Um Estudo Teosófico Sobre Obra Clássica
Carlos Cardoso Aveline
Estátua de Tomás de Kempis
(1380-1471), situada na cidade em que nasceu
A Teosofia tem as suas maneiras próprias
de identificar a sabedoria eterna presente nos ensinamentos cristãos, resgatando-a
da letra morta do ritualismo e da crença cega.
Como um pequeno exemplo prático
desse fato, apresentamos a seguir 34 fragmentos do livro clássico “Imitação de
Cristo” [1]. Os Comentários visam decodificar
estas passagens, liberando-as da forma exterior e revelando suas ideias internas,
que fazem parte da visão teosófica da vida.
O autor de “Imitação de
Cristo”, Tomás de Kempis (1380-1471), foi educado
pela Irmandade da Vida em Comum e
mais tarde se tornou membro dela. A esta Irmandade pertenceu também o cardeal e
filósofo Nicolau de Cusa (1400-1464). [2]
De acordo com Helena Blavatsky, Cusa foi um adepto e um precursor do
movimento teosófico moderno. [3]
Os
três primeiros Livros de “Imitação de Cristo” equivalem a um tratado de
filosofia estoica, colocado sob uma roupagem cristã: daí a sua importância em
teosofia. O quarto Livro ou quarta parte da obra, porém, não se harmoniza com o
resto do conteúdo. Parece algo alheio. Poderia ter sido escrito para escapar da
perseguição do Vaticano.
Há
algumas “chaves de leitura” para o texto de “Imitação”. Em geral é correto ler
a palavra “Deus” como significando “Lei Universal”. Em alguns casos, porém - como
no caso da relação pessoal com Deus - o termo designa o próprio eu superior ou alma eterna do ser humano, cuja substância é universal.
O
termo “cruz” significa “Carma”.
As
palavras “Cristo” e “Jesus” são termos lendários que designam o sexto princípio
da consciência humana, também conhecido como “eu superior” e “alma espiritual”.
Os
34 fragmentos são apresentados em itálico, em negrito. Ao final de cada um
deles são indicados o Livro (ou Parte), o capítulo e o parágrafo a que pertencem.
Um: a Fonte Mais Alta
“A
doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos (…).” (Livro Primeiro, capítulo 1,
parág. 2.)
Comentário:
A
primeira frase selecionada de “Imitação” significa que devemos ir à fonte mais
elevada possível.
Os
Evangelhos constituem uma autêntica luz inspiradora, quando lidos
adequadamente. Eles contêm um grande número de ensinamentos pitagóricos,
judaicos, confucionistas e budistas, e muitos princípios retirados de outras
religiões.
No
entanto, os ensinamentos de “Cristo” também estão além da literatura. Eles
correspondem simbolicamente à “voz do silêncio”, o mantra sem palavras emitido
pela própria alma de cada buscador da verdade, em seu aspecto universal e divino.
Dois: um Maná Invisível
“…
E quem tiver seu espírito encontrará nela [na doutrina de Cristo] um maná escondido.” (Livro Primeiro, capítulo 1,
parág. 2.)
Comentário:
Nenhuma
leitura da letra morta pode ser eficiente em filosofia ou religião. O real
significado está oculto, do ponto de vista do mundo das aparências. Portanto o
estudo filosófico deve combinar vários níveis de consciência. É necessário
decodificar as palavras para ver o ensinamento como um processo vivo e
criativo.
Três: a Visão Correta
“Quem
quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe preciso
que procure conformar à dele toda a sua vida.” (Livro Primeiro, capítulo 1,
parág. 2.)
Comentário:
Para
realmente entender a teosofia, devemos testar e aplicar o seu ensinamento na
vida diária. O mundo sagrado está potencialmente presente em cada situação. A
vida de H.P. Blavatsky - assim como a de outros sábios de diferentes épocas - constitui
uma fonte autorrenovada de orientação e nos inspira.
Quatro: Além das Palavras
“Que
te aproveita discutires sabiamente sobre a Santíssima Trindade, se não és
humilde, desagradando, assim, a essa mesma Trindade? Na verdade, não são
palavras elevadas que fazem o homem justo; mas é a vida virtuosa que o torna
agradável a Deus. Prefiro sentir a contrição [arrependimento] dentro de minha alma, a saber defini-la.” (Livro Primeiro, capítulo 1,
parág. 3.)
Comentário:
“Deus”
é a lei universal, e é a Natureza em sua totalidade e diversidade absolutas. A
Trindade simboliza o mistério da unidade interior que convive com o contraste e
diferença externos.
