Como a Sociedade de
Adyar
Organizou a ‘Volta do Cristo’
Carlos Cardoso Aveline
Helena Blavatsky
(foto) tomou uma posição
clara em relação à
ideia de um retorno de Cristo
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O artigo “Fabricando um Avatar” foi
publicado pela
primeira vez na revista
teosófica Fohat, do Canadá, nas
páginas 64 a 68 da edição de outono
de 2007 (primavera de
2007 no Brasil). O título original
é “The Making of an Avatar -
examining Adyar’s attempt to fabricate the return of Christ”.
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“Anteontem à noite foi-me dada
uma visão geral das sociedades
teosóficas. Eu vi alguns poucos
teosofistas confiáveis, em uma
luta
mortal com o mundo em geral e
com outros teosofistas, que eram
nominalmente teosofistas, mas
ambiciosos.”
[ H. P. Blavatsky, em uma carta para William Judge.
Ver “The Friendly Philosopher”,
Robert Crosbie,
Theosophy Co., Los
Angeles, 1945, página 389.]
Um axioma místico afirma que “o erro está condenado a imitar a verdade”. Em consequência desta lei oculta, cada aprendiz
deve enfrentar e vencer por mérito próprio um número quase infindável de testes
e provações que se alimentam de aparências enganosas.
Pelo mesmo motivo,
a verdadeira Teosofia tem sido sempre rodeada por várias formas
brilhantes, quando não espetaculares, de pseudoteosofia. Um exemplo marcante
desta tendência histórica ocorreu no século vinte com a criação de um culto teosófico em torno do
“avatar” Jiddu Krishnamurti (1895-1986).
Mesmo agora o culto
krishnamurtiano ainda existe, embora atuando de modo mais discreto.
Krishnamurti tinha 14 anos de idade quando foi localizado em Adyar por um clarividente de sidhis inferiores, C. W. Leadbeater.
Naquela época, Annie Besant e Leadbeater costumavam manter longas conversas imaginárias
com algo a que chamavam de “Senhor Cristo”.
Pouco depois da “descoberta” de Krishnamurti, o garoto foi oficialmente apresentado ao mundo
como sendo alto Iniciado e um futuro avatar - o veículo ou instrumento para a volta do Messias.
Em relação à
expectativa sobre uma volta de Cristo,
H.P. Blavatsky escreveu no século 19 palavras bastante claras:
“Duas coisas ficam evidentes para todos (....): (a) a ‘vinda de Cristo’ significa a presença de
CHRISTOS em um mundo regenerado, e não, de modo algum, a vinda literal e
corporal de Jesus ‘Cristo’ ; e (b) este
Cristo não deve ser buscado nos
desertos, nem ‘nas câmaras interiores’, nem no santuário de qualquer templo ou
igreja construída pelo homem; porque o Cristo - o verdadeiro SALVADOR esotérico
- não é homem algum, mas o PRINCÍPIO DIVINO em cada ser humano. Aquele que tenta fazer a ressurreição do
Espírito crucificado em si mesmo por suas
paixões terrestres, e enterrado profundamente no ‘sepulcro’ da sua carne
pecaminosa; aquele que tem força suficiente para fazer rolar de volta a pedra da materialidade para longe da
porta do seu próprio santuário interior,
este conseguiu despertar Cristo em si mesmo. (‘Pois vocês são o templo do Deus vivo’ - II Cor., 6: 16 )” [1]
A abordagem de H.P.B. sobre as expectativas messiânicas é
simples e profunda. É o princípio crístico da sabedoria divina que deve
renascer, e não um Messias de carne e osso. Mas o
pior cego é aquele que não deseja ver. Os líderes da Sociedade Teosófica de
Adyar estavam tão ocupados com a
fabricação de um Avatar que não tinham tempo para levar em conta o que
dizia a Teosofia autêntica.
