Como a Prática da
Contemplação
Permite
Alcançar a Estabilidade
Carlos Cardoso Aveline
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Ao ler o texto a seguir, o leitor
deve levar em
conta que, em teosofia, a palavra
“Deus” designa
apenas a Lei do Equilíbrio
Universal, ou o mundo
divino, habitado por uma vasta diversidade
de
inteligências superiores. A
teosofia não aprova a
ilusão monoteísta. O texto a seguir
é o capítulo
seis da obra “O Poder da Sabedoria” (Editora
Teosófica, Brasília, 3ª edição, 188 pp.). Título
original do capítulo: “Destruindo
as Ilusões”.
Ao final, o leitor encontrará um
exercício prático.
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O barulho de tráfego da avenida era um
pano de fundo distante que eu não percebia. Estava em um porão cheio de livros,
meditando, como fazia todas as manhãs havia muitos anos. De repente, senti um
imenso cansaço diante da idéia de pensar em qualquer coisa. Uma sensação de
liberdade ilimitada invadiu-me, enquanto ficava completamente imóvel. Depois
agarrei lentamente a caneta e, embora me sentisse distante, comecei a escrever
nas margens do livro de contos zen que estava aberto à minha frente.
“Verdadeiras filas de idéias e pensamentos ilusórios acorrem à minha mente.
Alguns são ansiosos, outros não. Vejo-os, e nenhum deles me distrai. Prefiro
permanecer em paz e contemplar a inutilidade de toda atividade mental”. Entre
uma frase e outra, ficava imóvel, sentindo a presença da imensidão. Afinal,
concluí, muito devagar: “Há um momento na vida em que o estudante da sabedoria
divina fica livre das palavras e as usa apenas como instrumentos que apontam
para o silêncio. A inutilidade do pensamento é tão grande quanto o prazer da
imobilidade total”.
Em momentos de meditação, sinto-me muitas vezes livre das ilusões da vida
cotidiana. Talvez sinta alguma coisa daquele estado interior descrito como
“contemplação” pelo religioso Miguel de Molinos, no final do século 17. Perseguido
pela Inquisição como muitos místicos, Molinos alegou, em sua defesa, que
existem certos sinais pelos quais se pode saber quando Deus quer que uma pessoa
abandone a meditação em forma de oração discursiva e passe para um estado de
silêncio. Isto ocorre quando a pessoa não tem mais prazer no primeiro estágio
da meditação, nem sente que está recebendo alimento espiritual através dela,
“mas sente que pensar é tedioso, difícil e repugnante”. Sua inclinação é ficar
imóvel. “Seu único prazer é ficar tranqüilo e silencioso, calma e amorosamente
consciente de que está com Deus, e atento só para Ele.” [1]
Há uma história da tradição sufi que ilustra – de modo surpreendente – a
limitação das palavras como meio de percepção ou transmissão da verdade. Conta-se
que o sábio Nasrudin foi convidado pelos notáveis de uma cidade próxima para
que desse um sermão ao povo. Nasrudin chegou ao local e perguntou: “Vocês sabem
o que vou dizer-lhes?”
“Não, não sabemos”, responderam todos.
“Enquanto não souberem, não posso falar nada. São ignorantes demais para
que eu lhes ensine”, disse Nasrudin, e foi embora.
Na semana seguinte, uma comissão procurou Nasrudin para pedir-lhe novamente
um sermão. Nasrudin pareceu concordar. Foi até o povo e perguntou: “Sabem o que
vou dizer a vocês?” Desta vez, todos responderam: “Sim!” Mas Nasrudin
arrematou: “Neste caso, não preciso falar mais nada”. E foi embora.
Mais alguns dias, e Nasrudin foi visitado novamente pela comissão de
notáveis da cidade. Queriam um sermão seu. Nasrudin aceitou, e foi até o
local, mas começou a palestra com a mesma pergunta: “Sabem o que vou dizer-lhes?”
O povo estava preparado. Alguns cidadãos disseram que sabiam, outros que
não.