Nenhuma
fala pode ser mais valiosa que a intenção que está na sua origem. Tampouco pode
ser muito mais forte que a prática diária da qual emerge.
Cinco: a Caridade e a Graça
“Se
soubesses de cor toda a Bíblia e as sentenças de todos os filósofos, de que te
serviria tudo isso sem a caridade e a graça de Deus?” (Livro Primeiro, capítulo 1,
parág. 3.)
Comentário:
Ainda
que você saiba recitar de memória as escrituras religiosas de todos os povos e
os ensinamentos de cada filósofo clássico, oriental e ocidental, o fato será
inútil se você não perceber a unidade de todos os seres, e não enxergar o seu
próprio dever para com a Vida Una da qual você faz parte.
Seis: a Suprema Sabedoria
“Vaidade das vaidades, e tudo é vaidade (Eclesiastes, 1, 2), senão amar a Deus e só
a ele servir. A suprema sabedoria é esta: pelo desprezo do mundo tender ao
reino dos céus.” (Livro Primeiro, capítulo 1, parág. 3.)
Comentário:
Tudo
é vaidade, exceto a tarefa de cumprir nosso dever para com nosso eu superior e para
com a lei do equilíbrio universal.
Sete: uma Felicidade que Dura Sempre
“Vaidade
é, pois, buscar riquezas perecedoras e confiar nelas. Vaidade é também
ambicionar honras e desejar posição elevada. Vaidade, seguir os apetites da
carne e desejar aquilo pelo que, depois, serás gravemente castigado. Vaidade,
desejar longa vida e, entretanto, descuidar-se de que seja boa. Vaidade, só
atender à vida presente sem providenciar para a futura. Vaidade, amar o que
passa tão rapidamente, e não buscar, pressuroso, a felicidade que sempre dura.” (Livro Primeiro, capítulo
1, parág. 4.)
Comentário:
Estar
preocupado sobretudo com coisas de curto prazo, e desprezar o futuro de longo
prazo - que eu mesmo estou, em grande parte, preparando durante minha
encarnação atual -; isso também é vaidade.
Oito: Buscar o Invisível
“Lembra-te
a miúdo do provérbio: ‘Os
olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir’ (Eclesiastes 1, 8). Portanto, procura desapegar teu coração do amor
às coisas visíveis e afeiçoá-lo às invisíveis: pois aqueles que satisfazem seus
apetites sensuais mancham a consciência e perdem a graça de Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 1,
parág. 5.)
Comentário:
A
verdadeira consciência é a voz sem palavras do nosso eu superior ou alma
espiritual.
As
palavras “graça de Deus” designam a energia sutil e impessoal do amor cósmico e
indicam o sexto princípio da consciência humana. A expressão revela a unidade
transcendente dos seres ao mesmo tempo que respeita a sua aparente diversidade.
A graça superior está em todas as partes. Não pertence a alguma divindade
específica, muito menos a um deus “pessoal”.
Nove: o Valor do Conhecimento
“Todo
homem tem desejo natural de saber; mas que aproveitará a ciência, sem o temor
de Deus? Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus, do que o
filósofo soberbo que observa o curso dos astros mas se descuida de si mesmo.” (Livro Primeiro, capítulo 2,
parág. 1.)
Comentário:
Nosso
Criador é o nosso eu superior, que fez com que nascêssemos na presente
encarnação, mas também pode ser descrito como a Lei Universal.
Aquele
que “teme a Deus”, ou “reverencia o mundo divino”, é quem vive em harmonia com
sua própria alma espiritual.
Em
teosofia, o astrônomo e o humilde camponês devem ser a mesma pessoa. Não há
oposição entre os dois: o real conhecimento é inseparável da pureza de coração.
Dez: Autoconhecimento
“Aquele
que se conhece bem despreza-se e não se compraz em humanos louvores. Se eu soubesse
quanto há no mundo, porém me faltasse a caridade, de que me serviria isso
perante Deus, que me há de julgar segundo minhas obras?” (Livro Primeiro, capítulo 2,
mesmo parág. 1.)
Comentário:
“Desprezar-se”
aqui significa desprezar o caminho falso do egoísmo e admitir sinceramente seus
erros perante o tribunal da sua própria consciência.
Neste
trecho temos um princípio teosófico central. O “deus” que me irá julgar é o meu
eu superior. Ao final da minha encarnação atual, ele revisará cada ação feita, estabelecendo
as linhas cármicas não só dos meus estados pós-morte, mas do meu próximo
nascimento.
