O Princípio da Honestidade
na Civilização do Século 21
Carlos Cardoso Aveline

Acusado de “heresia”, Antônio
Vieira viveu
diversos anos preso em cárcere mantido por
cardeais
que torturavam e matavam em nome de Jesus
A visão interior da meta antecede a
ação. Saber o que é correto é mais fácil
do que colocá-lo em prática eficientemente.
Assim, a chave
ética para a transformação política da sociedade não terá de ser descoberta em
algum momento do futuro, porque já vem sendo descrita e mostrada há
milênios.
“Não há nada de
novo debaixo do Sol”, diz a Bíblia. E um exemplo claro disso é que a questão da
existência ou não de ética na política - decisiva para o século 21 - já foi
esclarecida corajosa e magistralmente pelo padre Antônio Vieira em um sermão
feito em Lisboa em 1655, por coincidência, alguns poucos anos antes de ele ser recolhido às prisões da
Santa Inquisição portuguesa.
Polêmico como
todos os profetas, Vieira contou uma história para mostrar a diferença entre um
assalto comum e o roubo em grande escala. Disse ele que, certo dia, o imperador
Alexandre, da Macedônia, navegava em direção às Índias com sua poderosa frota
de guerra quando foi trazido à sua presença um pirata que andava roubando os
pescadores do mar Eritreu. Alexandre repreendeu o homem por suas atividades
desonestas. Mas aquele pirata do século quatro antes de Cristo não era medroso
nem tímido, e respondeu:
“Então, senhor,
eu, que roubo em uma barca, sou ladrão, e vossa excelência, que rouba com uma
frota inteira, é um imperador?”
Vieira citou a
seguir o comentário do filósofo Sêneca: “Se qualquer rei fizer o que fazem o
ladrão e o pirata, merece o mesmo nome que eles”. Para aquele padre português,
que serviu Brasil e Portugal como poucos,
o que mais causava assombro e vergonha era ver que os pregadores religiosos do
seu tempo não defendiam a mesma doutrina. O silêncio deles, dizia Vieira, era
uma grave acusação contra os príncipes.
“Não são ladrões
apenas os que cortam as bolsas”, disse o padre, citando São Basílio. “Os
ladrões que mais merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os
exércitos e as legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das
cidades, os quais, pela manha ou pela força, roubam e despojam os povos. Os
outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam
correndo risco, estes furtam sem temor nem perigo. Os outros, se furtam, são
enforcados; mas estes furtam e enforcam.”[1]
Depois de
mencionar a responsabilidade dos líderes religiosos, Vieira comenta o papel dos
reis (e chefes de Estado) no processo da corrupção generalizada: “Aquele que
tem a obrigação de impedir que se furte, se não o impediu, fica obrigado a
restituir o que se furtou...”
Pouco mais de
trezentos anos depois da morte de Vieira, ocorrida em 1697, as palavras dele
continuam proféticas. Ao descrever a atuação dos administradores públicos no
vasto reino português do século 17, ele parecia falar também do Brasil e outros
países no início do século 21:
“Furtam de modo
permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões.
Conjugam de todos os modos o verbo roubar...”
A desonestidade
nas relações políticas e a corrupção dos administradores públicos não são,
portanto, um fenômeno recente. Mas só um pessimista muito afastado da realidade
dos fatos pode ignorar que a transparência e a informação plena são a marca do
século 21, e que elas dificultam a corrupção.
Ao mesmo tempo, é
impossível instalar a ética na política de modo estável e permanente enquanto
não houver ética nas relações econômicas e na estrutura social. Os avanços
tecnológicos das últimas décadas eliminaram grande parte dos obstáculos
materiais para uma vida melhor. Há muitas soluções simples que ainda não foram
adotadas pelos nossos líderes políticos apenas porque necessitam de uma dose
maior de honestidade e decência por parte de todos, e um pouco menos de
egoísmo.
Por exemplo: a produtividade da economia
cresceu de modo extraordinário nos últimos 50 anos do século vinte, mas o poder
aquisitivo dos trabalhadores não aumentou na mesma proporção, e o desemprego
continua uma ameaça. Ora, há duas maneiras principais de repassar o aumento de
produtividade para o trabalhador. Uma é aumentar o salário. A outra é diminuir
a jornada de trabalho. Se esta ideia for colocada em prática, o trabalhador
terá mais tempo para o lazer e a cultura. Terá mais qualidade de vida e chances
de ser um cidadão melhor. O desemprego diminuirá e, consequentemente, haverá
menos crimes nas ruas.
Há uma outra
questão social decisiva para a vida política do País é, sem dúvida, a reforma
agrária. Não pode haver ética duradoura na política enquanto não houver justiça
social no campo, porque, afinal, todas as questões estão integradas.
