O Uso Sábio da
Intenção Paradoxal
Malba Tahan
“Allah te castigue, velho nojento! Longe de mim, podridão!”
Nota Editorial de 2018:
“Malba Tahan” é o nome literário do
professor Júlio César de Mello e Souza
(1895-1974). Suas obras abrem caminho para a ética universal e a sabedoria
inter-religiosa no mundo lusófono.
O conto “Ingratidão Exigida” narra um episódio de
“intenção paradoxal” e revela a aguda percepção que Malba Tahan tinha da alma
humana. O psicólogo Viktor Frankl, fundador da Logoterapia, escreveu que um
grande produtor de ansiedade é “o medo do medo”, o que por
sua vez dá lugar aos complexos mecanismos de “fuga
do medo”. Para Frankl, “este é o ponto de partida de todas as neuroses de
ansiedade” [1]
A técnica da intenção paradoxal consiste em olhar
de frente para o pior cenário, evitando
assim o medo do medo. Estando preparado para o pior,
fica mais fácil buscar o melhor. O medo de acontecimentos futuros resulta do
despreparo. Todo medo desnecessário atrai
a coisa temida. Diante disso, a técnica da intenção
paradoxal esvazia a ansiedade. Ela gera um desapego maduro diante da vida de
curto prazo, e uma liberdade interior diante das circunstâncias mutáveis. A
mesma ideia da intenção paradoxal está presente de vários modos na tradição zen
e no cristianismo. Ela é aplicada por Francisco de Assis [2] segundo narra o capítulo nove da obra “I Fioretti”.
Cabe ressaltar ainda o fato de que uma nota de
rodapé do autor - a nota 5 - contém
todo um conto das Mil e Uma Noites
sobre as deformações provocadas na alma pelo rancor.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Ingratidão Exigida
Malba Tahan
Cumpre-me dizer, antes de tudo, que muito
raramente me comovo ou me admiro diante dos espetáculos torvos da vida.
Certa vez, porém, ao passar junto à mesquita de Omar,
presenciei uma cena que me deixou impressão indelével.
Velho xeique [3],
aproximando-se de um mendigo que esmolava à entrada do famoso templo de Bagdá,
atirou-lhe aos pés um punhado de moedas louras e cantantes.
Ao tempo que as arrebanhava com olhos esbugalhados e
mãos rapaces [ávidas], o mísero
pedinte, ao invés de entregar-se às usuais e surradas demonstrações de
reconhecimento, entrou a descompor o generoso ancião em sujo linguajar,
chamando, para sobre as suas cãs [cabelos
brancos], não as bênçãos de Allah (com Ele a oração e a glória!), mas todas
as maldições do inferno, todas as pragas que assolam a espécie humana:
- Allah te castigue, velho nojento! Longe de mim,
podridão! Possa o fogo do Maligno livrar-nos de tuas mãos pestilentas,
consumindo-te inteiro!
Desta vez não pude seguir indiferente. Todas as minhas
energias se revoltaram, escaldantes de ódio, contra aquele monstruoso mendigo, que
assim pagava, com impropérios e pragas, o generoso óbolo do bom passante.
Prestes
a desancá-lo com o meu bastão, gritei-lhe com mal contido ódio:
-
Cala-te, ó cão, filho de cão! Pelas barbas do Profeta! Não sei porque não te
esmago já os ossos, ó torpe criatura! Pois então tens a coragem de ofender
àquele generoso ancião que te deu o pão de muitos dias?
-
Não me condenes nem me castigues, ó senhor! - respondeu-me o pedinte com
brandas inflexões na voz macia e humilde. - Se assim procedo, é porque assim o
exigiu de mim aquele meu benfeitor!
Fiquei
atônito ao ouvir tão inesperada e cabal defesa de um proceder que parecia não
ter nenhuma. Seria, assim, possível que houvesse na Arábia, na Pérsia ou no
Egito, um homem que se entregasse a trocar espontaneamente os mais cálidos
benefícios pelas mais negras maldições?