Onze: Evitar Distrações
“Renuncia
ao desordenado desejo de saber, porque nele há muita distração e ilusão. Os
letrados gostam de ser vistos e tidos como sábios. Muitas coisas há cujo
conhecimento pouco ou nada aproveita à alma. E muito insensato é quem de outras
coisas se ocupa e não das que tocam à sua salvação. As muitas palavras não
satisfazem à alma, mas uma palavra boa refrigera [renova] o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 2,
parág. 2.)
Comentário:
A
demonstração externa de santidade ou de erudição não satisfaz à alma. Conforme
diz outra versão desta obra (“The
Imitation of Christ”, translated by P.G. Zomberg, Dunstan Press), “é a
bondade das nossas vidas que traz conforto às nossas mentes”. E Helena Blavatsky escreveu:
“…A
Ética da Teosofia é ainda mais necessária à humanidade do que os aspectos
científicos dos fatos psíquicos da natureza e do homem.” [4]
Doze: uma Vida Sagrada
“Quanto
mais e melhor souberes, tanto mais rigorosamente serás julgado, se com isso não
viveres mais santamente. Não te desvaneças, pois, com qualquer arte ou
conhecimento que recebeste.” (Livro Primeiro, capítulo 2, parág. 3.)
Comentário:
O
“Dia do Julgamento” é também individual e não necessariamente coletivo, conforme
o pensador português Antônio Vieira explicou no ano de 1652 em um dos seus
sermões.[5]
O
“julgamento” individual é feito pelo nosso próprio eu superior de acordo com a
Lei do Carma e acontece ao final de cada encarnação. Os “julgamentos” coletivos
são pontos cármicos de não-retorno na evolução humana e planetária. Eles são
examinados no livro “A Doutrina Secreta”, de Helena Blavatsky.
O
que fazemos com o nosso suposto conhecimento é a questão-chave para a teosofia
autêntica. O conhecimento precisa ser confirmado e validado pela ação correspondente,
e esta será necessariamente imperfeita. A ação correta consiste na tentativa sincera de fazer o melhor que
podemos. Nossos esforços nesse sentido devem ser corrigidos e renovados
periodicamente, à medida que as circunstâncias se alteram. Gradualmente
aprendemos a aprender com os erros, e a concentrar a mente e o coração na meta
nobre livremente escolhida por nós.
Treze: Para Aprender o que é Útil
“Se
te parece que sabes e entendes bem muitas coisas, lembra-te que é muito mais o
que ignoras. ‘Não
presumas de alta sabedoria’ (Romanos, 11,
20), antes confessa a tua ignorância. Como tu queres a alguém preferir-te,
quando se acham muitos mais doutos do que tu e mais versados na lei? Se queres
saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada.” (Livro Primeiro, capítulo
2, mesmo parág. 3.)
Comentário:
Nossos
pensamentos devem ser honestos e verdadeiros. Seja o que for que disserem os que
nem sequer tentam agir com ética e
com respeito pela verdade, eles são seres infelizes e estão muito longe do
caminho correto. No entanto, merecem nosso respeito impessoal. Colherão o que
plantaram, e no futuro terão uma chance de corrigir seus erros.
Devemos
ter como objetivo aprender com quem é mais sábio que nós. Não importa se o
nosso contato com eles é interno ou externo e se ocorre através de palavras
escritas ou sem o uso de palavras. [6] Para
viver esta aprendizagem superior, é preciso tratar de ajudar o trabalho das
Almas que guiam a humanidade pelo caminho da luz.
Catorze: Permaneça Vigilante
“Ainda quando vejas alguém
pecar publicamente ou cometer faltas graves, nem por isso te deves julgar
melhor, pois não sabes quanto tempo poderás perseverar no bem.” (Livro Primeiro, capítulo 2,
parág. 4.)
Comentário:
Combata o crime e o egoísmo.
Lute ainda mais contra as sementes deles e as suas fontes. Não lave as mãos
diante da injustiça de qualquer tipo. Encare a injustiça contra qualquer um
como uma injustiça contra o seu pai, a sua mãe ou seu mestre espiritual. Tenha
piedade e compaixão diante das pessoas egoístas, mas não aceite as suas ações
daninhas. Os desinformados são parte da família humana, assim como você.
Quinze: Não Compare
“Nós todos somos fracos mas
a ninguém deves considerar mais fraco que a ti mesmo.” (Livro
Primeiro, capítulo 2, mesmo parág. 4.)