As igrejas cristãs
e demais lideranças espirituais têm atuado pouco no campo da ética política, e
isto aumenta as dificuldades. No futuro próximo, porém, os espiritualistas
sintonizados com a energia do futuro assumirão com força crescente o seu dever
de irradiar, o mais rápido possível, honestidade e decência para os diferentes
níveis do país em que vivem. Este será
ao mesmo tempo um teste para a coerência das lideranças espirituais, porque a
pregação ética não tem valor se não nasce de uma prática concreta.
Os gestos práticos
são, de fato, o discurso mais eloquente.
E não se trata tanto de combater o mal quanto de fazer e estimular o bem. Todo ser humano tem qualidades positivas e
negativas. A grande tarefa política é
criar uma espécie de reação química coletiva que faça crescer os sentimentos
positivos entre as pessoas e os setores da sociedade, de modo que as qualidades
positivas entrem em movimento e a negatividade perca espaço e acabe sendo
transcendida. O desafio do líder político da nova era é criar no cidadão um sentimento
de confiança vigilante em si mesmo,
nos outros e no nosso futuro comum. Neste contexto, a oposição entre esquerda e direita pode ficar reduzida em grande parte a um mero jogo de
palavras.
Até algum tempo
atrás, os movimentos políticos de esquerda pareciam quase donos da bandeira da ética; mas atualmente há uma grande falta de
heróis nessa área.
Os partidos
políticos não têm sabido interpretar nem encaminhar de modo eficaz o problema
ético, apesar de ele ser a questão central do processo político brasileiro. A
razão desta dificuldade é simples: o problema ético depende da consciência
interior de cada um e não pode ser resolvido apenas no plano externo da
política e do jogo das aparências.
A visão interna e
espiritual da realidade é indispensável, porque a atmosfera psíquica ou psicosfera do País é alimentada pelos
pensamentos mais íntimos de cada um de nós. A consciência social é alimentada
pela consciência de cada pessoa. De certo modo, os políticos desonestos estão
apenas levando às últimas consequências as pequenas desonestidades físicas,
emocionais e mentais que alguns cidadãos pensam que podem cometer impunemente
nas suas relações familiares ou profissionais. O cidadão que busca tirar
vantagens dos outros dizendo meias-verdades aumenta a presença sutil da
falsidade na psicosfera.
Do mesmo modo, o
cidadão que decide viver o mais honestamente possível em todos os aspectos da
vida funciona como purificador da atmosfera psíquica, trocando vibrações densas
por outras mais leves, e pensamentos escuros por ideias bem definidas e claras.
Cada indivíduo está ligado internamente a tudo o que acontece no seu país e no
mundo, porque o processo humano é um só e indivisível. Quando um de nós
aperfeiçoa a si mesmo, está aperfeiçoando os outros no plano espiritual.
Falando de política, o sábio chinês Confúcio disse há 2500 anos: “Se você for
capaz de corrigir-se, não terá dificuldades ao governar. Se você não for capaz
de corrigir-se, não conseguirá corrigir os outros.”[2] Agora estamos quase no ponto de aprender a lição.
Nos Ioga Sutras de Patañjali - o maior
tratado de ioga de todos os tempos -, uma das abstinências exigidas é não
roubar. A tarefa é mais difícil do que parece à primeira vista:
“A maior parte de
nós não é dada ao roubo como ele é usualmente entendido”, comenta Rohit Mehta.
“Mas existem aspectos mais profundos do roubo dos quais podemos não estar
livres.” Qualquer forma de imitação, mesmo sutil, pode ser um furto. Um
relacionamento em que há uso de outra pessoa para satisfação própria é uma forma
de roubo. Todo excesso tem alguma semelhança com o furto, e a honestidade é quase sempre inseparável da moderação e do equilíbrio.[3]
O desafio político
dos cidadãos da nova era torna necessário reexaminar sua atitude diante da
sociedade brasileira a partir de um ponto de vista central: não podemos ser
altruístas na vida pessoal enquanto agimos de modo egoísta ou irresponsável em
nossas relações econômicas, políticas e sociais. Ao contrário. É preciso
recriar o mundo concreto e as relações humanas a partir do sentimento de
fraternidade que a busca espiritual faz nascer dentro de nós.
É verdade que o
caminho místico desperta a necessidade de uma vida menos agitada e mais
silenciosa, aumentando o prazer de estar
sozinho no plano físico. Mas o sentimento de solidariedade profunda e o amor
pela humanidade só aumentam quando a busca interior é autêntica – mesmo que se
prefira levar uma vida um pouco mais retirada.
Não é por acaso
que a participação dos místicos na vida política brasileira sempre foi
decisiva. O sentimento de solidariedade é inevitável. Tiradentes, o mártir da
Independência, era simpatizante ativo do movimento maçônico. Ele disse que, se
tivesse dez vidas, daria todas elas pela causa da libertação do nosso país.