“Ótimo, então”, disse Nasrudin. “Aqueles que sabem podem transmitir o
ensinamento àqueles que não sabem.” E foi para casa em silêncio. [2]
Nasrudin não quis descer até o mundo ilusório de intrigas pessoais, fofocas
e objetivos egoístas em que se movimentava a população da cidade, e confrontou
seus ouvintes com o silêncio total. Confirmou assim, por outros meios, um
famoso axioma da vida espiritual, colocando-o na sua forma negativa: quando o
discípulo não está pronto, o mestre não aparece – ou não fala.
O processo de ilusão parece inevitável na vida cotidiana, e mesmo na busca
espiritual. Iludimo-nos com as outras pessoas, com o trabalho, com o futuro – e
com nós mesmos. Encontrar a verdade é desiludir-se, e a caminhada neste sentido
é tão longa que uma vida inteira é apenas um momento da jornada – nem por isto
menos importante.
O processo de ilusão mental que se renova continuamente – porque contém um
pouco de verdade – talvez possa ser compreendido melhor se imaginarmos que a
mente é um espelho que reflete o real. Isto pode ser descrito em forma de
narrativa.
Havia eternamente dois espelhos no céu – um símbolo do mundo da totalidade.
Eram dois espelhos imensos. Um dia, quando o homem começou a pensar, Deus jogou
lá de cima um dos espelhos para uso da humanidade. Ao cair no mundo
manifestado, o espelho da mente universal partiu-se em milhares de pedaços e
cada um pegou um fragmento. O que este fragmento de espelho refletia nunca era
o todo. Em diferentes momentos da vida, as pessoas o usavam para refletir
diferentes aspectos da realidade. E projetavam sobre a tela pequena deste espelho
as partes que ele não refletia. Isto se fazia através da imaginação do que
queriam. Jogando seus desejos e temores sobre seu fragmento de espelho mental,
sua descrição da realidade refletia mais os seus próprios conteúdos interiores
do que a realidade – “aquilo que era”.
Com o tempo, alguns seres humanos passaram a compreender que as
discordâncias e disputas entre eles surgiam do fato de que seus fragmentos de
espelho eram insuficientes para compreender a realidade de maneira racional, e
que estavam preenchendo todo o vazio do desconhecido de modo caótico, com suas
próprias fantasias e desejos pessoais inconscientes.
Assim, cada vez mais pessoas passaram a desenvolver uma disciplina interior
pela qual aprendiam a deixar de lado seus fragmentos pessoais do grande espelho
universal, e a focar sua consciência diretamente na integridade do espelho
eternamente presente no céu, que simboliza os níveis superiores da realidade. Para
isto, era preciso desligar-se do processo de projeção de desejos e ilusões
pessoais sobre o fragmento do espelho.
Foi assim que nasceu a ioga. Segundo o primeiro aforismo de Patañjali:
“Ioga é a cessação das transformações mentais”. A mente que pára está livre da
projeção de desejos e reflete fielmente o real, podendo unir-se interiormente
ao espelho ou mente universal.
Investigando em meditação o tema da ilusão em minha própria vida, escrevi
um dia no meu caderno de anotações pessoais:
“Seja qual for o momento ou a situação em que estejamos, sempre haverá
algumas necessidades que estão – finalmente! – sendo atendidas, e algumas
outras que surgem como necessidades supostamente novas e urgentes. Diante
disto, a única melhora real é o crescimento da estabilidade interior,
independente deste precário processo de vir-a-ser”. Parei de escrever. Passei
um tempo olhando a paisagem à minha frente. Observei a atividade intensa e
confiante dos pássaros, o desfile cauteloso de um lagarto sob o sol, a alegria
das plantas com o vento suave. Depois, escrevi mais:
“Parece que a vida é feita de desejos. Casa maior, carro, aumento salarial,
um emprego melhor, comida, sexo, mais um filho, férias, passeio, mais
comida, cinema, música, livros, sempre desejos. O que restaria de nós se não
desejássemos nada?”
“Muito pouca coisa, só o essencial”, veio a resposta.
“E quem é que tem desejo de conhecer o essencial? Todos?”