Comentário:
Cabe seguir o exemplo dos sábios,
e manter à nossa frente o ideal de progresso e perfeição humanos.
Se parecemos mais fortes do
que alguém, isso não tem importância. E se pensarmos que o fato é importante, este
pensamento vaidoso mostra fraqueza e ilusão.
Dezesseis: Ignorando Questões Obscuras
“Bem-aventurado aquele a quem
a verdade por si mesma ensina, não por figuras e vozes que passam, mas como em
si é. Nossa opinião e nossos juízos muitas vezes nos enganam e pouco alcançam.
De que serve a sutil especulação sobre questões misteriosas e obscuras [7], por cuja ignorância não seremos julgados?”
(Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 1.)
Comentário:
Agir de acordo com a Lei do
Equilíbrio é melhor que estar limitado a explicações teóricas. No entanto,
combinar as duas coisas é necessário. O lema do movimento teosófico é “Não há
religião mais elevada que a verdade”. A Verdade transcende todas as suas
descrições verbais, mas os enfoques limitados dela são úteis, quando examinados
de modo inteligente.
Dezessete: Olhar e Não Ver
“Grande loucura é
descurarmos as coisas úteis e necessárias, entregando-nos, com avidez, às
curiosas e nocivas. Temos olhos para não ver. (Salmo 113, 13)” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo parág. 1.)
Comentário:
A melhor defesa do peregrino
é o cumprimento do seu dever maior.
A compreensão saudável da
vida depende de olhar para ela desde um ponto de vista correto, e é a prática
do altruísmo que garante isso. As mentes egoístas distorcem tudo o que olham: a
verdadeira inteligência é universal.
Dezoito: o Coração Firme na Paz
“Aquele a quem fala o Verbo
eterno se desembaraça de muitas questões. Desse Verbo único procedem todas as
coisas e todas o proclamam e esse é o princípio que também nos fala
(João 8, 25). Sem ele não há entendimento nem reto juízo. Quem acha tudo neste Único, e tudo a ele refere e tudo nele vê, poderá
ter o coração firme e permanecer em paz com Deus.” (Livro Primeiro, capítulo 3,
parág. 2.)
Comentário:
O trecho inteiro ressoa em
harmonia com os escritos de H. P. Blavatsky.
O Verbo é o “Som”
primordial, o Mantra da manifestação universal, a Música das Esferas.
Dezenove: Silêncio e Verdade
“Ó Deus de verdade, fazei-me
um convosco na eterna caridade! Enfastia-me, muita vez, ler e ouvir tantas
coisas; pois em vós acho tudo quanto quero e desejo. Calem-se todos os
doutores, emudeçam todas as criaturas em vossa presença; falai-me vós só.” (Livro Primeiro, capítulo 3,
mesmo parág. 2.)
Comentário:
A personalização simbólica
do universo e de suas leis deve ser aceita como um processo cultural que ocorre
em todas as nações ao redor do mundo, e como uma forma de codificar e registrar
o Mistério inefável. A tradição esotérica ensina como interpretar as lendas
relacionadas a Zeus e Saturno, ao deus cristão, ao Brahman e ao Parabrahman
hindus, aos Imortais taoistas, e assim por diante.
Quando a crença cega
predomina, algo é considerado verdade porque “deus”, ou o Cristo, ou algum
profeta ou guru diz que é verdade. Em filosofia, ocorre o contrário. Algo não é
verdade porque um sábio afirma que é, mas o sábio diz que algo é verdadeiro
porque essa é a verdade.
O verdadeiro Mestre nunca se
coloca acima da lei ou da verdade, mas trabalha humildemente a serviço delas.
Vinte: Recolhimento Traz Compreensão
“Quanto mais recolhido for cada
um e mais simples de coração, tanto mais sublimes coisas entenderá sem esforço,
porque do alto recebe a luz da inteligência.” (Livro Primeiro, capítulo 3,
parág. 3.)
Comentário:
Este ensinamento é parte da
teosofia original de Helena Blavatsky e dos Mestres de Sabedoria.
Vinte e Um: o Espírito Puro
“O espírito puro, singelo e
constante não se distrai no meio de múltiplas ocupações porque faz tudo para
honra de Deus, sem buscar em coisa alguma o seu próprio interesse. O que mais
te impede e perturba do que os afetos imortificados do teu coração? O homem bom
e piedoso ordena primeiro no seu interior as obras exteriores; nem estas o
arrasam aos impulsos de alguma inclinação viciosa, senão que as submete ao
arbítrio da reta razão.” (Livro Primeiro, capítulo 3, mesmo
parág. 3.)
