5 de março de 2017

O Chimarrão e a Sabedoria Pagã

A Força Espiritual de uma Bebida Indígena

Carlos Cardoso Aveline

O Chimarrão e a Sabedoria Pagã


Desde tempos imemoriais o ato de comer e beber possui uma dimensão religiosa, e está ligado ao sentimento de comunhão do ser humano com a natureza.

Vivemos em unidade dinâmica com o meio ambiente. A troca é constante. Aquele que busca o autoconhecimento deve examinar, portanto, de que forma, e com que atitude, se alimenta. Ele avança para as bebidas e os alimentos como um predador impulsivo, ou faz isso como um ser dotado de inteligência e autocontrole?

Cada refeição pode ser uma prática meditativa. Em muitos casos o ato de alimentar-se é vivido como uma ponte para o mundo divino.

As tradições místicas do Oriente e do Ocidente recomendam orar ou meditar alguns instantes antes de comer. Ensinam a celebrar o alimento como forma de contato com a Vida infinita.

Desde Hipócrates, o pai da medicina ocidental, o alimento é encarado como remédio. Os chás, as frutas e as hortaliças são instrumentos de cura.

Deste ponto de vista, alimentar-se é um ato profundo de renovação da vida e não um gesto impensado de exaltação da gula. Cada cidadão terá provavelmente alguma forma de autocrítica a fazer a este respeito. Melhorar é sempre possível.

O chimarrão, uma espécie de chá amargo feito à base de erva-mate, é uma bebida de fortes raízes culturais. Está associado a lições filosóficas e místicas. Produto tradicional da região sul do continente sul-americano, o chimarrão é popular em grande parte do Brasil, em todo o Uruguai, Argentina, Paraguai, e pode ser comprado facilmente em Portugal e na Espanha.

Seu uso é anterior ao período colonial começado em 1500. A nação indígena dos Guaranis usava a erva-mate como um fator de celebração da unidade comunitária e de comunhão com os deuses. Os Guaranis eram panteístas.

Na tradição do sul do Brasil, o chimarrão é tomado de preferência em grupo. A cuia (o recipiente) passa de mão em mão, no sentido anti-horário. Cada um recebe a bebida com sua mão esquerda, receptiva, e a entrega com a mão direita, ativa. A bebida deve ser tomada moderadamente, já que é forte, tendo efeito geral semelhante ao do café. A espera da sua vez treina cada um em paciência.

Quando bebido em grupo, cabe a cada um uma dose naturalmente limitada de chimarrão. No uso individual, manter a moderação é uma tarefa mais consciente. Um modo de suavizar a bebida é usar um recipiente pequeno, combinando a erva-mate com quantidade expressiva de chás medicinais.

Como o chimarrão está diretamente associado à comunhão, cada consumidor individual, mesmo sozinho, pode celebrar silenciosamente a sua comum unidade com todos os seres, enquanto ingere esta bebida pagã que é vista há séculos como ligação com os deuses da natureza.

Uma Lenda Indígena  

Em “Os Mistérios Ocultos no Chimarrão”, Wilson Tubino conta uma versão de antiga lenda dos indígenas Tapes.

Uma tribo de fala guarani era chefiada por um cacique sábio, corajoso e prudente. Sua única filha, Yari, encantava a todos.

Já velho e perdendo as forças, o cacique passou o comando ao mais bravo dos guerreiros, que amava sua filha Yari e era amado por ela.

Os dois casaram-se.

Era costume na tribo que as mulheres acompanhassem os maridos na caça, na pesca, e mesmo na luta: mas como evitar que o velho cacique ficasse sem companhia enquanto sua filha viajava com o novo cacique? O ancião pediu aos deuses que lhe dessem um amigo para evitar a solidão.  

Um dos deuses apareceu-lhe em sonhos. Indicou uma árvore verde e brilhante. Ensinou-lhe a cortar os ramos, secar e triturar as folhas para o preparo da erva. Mostrou-lhe como cortar o porongo, isto é, a cuia, o recipiente natural da erva, e também a bomba, feita de uma espécie de bambu.

Assim nasceu o CAÁ-Y, o chimarrão.