José Bonifácio, Gonçalves Ledo e os principais líderes da Independência eram
maçons e transcendiam o dogmatismo religioso, embora em muitos casos tivessem
uma visão limitada da questão espiritual. Frei Caneca, morto por seus ideais
republicanos e democráticos, era maçom, assim como o barão de Rio Branco,
Benjamin Constant, marechal Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Campos Sales
e o duque de Caxias. O grande jurista Ruy Barbosa, o presidente Prudente de
Morais e o presidente Washington Luís foram maçons, do mesmo modo que os
jornalistas Júlio de Mesquita e Júlio de Mesquita Filho. Todos esses
personagens da nossa história certamente cometeram equívocos, alguns graves, e
também discordaram frequentemente um dos outros. Mas eles tiveram em comum uma
certa abertura para a visão mística da vida. [4]
O pioneiro do
jornalismo brasileiro, Hipólito José da Costa, fundou o jornal Correio Braziliense no exílio, em
Londres, em 1808, fazendo dele um instrumento de luta pelo fortalecimento do
Brasil. Hipólito, maçom respeitado mundialmente, foi um estudioso notável das
tradições de mistérios e passou vários anos nas prisões da Inquisição,
perseguido por seus ideais.
Independentemente
dos movimentos espiritualistas ou esotéricos organizados, há hoje uma tarefa
histórica inevitável diante das forças políticas: aprender a lição da ética e,
ao mesmo tempo, assumir uma atitude prática e construtiva em relação ao futuro.
A corrupção não apenas se alimenta do pessimismo, mas também tende a
realimentá-lo. Entre os lugares comuns usados pelos ladrões para justificar-se
está o de que “sempre haverá ladrões”. Mas a verdade é que a sociedade avançou
muito desde o tempo daquele sermão de Antônio Vieira, e agora estamos chegando
a uma situação radicalmente nova no Brasil. A ética em todas as relações
sociais é uma experiência inevitável nos novos tempos.
O século 21
começou e os movimentos sociais não têm mais condições de limitar-se a fazer
críticas. A política baseada apenas em discursos leva ao vazio, ou uma postura de negação do presente e do
futuro com fixação nos hábitos populistas do passado. Os setores de esquerda -
como todos os outros - estão mudando e necessitam mudar mais em direção a
atitudes crescentemente éticas e
criativas.
Ruy Barbosa
escreveu em 1910 que “uns plantam a semente de couve para o prato de amanhã, e
outros a semente de carvalho para o futuro. Os primeiros cavam para si mesmos,
os últimos lavram para o seu país”. Com dirigentes políticos decentes, capazes
de ouvir a população e buscar o bem do Brasil a longo prazo, o País poderá
finalmente realizar na prática o velho sonho futurista do patriarca da
Independência, José Bonifácio, que escreveu:
“Nós não
reconhecemos diferenças nem distinções na família humana. O chinês, o
português, o egípcio, o haitiano, o adorador do Sol e o de Maomé serão tratados como brasileiros. Porque, afinal,
esta paz divina e concórdia celeste ligarão um dia todo o mundo, e farão, de
todos os homens, uma só família.”[5]
Esta é a política
do século 21. Com ela poderá nascer a federação
mundial democrática sonhada há séculos por místicos das mais diferentes
tradições culturais e religiosas, e da
qual a atual ONU é uma pálida, mas
valiosa, antecipação.
NOTAS:
[1]
“Sermão do Bom Ladrão”, Padre Antônio Vieira, Ed. Princípio, 1993, 48 pp.
[2]
“O Essencial de Confúcio”, Thomas Cleary, Ed. Best Seller, 197 pp. Ver p. 113.
[3] “Yoga,
A Arte da Integração”, Rohit Mehta, Ed. Teosófica, 312 pp. Ver pp. 106-107.
[4]
“Os Maçons que Fizeram a História do Brasil”, de José Castellani, Ed. A Gazeta
Maçônica, 177 pp. Ver também “História do Grande Oriente do Brasil”, de José
Castellani, editado pelo Grande Oriente do Brasil, Brasília, 358 pp. e
apêndices, 1993; e “Maçonaria e Ação Política”, de Waldemar Zveiter, Editora
Mandarino, RJ, 192 pp.
[5]
“José Bonifácio, o Patriarca da Independência”, de Venâncio F. Neiva, um resumo
biográfico, Ed. Irmãos Pongetti, RJ, 1938, 304 pp. Ver especialmente p. 278.
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Para conhecer um diálogo documentado com a
sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500 anos, leia o livro “Conversas na Biblioteca”, de Carlos
Cardoso Aveline.
Com 28 capítulos e 170 páginas, a obra foi
publicada em 2007 pela editora da Universidade de Blumenau, Edifurb.
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