Comentário:
Nosso “Deus” ou “Senhor” é
anônimo: é o nosso eu superior, e a ele devemos lealdade.
Vinte e Dois: Enxergando as Nossas Fraquezas
“Que mais rude combate haverá
do que procurar vencer-se a si mesmo? E este deveria ser nosso empenho:
vencermo-nos a nós mesmos, tornarmo-nos cada dia mais fortes e progredirmos no
bem.”
“Toda a perfeição, nesta vida,
é mesclada de alguma imperfeição, e todas as nossas luzes são misturadas de
sombras. O humilde conhecimento de ti mesmo é caminho mais certo para Deus que
as profundas pesquisas da ciência.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parágrafos
3 e 4.)
Comentário:
O cristianismo que gira em
torno de rituais não oferece um caminho para o esclarecimento e a iluminação. O
estudo da letra morta das escrituras é inútil, e a advertência inclui os
escritos teosóficos. Para trilhar o caminho que leva à Verdade é necessário
fazer pesquisas independentes, com um coração humilde e observando calmamente nossas
próprias fraquezas.
Vinte e Três: a Vida Virtuosa
“Não é reprovável a ciência
ou qualquer outro conhecimento das coisas, pois é boa em si e ordenada por
Deus; sempre, porém, devemos preferir-lhe a boa consciência e a vida virtuosa. Muitos,
porém, estudam mais para saber, que para bem viver; por isso erram a miúdo e pouco
ou nenhum fruto colhem.” (Livro Primeiro, capítulo 3, parág. 4.)
Comentário:
O propósito da vida é
aprender. No entanto cada porção de conhecimento que obtemos vem até nós com uma
inevitável quota de deveres éticos.
Cabe examinar cuidadosamente
para que usamos o conhecimento. Porque só um coração honesto, ao buscar metas
nobres, sabe usar o conhecimento de maneira correta e está à altura das
informações mais amplas sobre a vida.
Vinte e Quatro: a Pergunta Que Será Feita
“Ah! se se empregasse tanta
diligência em extirpar vícios e implantar virtudes como em ventilar questões,
não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta relaxação nos
claustros. De certo, no dia do juízo não se nos perguntará o que lemos, mas o
que fizemos; nem quão bem temos falado, mas quão honestamente temos vivido.” (Livro Primeiro, capítulo 3,
parág. 5.)
Comentário:
O cristianismo místico
sempre teve uma relação difícil com as igrejas autoritárias.
Um exemplo disso, entre
milhares, é o fato de que Geert de Groote - o fundador da Irmandade da Vida em
Comum da qual fazia parte Tomás
de Kempis -, denunciou e combateu os abusos sacerdotais. [8]
Vinte e Cinco: o Verdadeiro Sábio
“Dize-me: onde estão agora
todos aqueles senhores e mestres que bem conheceste, quando viviam e floresciam
nas escolas? Já outros possuem suas prebendas [posições
de prestígio], e nem sei se porventura deles se lembram. Em
vida pareciam valer alguma coisa, e hoje ninguém deles fala.”
“Oh! como passa depressa a
glória do mundo! Oxalá a sua vida tenha correspondido à sua ciência; porque,
destarte, terão lido e estudado com fruto. Quantos, neste mundo, descuidados do
serviço de Deus, se perdem por uma ciência vã! E porque antes querem ser
grandes que humildes, se esvaecem em seus pensamentos (Romanos 1, 21). Verdadeiramente grande é
aquele que tem grande caridade. Verdadeiramente grande é aquele que a seus
olhos é pequeno e avalia em nada as maiores honras. Verdadeiramente prudente é
quem considera como lodo tudo o que é terreno, para ganhar a Cristo (Filipenses 3, 8). E verdadeiramente sábio
é aquele que faz a vontade de Deus e renuncia à própria vontade.” (Livro Primeiro, capítulo 3,
parágrafos 5 e 6.)
Comentário:
A “vontade de Deus” é o
propósito da nossa alma espiritual; “Cristo” simboliza a consciência cósmica.
Vinte e Seis: Independência e Autorresponsabilidade
“Não se há de dar crédito a
toda palavra nem a qualquer impressão, mas cautelosa e naturalmente se deve,
diante de Deus, ponderar as coisas.” (Livro Primeiro, capítulo 4,
parág. 1.)
Comentário:
Com a exceção da palavra
“Deus”, esta ideia pertence literalmente às filosofias de todos os povos, incluindo
o budismo, o pitagorismo e a teosofia.
