universal da
fraternidade devem ser desmascaradas, compreendidas, vigiadas, e eliminadas com
o devido rigor, com cuidado, e discernimento.[9]
Ser de esquerda - isto é, buscar a justiça no plano
social - não significa repetir slogans e palavras-de-ordem impensadas sobre um
sonho vago de eliminação desta ou daquela “elite”, como se lutar contra algo fosse suficiente.
O livro de Maria Manieri ajuda a compreender este fato.
Ser de esquerda pode significar a construção saudável de
novas relações de produção, baseadas no compartilhar de responsabilidades e
direitos.
O dever da Esquerda
não é combater a Direita a cada
eleição, fazendo uma demagogia populista por oposição a uma demagogia
conservadora. A Esquerda pode
expressar criativamente o potencial humano para a solidariedade, e expandir o respeito
pela vida, e aumentar o compromisso de todos com o futuro comum.
NOTAS:
[1] “Fraternidade”, Maria Rosaria Manieri, Fundação Astrojildo Pereira e
Contraponto Editora, DF/RJ, 2017, 143 páginas.
[2] A. M. Baggio (org.), “Il principio dimenticato. La fraternità nella
riflessione politologica contemporanea” , Roma, Città Nuova, 2007. (Nota de
Maria Rosaria Manieri)
[3] “Fraternidade”, Maria Rosaria Manieri,
pp. 15-16.
[4] “Fraternidade”, Maria Rosaria Manieri, p. 71.
[5] “Fraternidade”, Maria Rosaria Manieri, mesma p. 71.
[6] “Fraternidade”, Maria Rosaria Manieri, ver p. 84.
[7] Veja em nossos websites associados o artigo “Vinoba e a Vontade de
Construir”.
[8] “Cartas dos Mahatmas”, Ed. Teosófica, Brasília, 2001, ver volume I, Carta
5, p. 60.
[9] As armas nucleares são um exemplo disso: a esquerda e a direita devem ser suficientemente inteligentes para perceber que a proliferação nuclear e o suicídio atômico não são boas ideias.
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