Foi organizada, portanto, uma “Igreja Católica Liberal” que deveria servir como instrumento para Krishnamurti, o Cristo. Ao
lado dela, Ordem da Estrela seria a
principal organização do Messias. A Sociedade Teosófica e a Escola Esotérica de
Adyar foram transformadas em
instrumentos auxiliares do Advento. O catecismo do novo Mestre deveria ser o
pequeno livro “Aos Pés do Mestre”,
escrito por Leadbeater, mas
apresentado ao público em 1910 como sendo resultado das instruções dadas por um
Mestre de Sabedoria ao seu discípulo Krishnamurti. Supostamente, o garoto teria feito anotações
dos ensinamentos do Mestre.
Mary Lutyens,
íntima amiga de Jiddu Krishnamurti e autora das suas principais
biografias, relata que as supostas anotações feitas por Krishnamurti “desapareceram”.
O detalhe significativo é que os únicos originais disponíveis eram os
datilografados por C. W. Leadbeater. [2]
Krishnamurti esperou demasiado tempo para romper com a farsa. Ele finalmente negou-se a continuar
fazendo o papel de Cristo e afastou-se da Sociedade de Annie Besant no final da
década de 1920, quando já tinha mais de 30 anos de idade. Ele negou que fosse a
autor de “Aos Pés do Mestre” e o livreto foi retirado da lista das suas obras. As
atuais Fundações Krishnamurti não o vendem. Mesmo assim, sua autoria ainda é atribuída a Krishnamurti
pelas editoras vinculadas à Sociedade de Adyar.
A verdade é que a pequena obra não só está escrita no estilo de redação de
Leadbeater, mas também repete um a um os seus graves erros conceituais sobre a
filosofia teosófica. Desde a sua primeira edição, o livreto foi colocado em um
lugar muito especial na chamada literatura promovida por Adyar. Milhares de leitores ainda acreditam na
autenticidade do livro. Poucos conhecem o
testemunho do ex-secretário particular de C. W. Leadbeater e ex-secretário
internacional da Sociedade de Adyar, Ernest Wood. Em sua autobiografia, Wood
conta a história de Subrahmanyam, um jovem
teosofista que morou na sede internacional da Sociedade, na Índia. Subrahmanyam
era um jovem líder influente, até que em 1910-1911 foi testemunha de uma conversa que mudou completamente
o seu destino. Ele ouviu um diálogo muito
direto entre Jiddu Krishnamurti e o seu pai. Quando
perguntado sobre quem era o autor de “Aos Pés do Mestre”, Krishnamurti,
então com 15 anos, respondeu no idioma
Telugu:
“O livro não é meu. Eles é que jogaram sobre mim a
paternidade da obra.”
Subrahmanyam ficou profundamente surpreso. Ele logo relatou
o diálogo a Ernest Wood, de quem era amigo pessoal. Notícias ruins andam rápido,
e assim que a presidente mundial Annie Besant foi informada do assunto ela convocou
o jovem Subrahmanyam a seu gabinete.
Besant afirmou a Subrahmanyam que era impossível que
Krishnamurti tivesse dito uma tal coisa, e colocou-o diante de uma alternativa radical: ou ele faria um desmentido imediato da conversa entre Krishnamurti e seu pai, ou seria sumariamente expulso da sede
internacional da Sociedade, em Adyar, onde morava.
Subrahmanyam não era hipócrita. Não estava disposto a
viver em um mundo de falsidades. Resistindo à pressão, ele não se retratou e
foi obrigado a deixar Adyar. Ele retornou
à sua cidade natal, e Ernest Wood conta que “morreu lá pouco tempo depois, ainda
pouco mais que uma criança.” [3]
Desde o seu lançamento, o famoso livreto “Aos Pés do
Mestre” vinha sendo um best-seller, e também era visto como um fato espetacular
em si mesmo. O seu sucesso deu impulso ao surgimento da organização messiânica
“Ordem da Estrela no Oriente”. Do ponto
de vista da sra. Besant, a criação de um
novo Messias não poderia ser perturbada por fatos como o diálogo testemunhado
por Subrahmanyam. A própria ideia de que
um garoto de 14 ou 15 anos houvesse escrito um texto como aquele era descrito como
um fenômeno extraordinário. Parecia a muitos uma evidência concreta de que
Cristo havia, de fato, decidido voltar.