“Sim, todos desejamos conhecer o essencial. O problema é que, ao formular o
desejo, limitamos nossa meta e já não é exatamente o essencial que estamos
buscando. Essencial é apenas aquilo que se vê ou percebe quando não esperamos
nem desejamos nada específico ou de curto prazo. Aí então existem a comunhão, o
prazer puro, a satisfação intensa e o contentamento natural. A única chave para
a felicidade é não desejar nada e não antecipar o amanhã, mas viver o agora,
como se o agora fosse um grande presente dos céus; e ficar contente com isto,
que é a renúncia.”
Há um nível da vida em que os desejos e as ilusões são inevitáveis e
naturais. Há, porém, um nível meditativo, que existe simultaneamente, em que
posso ver-me gradualmente livre do processo de “esperanças ilusórias
renovando-se permanentemente”. Neste nível é que brilha a vontade espiritual.
A escritora norte-americana Frances Vaughan enumera algumas ilusões típicas
que costumam aparecer no mundo interno de quem busca a vida espiritual.
A primeira delas é a negação da própria sombra e a projeção sobre os outros
do que há de negativo em nós. Quem sofre desta ilusão divide o mundo em crentes
e não-crentes, sábios e ignorantes, e cria um sistema de oposição entre “nós” e
“eles”. Quando o caso é mais grave, surge o “eu”, contra os “outros”, cabendo
aos “outros” o papel de ignorantes, e ao “eu” o papel de iluminado que sabe
tudo.[3]
Outra ilusão é a culpa. Quando a busca espiritual é causada por um
sentimento de culpa e medo, quando a pessoa tem baixa auto-estima, também há um
forte fator de auto-engano, porque os sentimentos de medo e culpa são
ilusórios, embora pareçam reais a quem está preso a eles.
A ambição espiritual é um terceiro perigo – e dos maiores – na busca da
verdade. O cidadão quer então ser um líder, um profeta, um pastor das almas
alheias, enquanto ainda não consegue controlar a si mesmo. Mas, como ensinou o
sábio chinês Huang Po, “a mente do Bodhisattva é como o vazio, porque ele
renuncia a tudo e não deseja nem mesmo acumular méritos”.
Uma quarta ilusão, que costuma andar junto com a ambição espiritual, é a
sensação de ser alguém especial e merecer privilégios, seja por parte de Deus
ou por parte de outras pessoas. Esta ilusão muitas vezes abre as portas para o
surgimento de fantasias que justificam alguns erros bastante básicos, que a
sensação de importância nos impede de ver com honestidade.
Frances Vaughan menciona também a idolatria entre as formas mais comuns de
ilusão espiritual. Neste caso, a pessoa fica fascinada com símbolos externos da
espiritualidade: imagens de Buda, Jesus ou outros mestres, pedras energéticas,
anéis mágicos, ou mesmo livros considerados infalíveis. Pessoas vivas também
podem ser transformadas em ídolos. A idolatria é um recurso para fugir da
consciência da nossa ignorância. Fazemos de conta que aquilo que buscamos está
presente no objeto da nossa idolatria.
De que maneira podemos libertar-nos das diferentes formas de ilusão
espiritual, aproximando-nos gradualmente da verdade una e fundamental? O
primeiro passo, para muitos autores, é algo que devemos fazer com regularidade
em nossa vida. Trata-se de examinar a nossa própria motivação. O que é que eu
quero, realmente, com minha busca espiritual? Normalmente, uma resposta sincera
terá em si a chave para a solução do problema da ilusão, tal como se apresenta
neste momento em nossa vida. Tudo depende, no entanto, do grau de honestidade
que temos com nós mesmos. A maior parte das nossas motivações é feita de
desejos. Através do estudo do conteúdo em grande parte ilusório dos nossos
desejos, podemos gradualmente ter acesso a níveis mais permanentes da
realidade.
O uso da intuição, da imaginação positiva, da meditação diária, do estudo,
e a prática do altruísmo e da sinceridade são, em geral, indispensáveis para
que diminuam os níveis de auto-engano e ilusão.
