O Parlamento é Útil e Só Sentimos
a Sua Utilidade Quando Ele se Fecha
a Sua Utilidade Quando Ele se Fecha
Lima Barreto
Nota Editorial de 2021
Com palavras simples, o texto a seguir oferece uma visão extraordinariamente profunda do ser humano e do processo social. Não por acaso Lima Barreto já foi chamado de “o Dostoievsky brasileiro”.
Publicado pela primeira vez em 14 de janeiro de 1922, o artigo mostra o perigo autoritário como algo presente no mundo interno de cada cidadão, especialmente quando ele tem a oportunidade de exercer algum poder sobre outrem, ainda que seja uma só pessoa.
Com seu humor ácido, Lima Barreto demonstra que a democracia é o menos ruim dos regimes. Um parlamento, por pior que seja, é ainda um local de debate livre, e precisa ser valorizado como espaço em que sempre é possível exercer uma lucidez coletiva. O segundo parágrafo do artigo - “Todo o brasileiro nasceu…” - não deve ser visto como uma condenação eterna ou profecia negativa. Constitui um alerta realista sobre o que precisa ser evitado. É uma advertência prática que torna mais fácil a vitória da paz.
Quando cada um melhora a si mesmo, a coletividade melhora espontaneamente - sem necessidade de grandes conflitos - e o bom senso aponta as soluções. O artigo é um momento de autocrítica do brasileiro. A mudança necessária deve surgir de dentro para fora, da alma para o mundo, e é uma mudança de cultura: da cultura da esperteza e da agressão, para a cultura do respeito mútuo, começando pelo respeito a si mesmo.
(Carlos Cardoso Aveline)
O Encerramento do Congresso
Lima Barreto
Todos nós falamos mal dos nossos senadores e deputados; todos nós os apelidamos o mais atrozmente; mas quando o Congresso se fecha, há um vazio na nossa vida comum e nos enchemos de pavor.
Todo o brasileiro nasceu mais ou menos para ser um tiranozinho em qualquer coisa, e se é feito guarda-civil ou ministro da Justiça, cabo de destacamento ou chefe de Polícia, guarda-fiscal ou Presidente da República - trata logo de pôr pessoalmente em ação a autoridade de que está investido pelo Estado místico.
Então, quando é Presidente da República, é que se vê bem o que pensa sobre princípio de autoridade, um brasileiro qualquer de Uruburetama ou Perdizes, afinal de qualquer lugarejo por aí. Apossa-se dele logo um delírio cesariano e a sua autoridade, que é limitada e contrabalançada, ele a transforma em ilimitada e sem peias, tal e qual a de um Tibério, a de um Nero ou a de um Calígula. Não têm nunca a marca de grandeza os seus desvarios de poder; são chatos, são medíocres; mas é que eles não são Césares e nós o Império Romano.
As manifestações de sua loucura não alcançam, como em Calígula, à injúria cruel lançada às faces de todo um povo de servis; mas chegam ao grotesco de armar protocolos sisudos, cheios de parágrafos e alíneas, para regular a recepção de um vizinho qualquer.
Mas, no que eles não se deixam vencer por qualquer tirano, antigo ou moderno, é nos encarceramentos. Têm uma grande volúpia, em encarcerar, em prender, em deixar “mofar”. Dão carta branca a seus beleguins e estes por sua vez procedem de acordo com a inteligência e moralidade que tiverem.
No regime republicano, e à proporção que ele avança em anos, os processos de encarceramento e depuração se aperfeiçoam. Tivemos a ilha da Cobras; tivemos o “Satallite” - que tivemos mais?
Quando o Congresso está aberto, os governos têm medo de agir tão limpamente à moda de paxás turcos. Como que lhe têm medo: é a sua consciência. Quando, porém, ele está fechado, a fera carniceira não tem mais o chicote do domador à vista e faz o que quer.
Nesta hora sombria de angústias e apreensões, é de encher de saudades o fechamento do Congresso. Que vai ser de nós? A que vão ficar reduzidas as três liberdades primordiais à nossa existência: a individual, a de pensamento e a de imprensa?
Se o Congresso estivesse aberto as coisas não correriam assim tão facilmente. Havia debate e, sempre, ele seria uma válvula aberta, por onde pessoas protegidas por imunidades sagradas, poderiam protestar contra as violências governamentais; mas, estando ele fechado, quem reclamará em nome das vítimas? Ninguém e a governança irá deslizando numa paz podre de vilaiete turco. [1]
De resto, muito perdemos. Por exemplo, passar três meses sem os discursos do Sr. Chiquinho, é mesmo uma calamidade. Os seus discursos são um modelo do “Dicionário de Ciências Morais e Políticas”. É pena que fiquem assim e as suas partes não sejam condensadas para um objetivo em vista. Contudo, uma vantagem têm eles: ensinar a muitos vadios opiniões de vários autores notáveis que podem ser aproveitadas muito convenientemente, se o vadio for inteligente.
Encerrados os trabalhos parlamentares, não temos ocasião de todas as manhãs travar conhecimento com essa singular filosofia política que é feita, a um só tempo, de economia doméstica e preceitos caseiros. Ele despreza a sabedoria livresca; é discípulo bem-amado da preta Maria que foi cozinheira de sua família paterna e entendida em quitutes e política.
Temos ainda a sentir a falta das sonoridades vocais dos requintados leaders. Que tipos invejáveis são esses nossos paredros! [2] A Inglaterra já no-los quis arrebatar.
Graças a Deus, eles não se foram, como ainda não se foram para a Europa o Corcovado, o Bendengó e as múmias do museu.
Tanta coisa boa nos dá o Congresso que não podemos deixar de lamentar essa sua falta temporária.
No seu penúltimo dia de funcionamento, houve lá dois rolos a sério - coisa que prova muito à evidência a sinceridade das opiniões dos que lá se digladiam.
Um dos rolistas foi um antigo chefe de Polícia desta capital que, por sinal, não levou vantagem.
Que prova um rolo? Disse antes que provava a sinceridade das atitudes tomadas. Será verdade? Nem sempre. Por aí, mata-se muita gente por encomenda …
Seja assim ou seja assado, custe caro ou custe barato, o certo é que o Congresso nos é útil e só sentimos a sua utilidade quando ele se fecha.
NOTAS:
[1] Vilaiete turco: região administrativa. (CCA)
[2] Paredros: Conselheiros, mentores, pessoas importantes, manda-chuvas e, conforme o contexto, pequenas divindades. (CCA)
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O artigo acima foi publicado nos websites associados dia primeiro de julho de 2021, tendo sido reproduzido do volume “Feiras e Mafuás”, de Lima Barreto, Editora Mérito, São Paulo e Rio de Janeiro, 1953, ver pp. 282-285. A primeira edição da obra é de 1922. O artigo está parcialmente reproduzido também na edição de novembro de 2020 de “O Teosofista”, páginas 14-15.
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O escritor brasileiro Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881 e viveu até primeiro de novembro de 1922.
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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