A partir de então o velho cacique teve sempre a companhia da erva-mate durante as ausências da filha. Conta a lenda que décadas depois, quando Yari morreu, ela passou a ser a força espiritual dos ervais e protetora da erva-mate. [1]

No silêncio das “mateadas”, os índios conversavam com a memória dos seus ancestrais. Começada a era colonial na América do Sul, os jesuítas proibiram o uso da erva devido ao seu significado cultural não-cristão. 

Os sentimentos paranoicos fazem parte dos dogmatismos, sejam eles políticos ou religiosos. Por isso é hábito das religiões dogmáticas acusar de “demoníaco” tudo aquilo que é diferente das opiniões oficiais. Assim, o chimarrão foi condenado ao inferno pelos representantes do Vaticano. Jesuítas criaram lendas segundo as quais o chimarrão era uma bebida maldosa. [2] No entanto, ao longo do tempo a luta cultural foi vencida pelo costume do chimarrão. O seu uso, cada vez mais forte, está associado até hoje à prática da comunhão com a natureza, como quando é bebido ao ar livre ao amanhecer ou entardecer, e da comunhão com a comunidade, através do seu consumo coletivo. 

Derrotadas as tentativas de erradicar o consumo de chimarrão, os teólogos católicos decidiram inventar outras lendas, desta vez atribuindo a origem da erva-mate a Jesus Cristo e ao deus monoteísta. Wilson Tubino descreve com clareza a batalha espiritual em torno da erva-mate.[3] Faltou apenas Tubino deixar suficientemente estabelecido o fato de que os índios eram panteístas. “Tupã” nada tem a ver com o deus humanizado do catolicismo: não havia monoteísmo entre os indígenas brasileiros.  

Assim como a religiosidade guarani, a teosofia afirma que cada planta possui um “espírito sutil”. Na cultura indígena, o chimarrão aponta para o “caminho do coração”.

Tubino afirma que “ele conduz as pessoas à introspecção e as ensina a lidar com as energias, próprias ou não, a conhecer e lidar com seus sentimentos, seus pensamentos, seus medos e suas limitações.”[4]

Numa roda de chimarrão, pratica-se a fraternidade universal. Nela não há diferenças entre patrão e empregado, pobre e rico, homem e mulher, jovens e velhos.

O chimarrão nada tem a ver com uso de drogas e substâncias alucinógenas, todas elas graves obstáculos que destroem o autocontrole, obstaculizam o autoconhecimento e impedem a sabedoria verdadeiramente espiritual.

A erva-mate estimula a lucidez e o bom senso. Fortalece o realismo. Afasta aquele que a ingere de delírios e sonhos desvinculados da verdade.

O chimarrão expande a capacidade de concentração. Fortalece o discernimento e rompe os grilhões do egoísmo e do isolamento. Para quem cultiva a paz interior enquanto ingere sozinho esta bebida, surge, potencialmente, a noção da unidade mais profunda consigo mesmo, com seus ancestrais, e com todos os seres. 

O uso de chimarrão é um exemplo vivo, entre outros, da cultura tradicional das Américas. No mundo todo, a sabedoria popular e a medicina natural estão ligadas ao uso de chás e ervas. A afinidade com seres vegetais, tendo como bases a moderação, o bom senso e a lucidez, ocorre ao lado da amizade do ser humano com o mundo dos animais e o mundo divino.

NOTAS:

[1] “Os Mistérios Ocultos no Chimarrão - Aspectos Místicos da Erva-Mate”, Wilson Tubino, Evangraf-Iso-Tchê, segunda edição, 2001, 97 pp., ver pp. 29-30.

[2] “Os Mistérios Ocultos no Chimarrão”, Wilson Tubino, segunda edição, pp. 33-39.

[3] “Os Mistérios Ocultos no Chimarrão”, ver pp. 43-45.

[4] “Os Mistérios Ocultos no Chimarrão”, pp. 49-50.

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O texto acima foi publicado pela primeira vez sem indicação de nome de autor, na edição de março de 2016 de “O Teosofista”, pp. 2 a 4. Desde março de 2017, está disponível como item independente nos websites da Loja Independente de Teosofistas.

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Veja também os livros “História do Chimarrão”, de Barbosa Lessa, segunda edição, Sulina, 1953, 120 páginas, e “Guia Prático do Chimarrão”, de Wilson Tubino, Martins Livreiro Editora, 2011, 40 páginas.  

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Leia mais:


* O Espírito da Revolução Farroupilha, de J.P. Coelho de Souza.
 
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.

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