Vinte e Sete: Evite Falar Mal dos Outros
“Mas ai! que mais facilmente
acreditamos e dizemos dos outros o mal que o bem, tal é a nossa fraqueza. As
almas perfeitas, porém, não creem levianamente em qualquer coisa que se lhes
conta, pois conhecem a fraqueza humana inclinada ao mal e fácil de pecar por
palavras.”
“Grande sabedoria é não ser
precipitado nas ações, nem aferrado obstinadamente à sua própria opinião;
sabedoria é também não acreditar em tudo que nos dizem, nem comunicar logo a
outros o que ouvimos ou suspeitamos.” (Livro Primeiro, capítulo 4,
parágrafos 1 e 2.)
Comentário:
Este ensinamento é teosófico
e H. P. Blavatsky fez afirmações semelhantes.
Vinte e Oito: Prudência e Humildade
“Toma conselho com um varão
sábio e consciencioso, e procura antes ser instruído por outrem, melhor que tu,
que seguir teu próprio parecer. A vida virtuosa faz o homem sábio diante de
Deus e entendido em muitas coisas. Quanto mais humilde for cada um em si e mais
sujeito a Deus, tanto mais prudente será e calmo em tudo.” (Livro Primeiro, capítulo 4,
parágrafo 2.)
Comentário:
Entre os degraus da Escada
de Ouro dos ensinamentos teosóficos, podemos ver os seguintes:
“Afeto fraternal para com seu
codiscípulo; presteza para dar e receber conselho e instrução; leal senso de
dever para com o Instrutor…”. [9]
Os sábios ensinam que a ajuda
mútua é essencial na busca da verdade.
Vinte e Nove: o Amor à Verdade
“Nas Sagradas Escrituras
devemos buscar a verdade, e não a eloquência. Todo livro sagrado deve ser lido
com o mesmo espírito que o ditou. Nas Escrituras devemos antes buscar nosso
proveito que a sutileza de linguagem. Tão grata nos deve ser a leitura dos
livros simples e piedosos, como a dos sublimes e profundos. Não te mova a
autoridade do escritor, se é ou não de grandes conhecimentos literários; ao
contrário, lê com puro amor a verdade. Não procures saber quem o disse; mas
considera o que se diz.” (Livro Primeiro, capítulo 5, parág. 1.)
Comentário:
A ideia de Sagradas
Escrituras inclui os livros clássicos que pertencem às religiões e
filosofias de todos os povos e todos os tempos, desde o Manuscrito Huarochirí, dos
Andes, até o “Popol Vuh” da América Central e “A Doutrina Secreta”, publicada
no século 19.
Deve-se ler os livros sobre
sabedoria divina desde o ponto de vista do coração e de acordo com a afinidade
interior.
Trinta: a Verdade Fala de Muitos Modos
“Os homens passam, mas
a verdade do Senhor permanece eternamente (Salmo
116, 2). De vários modos nos fala Deus, sem acepção de pessoas.” (Livro Primeiro, capítulo 5,
parág. 2.)
Comentário:
A anônima Lei Universal fala
para nós de muitas maneiras.
Um Mestre de Sabedoria
escreveu para uma discípula leiga: “Trate, filha, de aprender uma lição através de quem quer que seja que ela estiver sendo
dada. ‘Até mesmo as pedras podem pregar sermões’.” [10]
A independência é
fundamental, e o Buddha ensinou:
“Não se deixem desorientar
por relatos, por tradição ou por ouvir dizer. Não se deixem desorientar pelo
conhecimento das Coleções (de Escrituras), nem por mera lógica e inferência,
nem pela consideração de razões, nem pela reflexão sobre algum ponto de vista e
pela aprovação dele, nem pela conveniência, nem pelo fato de o recluso (que
defende o ponto de vista) ser o seu instrutor. Mas quando vocês souberem por si
mesmos: ‘Estas coisas não são boas, estas
coisas são erradas, estas coisas são censuradas pelos inteligentes, estas
coisas, quando realizadas e colocadas em prática, conduzem à perda e ao
sofrimento’ - então as rejeitem.” [11]
Trinta e Um: Lê com Humildade
“A nossa curiosidade nos
embaraça, muitas vezes, na leitura das Escrituras; porque queremos compreender e
discutir o que se devia passar singelamente. Se queres tirar proveito, lê com
humildade, simplicidade e fé, sem cuidar jamais do renome do letrado.”