Tudo o que as pessoas deviam fazer era acreditar na exibição brilhante de maravilhas imaginárias.
Às custas da vitalidade do movimento teosófico e graças
ao estímulo da expectativa messiânica, a
“Ordem da Estrela” crescia com rapidez no mundo todo. Ernest Wood escreve:
“Milhares de membros da Sociedade Teosófica se apressavam
a entrar no novo movimento. Alguns, entre os quais eu, ficavam à parte. Alguns
poucos criticavam o movimento, com vários argumentos. Um ou dois diziam que
Krishnamurti não tinha conhecimento suficiente de inglês para escrever as frases do livro. Eu concordava completamente com eles, mas
explicava a mim mesmo esta dificuldade dizendo que o prólogo anunciava que
Krishnamurti não havia escrito ele próprio a obra – as palavras eram do Mestre. Havia ainda a
dificuldade de que Krishnamurti não teria sabido montar as frases nem feito uma
pontuação tão boa. Ele tampouco teria sabido fazer aquele prólogo, em minha opinião. Eu deixava estes problemas
em suspenso. Nós podíamos muito bem
esperar e ver se o Mestre viria.” [4]
Ernest Wood percebeu que o livro tinha um conteúdo demasiado
simples e demasiado limitado para ser
motivo de tanto destaque e propaganda.
Ele narra uma conversa que teve com C. W. Leadbeater:
“Expressei minha opinião. Era um livrinho agradável, mas muito simples. Seriam as instruções
contidas nele suficientes para levar alguém até o ‘Caminho propriamente dito’,
até a Primeira Iniciação que a sra. Annie Besant havia descrito no livro dela? Sim, disse o sr. Leadbeater, e ainda mais, se
aquelas instruções fossem completamente postas em prática, elas levariam a
pessoa até o próprio Adeptado.”
Leadbeater falava a Wood como se fosse um grande sábio. Vale a pena mencionar que as fantasias de autoimportância
eram tão fortes em Adyar naquela fase da história que alguns anos mais tarde,
em 1925, Annie Besant anunciaria de modo
solene um fato extraordinariamente
absurdo: C. W. Leadbeater, J. Krishnamurti, George Arundale, ela própria e alguns outros haviam alcançado todos o
Adeptado e eram agora “Mestres e Iniciados do quinto círculo”. É verdade que, devido ao seu caráter evidentemente
fantasioso, nem todos levaram o anúncio
a sério e a pretensão caiu no esquecimento. [5]
Ernest Wood prossegue a narrativa da sua conversa sobre
“Aos Pés do Mestre” com Charles Leadbeater:
“Eu disse que havia duas ou três coisas curiosas em
relação ao manuscrito. O texto estava muito escrito no estilo do próprio sr.
Leadbeater, e até havia algumas frases exatamente iguais ao livro dele que já
havíamos preparado para a gráfica. Ele me disse que teria sido capaz,
realmente, de escrever ele mesmo aquele
livro. Quanto às frases que mencionei, ele
disse que ele normalmente estava presente quando Krishnamurti recebia as lições
do Mestre no plano astral; ele lembrava daqueles pontos...”. [6]
Leadbeater apresentou desculpas e explicações para cada indício
de que o verdadeiro autor do livrinho era ele mesmo. Quanto a Annie Besant, ela
certamente acompanhava o processo de perto,
porque Ernest Wood informa que foi ela própria quem decidiu pelo título
“Aos Pés do Mestre”. Naturalmente, àquela idade, Krishnamurti não estava muito
interessado em livros ou em escrever. Tudo o que se esperava dele era que
cumprisse o papel aparente de um jovem Iniciado e futuro Messias. A sra. Jean
Overton Fuller, teosofista inglesa e autora de uma biografia sobre
Krishnamurti, relatou uma conversa que teve com Mary Lutyens:
“Falei com Mary Lutyens sobre isto. Ela tinha uma
tendência a pensar que o texto havia sido escrito, em uma parcela muito grande,
por Leadbeater.” [7]
Algumas das principais evidências sobre a autoria do livrinho estão no seu conteúdo. A palavra “Deus”, por exemplo, é usada grande número de vezes no texto. “Pois Deus tem um plano”, diz o livreto. “Se
[alguém] está ao lado de Deus, é um dos nossos”, insiste. [8] O livreto também afirma: “Pois tu és Deus, e tu queres somente o que Deus quer”. [9]
No prólogo, que supostamente teria sido escrito por
Krishnamurti, há esta frase:
“Estas palavras não são minhas; são do Mestre que me
ensinou.”