Dando
livre curso às mais desencontradas cogitações, cheguei a concluir que o velho
esmoler estava sendo vítima de alguma implacável demência ou talvez andasse a
cumprir algum estranho voto feito, alucinadamente, em terrível dependura.
Como
quer que fosse, não pude dominar a curiosidade, que crescera em mim, de
deslindar a meada.
-
Allah te castigue, velho nojento! Longe
de mim, podridão! Possa o fogo do Maligno livrar-nos de tuas mãos pestilentas,
consumindo-te inteiro!
Pressentindo
nisso um caso digno de registro, resolvi correr no enlaço do velho xeique que,
indiferente, seguia pela rua afora, no seu caminhar vagaroso e compassado.
-
Ó xeique dos xeiques - disse-lhe ao alcançá-lo, saudando-o com respeito. -
Allah vos cubra de benefícios e prolongue, por muitos anos, a vossa preciosa
existência! Acabo de assistir, surpreendido e revoltado, à conduta indigna
daquele vil mendigo da mesquita. Era meu intuito castigar o ingrato de maneira
terrível! Disse-me ele, porém, que fostes vós mesmo quem exigiu dele aqueles
insultos e maldições. É verdade - ó venerável xeique! - é verdade que tendes
por justo pagarem-se benefícios e esmolas com a mais negra das ingratidões?
-
É verdade, sim, meu filho - respondeu-me ele, pousando em meu ombro a mão
trêmula que tantos benefícios espalhava. - É verdade! Não lhe mentiu o mendigo.
Fui eu mesmo que lhe impus não só a ele, senão a todos a quem valho, aquele
modo de proceder. E a minha exigência não passa de um egoísmo gerado da minha
filantropia. Sou de natureza esmoler e caridoso. Não têm conta as bocas
famintas a que dei pão, os lábios sedentos a que cheguei um púcaro de água, os
enregelados que se agasalharam nas dobras do meu manto. De todos, porém,
passada a fome, estancada a sede, vencido o frio, só recebia as mais cruas provas
de ingratidão. Passada a hora da necessidade, passava a lembrança do benefício!
-
A princípio, meu filho - continuou o velho - doíam-me as injustiças daquele que
eu beneficiava, vinham-me ímpetos de transformar os meus sentimentos de piedade
nesse indiferentismo com que a maioria dos homens aprecia as misérias de seus
semelhantes. Repudiando, porém, essa fraqueza, esse desânimo, que me assaltava
quando me feria uma ingratidão profunda, deliberei habituar-me a receber tais
pagas. Allah (com Ele a oração e a glória!) seja louvado pela sábia inspiração
que me deu! Comecei a exigir, de todos quantos recebem qualquer auxílio meu,
que me deem desde logo o que me iriam dar mais tarde: uma ingratidão como paga.
E,
parando um momento, na curva da rua, o original e piedoso velho deixou cair uma
moeda de ouro aos pés de um cego, que dormitava apoiado no umbral de uma
taverna.
O
cego, que reconhecera pela voz o xeique doador, exclamou iracundo:
-
O demônio que te persiga, velho imbecil!
O
velho sorriu.
Não
era de esperar outra coisa.
* * *
Os
homens bons e generosos não devem nunca permitir que a ingratidão estiole, ou
sequer embace, os sentimentos que o coração lhes dita.
“Esquecei
as ingratidões” - dizia Al-Halaj - “e perdoai os ingratos. Allah é justo e
clemente.[4] Os bons serão sempre
julgados segundo a grandeza infinita da misericórdia de Deus.” [5]
NOTAS:
[1] “The Unheard
Cry for Meaning”, Viktor E. Frankl, Touchston Book/Simon and Shuster,
1978, 191 pp., ver p. 116. (CCA)
[2] “São Francisco
de Assis, Escritos e Biografias do Primeiro Século Franciscano”, Ed. Vozes,
Petrópolis, RJ, 1991, 1372 pp., ver pp. 1098-1099. (CCA)
[3] Xeique: palavra
árabe que significa chefe, líder, ancião. É também um título honroso. (CCA)
[4] A ideia de um deus monoteísta, e portanto
único e excludente - seja sob o nome de Allah ou sob qualquer outro nome - leva
a grande quantidade de raiva, intolerância, terror e guerras. Veja o documento “Mestres Ensinam Que Não Há Deus”.