“Pergunta de boa vontade e
ouve calado as palavras dos santos; nem te desagradem as sentenças dos velhos,
porque eles não falam sem razão.” (Livro Primeiro, capítulo 5, mesmo parág.
2.)
Comentário:
Lê os escritos dos homens e
mulheres sábios de todos os tempos.
Escuta os teus codiscípulos,
porque eles são corresponsáveis pelo teu bem-estar espiritual, e a
responsabilidade é mútua. Podes aprender com as ações corretas deles, e também
podes aprender com os erros deles, assim como eles aprendem com os teus erros e
teus acertos.
Trinta e Dois: Aceita a Paz
“Todas as vezes que o homem
deseja alguma coisa desordenadamente, torna-se logo inquieto. O soberbo e o
avarento nunca sossegam; entretanto, o pobre e o humilde de espírito vivem em
muita paz. O homem que não é perfeitamente mortificado facilmente é tentado e
vencido, até em coisas pequenas e insignificantes. O homem espiritual, ainda um
tanto carnal e propenso à sensualidade, só a muito custo poderá desprender-se
de todos os desejos terrenos. Daí a sua frequente tristeza, quando deles se
abstém, e fácil irritação, quando alguém o contraria.”
“Se, porém, alcança o que
desejava, sente logo o remorso da consciência, porque obedeceu à sua paixão,
que nada vale para alcançar a paz que almejava. Em resistir, pois, às paixões,
se acha a verdadeira paz do coração, e não em segui-las. Não há portanto, paz
no coração do homem carnal, nem no do homem entregue às coisas externas, mas
somente no daquele que é fervoroso e espiritual.” (Livro Primeiro, capítulo 6,
parágrafos 1 e 2.)
Comentário:
O estudante bem informado mantém uma busca
constante do ideal de progresso e perfeição humanos, e faz experiências
práticas de desapego em relação às coisas terrenas.
O peregrino evita dois extremos.
Ele não deve obedecer cegamente aos
apetites inferiores; de outro lado, é inútil seguir um tipo de disciplina que
gera um excesso de conflitos neuróticos. O equilíbrio é essencial. O esforço é
de longo prazo, e cada um deve ser o seu próprio mestre e discípulo.
Há também marés cármicas, que devem ser observadas e compreendidas nesse
esforço de uma vida inteira.
Uma vez que o peregrino compreende
verdades universais, os desejos do eu inferior perdem força gradualmente. A disciplina diária, o estudo e
a contemplação da lei universal destroem pouco a pouco as raízes do egocentrismo
no eu inferior do estudante.
O alicerce da autodisciplina vitoriosa
está na compreensão da nossa interconexão pessoal com o Cosmo inteiro. Quando o
horizonte individual inclui o horizonte da galáxia, fica mais fácil aceitar a
paz e a vida humilde no plano físico.
Trinta e Três: Vive Como um Pobre
“Insensato é quem põe sua
esperança nos homens ou nas criaturas. Não te envergonhes de servir a outrem
por Jesus Cristo, e ser tido como pobre neste mundo.” (Livro Primeiro, capítulo 7,
parág. 1.)
Comentário:
A ideia de que alguém não deve ter vergonha de servir a outrem
pelo bem da sua própria alma espiritual está presente em religiões mais
antigas que o cristianismo.
Nos Vedas, por exemplo, o Brhad-aranyaka Upanixade afirma:
“Não é pelo marido em si que o marido é
amado, mas é pela presença do Ser [a
inteligência universal] no marido, que o marido é amado. Não é pela esposa
em si que a esposa é amada, mas é pela presença do Ser [a inteligência universal] na esposa, que a esposa é amada. Não é
pelos filhos em si mesmos que os filhos são amados, mas é pela presença do Ser
[a inteligência universal] nos
filhos, que os filhos são amados.” [12]
Há uma dimensão impessoal e divina nos
afetos humanos, da qual podemos tornar-nos plenamente conscientes.
Trinta e Quatro: Faze o que Está a Teu Alcance
“Não confies em ti mesmo,
mas põe em Deus [a Lei] tua esperança. Faze de tua parte o que
puderes, e Deus [a Lei] ajudará
tua boa vontade. Não confies em tua ciência, nem na
sagacidade de qualquer vivente, mas antes na graça de Deus [a Lei], que ajuda os humildes e abate os presunçosos.” (Livro Primeiro, capítulo 7, mesmo parág. 1.)
Comentário:
A renúncia ao desejo pessoal
conduz a uma vida de simplicidade voluntária, na qual a ética e a sabedoria são
possíveis.