Uma técnica usada por certas escolas internas de Raja Ioga consiste em
tentar dizer – em todas as situações da vida – apenas coisas que sejam
simultaneamente verdadeiras, amáveis e úteis. Isto leva o praticante à prática
saudável do silêncio, que é importante porque “o peixe morre pela boca”,
conforme diz o ditado popular. Grande parte do que se fala durante o dia é
verdadeiro, mas não é amável, ou é amável, mas não é verdadeiro; e sem dúvida
costumamos dizer muitas coisas inúteis, que às vezes se voltam contra nós. Esta
técnica do controle da palavra expressa dinamicamente a essência da mensagem
budista: “Cessar de fazer o mal, aprender a fazer o bem, purificar seu próprio
coração, este é o ensinamento dos Budas.”
Exercícios de respiração, práticas de esportes saudáveis, exercício físico
regular e moderado, engajamento pessoal em ações pelo bem coletivo, alimentação
natural e relacionamentos corretos com todas as pessoas são fatores que nos
distanciam das ilusões e nos capacitam a perceber verdades profundas.
O místico do século 15 Tomás de Kempis escreveu em seu livro “Imitação de Cristo”
algo que me parece útil para pessoas que despertam hoje para o potencial divino
em seu interior, e sentem uma responsabilidade ética pessoal pelo futuro da
humanidade e dos seus semelhantes mais próximos [4]:
“Primeiro, conserva-te em paz, e depois poderás pacificar os outros. O
homem apaixonado converte até o bem em mal, e facilmente acredita no mal. O
homem bom e pacífico, ao contrário, faz com que tudo se converta em bem. Quem
está em boa paz de ninguém desconfia; o descontente e perturbado, porém, é
perseguido por várias suspeitas e não sossega, nem deixa os outros sossegarem. Diz
muitas vezes o que não conviria dizer, e deixa de fazer o que mais lhe
conviria. Preocupa-se com as obrigações alheias e descuida-se das próprias. Procura
ter, pois, cuidado contigo mesmo, e depois poderás tê-lo, com direito, em
relação a teu próximo.”
NOTAS:
[1] Veja-se três obras:
1) “The Common Experience”, coletânea por J.M. Cohen e J. F. Phipps, Quest
Books, Wheaton, EUA, p. 8 ; 2) “Guía Espiritual”, Miguel de Molinos,
Alianza Editorial, Madrid, 1989, 249 pp.; 3) “Defensa de la
Contemplación”, Miguel de Molinos, Fundación Universitaria Española, Madrid,
1988, 315 pp. Ler especialmente pp. 100-101.
[2] “Histórias de
Nasrudin”, Edições Dervish, São Paulo, 1994, ver p. 101.
[3] “Shadows of the Sacred”, Frances Vaughan, Quest Books, 1995, Wheaton , EUA, pp.239 a
260.
[4] “Imitação de Cristo”,
Tomás de Kempis, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1993, página 72.
Ação Prática:
Controlando as Palavras
Decida que nas próximas 24 horas, a contar de agora, tentará dizer apenas
coisas verdadeiras, amáveis e úteis. Quando se esquecer da decisão e disser
algo que a contraria, refaça seu voto: “quero dizer só o que for verdadeiro,
amável e útil”. Observe que tipos de energia desafiam o cumprimento desta
resolução. O objetivo deste exercício é diminuir sensivelmente o número de
coisas não verdadeiras, agressivas e inúteis que dizemos. Ao final do período,
faça uma avaliação da experiência e tire suas conclusões. Pense nos efeitos a
médio e longo prazo desta prática, que é recomendada pelas principais religiões
do mundo.
Bibliografia:
“Auto-engano”, Eduardo Giannetti, Cia. das Letras, 1998, 269 pp. “Ao Encontro da Sombra”, coletânea
organizada por Connie Zweig e Jeremiah Abrams, Ed. Cultrix, 356 pp.
“Inteligência Emocional, As Três Faces da Mente”, Elaine de Beauport, Ed. Teosófica,
1998, 405 pp.
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Sobre o crescimento interior e a transformação pessoal no
século 21, leia a obra “O Poder da
Sabedoria”, de Carlos Cardoso Aveline.
O livro foi publicado pela Editora Teosófica, de Brasília,
tem 189 páginas divididas por 20 capítulos e inclui uma série de exercícios
práticos. Está na terceira edição.
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