(CCA)
[5] NOTA DE MALBA-TAHAN: Ingratidão
- O símbolo perfeito da ingratidão (pagar o bem com o mal) aparece numa das
lendas mais famosas do livro das “Mil e uma noites”. Vamos encontrá-lo na
história intitulada “O pescador e o
gênio”:
Um pobre pescador ao retirar sua
rede encontrou dentro dela um grande vaso de cobre amarelo, cheio e intacto.
Tomado de viva curiosidade, o pescador abriu o vaso e viu, com espanto, dele
desprender-se uma fumaça azulada que subiu para o céu formando a figura
gigantesca de um gênio.
Uma vez em liberdade, disse o
pavoroso ifrite [gênio malévolo] ao infeliz pescador: - Pelo bem que fizeste, ó
pescador, libertando-me desse vaso, vais morrer!
Respondeu o pescador: Que torpe
ingratidão, ó ifrite! - Queira Allah fazer com que o castigo do céu caia sobre
ti!
Tornou o gênio com uma voz
tremenda que rolava como um trovão pelo espaço: - Medita um instante, mísero
muçulmano, e escolhe a espécie de morte que preferes!
- Que fiz eu para merecer a
morte? - interpelou aflito o pescador.
- Ainda perguntas, ó insensato! -
esbravejou o gênio. - Fica sabendo que eu estava preso, nesse vaso, há mais de
três séculos, chumbado com o selo de Salomão, sofrendo torturas incríveis. Não
percebes que a minha existência era um verdadeiro inferno? E como fui salvo?
Fui salvo por ti, unicamente por ti! E é justamente por esse motivo que eu te
quero matar.
- Não me parece justa, ó ifrite!
essa forma de proceder - protestou o pescador.
Disse então o gênio:
- Devo dizer-te que sou um gênio
rebelde. Revoltei-me contra Salomão, filho de David. Para castigar a minha
rebeldia mandou Salomão encerrar-me no fundo desse vaso fechando-o com um selo
de chumbo onde se achava gravado o nome de Allah, o Altíssimo! Apesar da minha
força e do meu poder eu não era capaz de vencer o encantamento do selo de
Salomão. O vaso foi atirado no seio das ondas e rolou comigo para o fundo do
mar. Fiquei cem anos no suplício desse cativeiro e dizia de mim para mim:
“Darei riquezas eternas a quem me libertar!” Passaram-se, porém, cem anos e
ninguém me libertou. Quando entrei no segundo período de cem anos, disse -
“Revelarei todos os tesouros da terra àquele que me libertar!” Mas o segundo
século decorreu e ninguém me libertou. Ao iniciar o terceiro século formulei
novo juramento: “Concederei três coisas a quem me libertar!” Foi tudo inútil;
ninguém veio em meu auxílio. Tomado de imenso furor, declarei: “Agora, matarei,
sem piedade, àquele que me libertar!” Foi quando tu, pescador, vieste em meu
socorro e, graças ao teu auxílio, consegui aquilo que mais ambicionava: a
liberdade! Concedo-te, agora, que escolhas a espécie de morte que preferes. (MT)
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O conto “Ingratidão Exigida” é reproduzido do livro “Maktub!”, de Malba Tahan, 11ª Edição, 1964, Ed. Conquista, Rio de
Janeiro, 220 pp., ver pp. 205-210. A ortografia foi atualizada. A imagem que
ilustra o conto em nossos websites associados é a mesma do livro. A publicação
online ocorreu dia 8 de setembro de 2018.
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Clique para ler o artigo “O Mundo de Malba Tahan”, de
Carlos Cardoso Aveline. Veja outros contos de Malba Tahan.
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