A justiça é imparcial, e um
dos Mahatmas dos Himalaias escreveu que, para os raja-iogues, “um lustrador de
botas honesto é tão bom quanto um rei honesto, e […] um varredor de ruas imoral
é muito melhor e mais desculpável do que um imperador imoral.” [13]
A recomendação “faze de tua parte o que puderes…” expressa a principal ideia dos
ensinamentos de Epicteto. Ao cumprir o seu dever espiritual interno, o
peregrino evita desperdiçar energias com
o que não depende dele. Focando a atenção no que lhe diz respeito, ele aprende a
cooperar não só com o seu próprio eu superior, mas com outros seres, mais experientes
e mais avançados.
NOTAS:
[1] “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis, Ed. Vozes,
Petrópolis, vigésima-oitava edição, 1993, 277 pp. O livro tem numerosas edições
em português, inclusive da editora Ediouro (1968), em que o nome de autor
aparece como Thomas A. Kempis; da
Editora Ave-Maria Ltda. (SP, 1928), em que não há nome de autor; e da Livraria
Editora Francisco Alves, RJ, 1898, traduzido em versos por Affonso Celso e com
620 páginas. O livro, o capítulo e o parágrafo de cada citação são mencionados
entre parênteses no seu final. Edições
em inglês da obra incluem: “The Imitation of Christ”, translated by P.G.
Zomber, Dunstan Press, Maine, USA, copyright 1984, 250 pp.; “Of the Imitation of Christ”, by Thomas
à Kempis, Whitaker House, USA, 1981, 256 pp.; “The Inner Life”, Penguin Books,
2004, translated by Leo Sherley-Price, 108 pp.; e “The Imitation of Christ”,
Thomas A. Kempis, translated by George F. Maine, published by Collins Sons,
1957, London and Glasgow, 1957, 280 pp.
[2] “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey
Parrinder, itens “Brethren of the Common Life”, “Kempis, Thomas à”, e “Nicholas
of Cusa”.
[3] Sobre Nicolau de Cusa, veja em nossos websites o artigo
“Reencarnação Consciente e Imediata”.
Examine também “Collected Writings”, H. P. Blavatsky, TPH, vol. XIV, pp.
377-378. Leia os itens “Nicholas of Cusa” e “Brethren of the Common Life”, conforme
as indicações dadas na Nota 2, acima. Cabe ter presente o fato de que H.P.
Blavatsky escreve, em “Ísis Sem Véu”, Ed. Pensamento, volume III, p. 29: “A Magia, em todos os seus aspectos, foi amplamente e quase abertamente praticada
pelo clero até a Reforma.” De posse destas informações, fica mais fácil
compreender por que a mística cristã, incluindo o franciscanismo, tem até hoje
elementos teosóficos importantes.
[4] “Five Messages”, H. P.
Blavatsky, Theosophy Co., Los Angeles, 1922, Second message, p. 12. O livreto
está disponível em nossos websites. Para vê-lo, basta clicar aqui.
[5]
Padre Antônio Vieira, “Sermões”, Editora
das Américas, SP, volume IV, 1957, 441 pp., ver por exemplo pp. 28-40.
[6] Um tal contato frequentemente inclui as palavras escritas
de ensinamentos clássicos e uma inspiração silenciosa em níveis superiores de
percepção.
[7] Uma das melhores edições em inglês desta obra, preparada
por P.G. Zomber (ver nota 1, acima), usa a
expressão “coisas esotéricas”, “esoteric things” (p. 6).
[8] Veja “A Concise Encyclopedia of Christianity”, Geoffrey Parrinder, item “Brethren
of the Common Life”, p. 48.
[9] Examine o artigo “Comentários à Escada de Ouro”.
[10] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C. Jinarajadasa, Ed.
Teosófica, Brasília, 1996, ver p. 147, segunda carta para Laura C. Holloway.
[11] “The Wisdom of Buddhism”, Edited by Christmas Humphreys,
Curzon-Humanities, London, UK, 1987, 280 pp., p. 71.
[12] “The Principal Upanisads”, Edited with Notes by S. Radhakrishnan, London:
George Allen & Unwin Ltd; New York: Humanities Press Inc., 1974, 958 pp., ver
p. 197.
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Veja em nossos websites outros artigos sobre Cristianismo e Teosofia.
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Em 14 de setembro de 2016, um grupo de estudantes decidiu criar a Loja Independente de Teosofistas. Duas
das prioridades da LIT são tirar
lições práticas do passado e construir um futuro saudável.
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