Vale a pena, então, examinar o que este mesmo Mestre de Sabedoria,
que segundo Leadbeater ditou o livreto a Krishnamurti, ensinou de fato sobre
Deus, em sua famosa Carta 88 de “Cartas dos Mahatmas”.
O verdadeiro Mahatma
escreveu:
“Nem a nossa filosofia, nem nós próprios, acreditamos em
um Deus, e muito menos em um Deus cujo pronome necessita de uma inicial
maiúscula.” [10] “O Deus dos teólogos é simplesmente um poder
imaginário, un loup garou [um bicho-papão] ( ...). Nossa principal meta é libertar a humanidade
deste pesadelo, ensinar ao homem a virtude pelo bem da virtude, e ensiná-lo a
caminhar pela vida confiando em si mesmo, ao invés de depender de uma muleta
teológica que por eras incontáveis foi
a causa direta de quase toda a miséria
humana.” [11]
O texto do livreto, supostamente ditado por um Mestre,
afirma:
“Deves penetrar fundo dentro de ti mesmo para encontrar Deus
dentro de ti e ouvir a Sua voz, que é a tua
voz.” (p. 20)
Por outro lado, o verdadeiro
Mestre ensina, em uma das suas Cartas:
“Um sentimento constante de dependência abjeta de uma
Divindade vista como a única fonte de poder faz com que um homem perca toda
autoconfiança e o impulso para a atividade e a iniciativa. Tendo começado
por criar um pai e um guia para si, ele
se torna como um menino e permanece assim até a idade avançada, esperando ser
conduzido pela mão tanto nos pequenos como nos grandes acontecimentos da vida.”
[12]
“Aos Pés do Mestre” afirma:
“Deus tanto é Sabedoria como Amor; e quanto mais
sabedoria tiveres mais Ele poderá se manifestar por teu intermédio.” ( p.30)
Enquanto isso, na
famosa Carta de Prayag, documento número
30 em “Cartas dos Mahatmas”, vemos as seguintes palavras de um dos dois Mestres
de Sabedoria que inspiraram diretamente a criação do movimento teosófico:
“A fé em Deuses ou em Deus e outras superstições atraem
milhões de influências alheias, entidades vivas e poderosos agentes para perto
das pessoas, e nos veríamos obrigados a usar
algo mais do que o exercício comum de poder para afastá-los. Nós
decidimos não fazê-lo. Não consideramos necessário nem proveitoso perder o nosso tempo travando uma guerra com
[espíritos] planetários
atrasados que se deliciam personificando deuses...”. [13]
O Mestre explica, assim, que os Adeptos dificilmente
podem chegar perto de pessoas que
acreditam em superstições como “Deuses e Deus”. Como se explica um contraste
tão profundo entre os dois pontos de vista?
Na verdade, C. W. Leadbeater – o mestre de Krishnamurti e verdadeiro autor do livreto – havia
fracassado em seu discipulado pouco depois de ser colocado em provação, nos
anos 1880. Como consequência disso, ele
nunca foi admitido à Escola Esotérica de H. P. Blavatsky, enquanto ela viveu.
De fato, quando Leadbeater foi morar novamente em Londres
depois de vários anos na Ásia, H.P.B. também vivia em Londres. Porém, ao invés ter
acesso à Escola Esotérica dirigida por H.P.B., Leadbeater ingressou no “grupo
interno” do sr. Alfred Sinnett, conforme Sinnett revela em sua Autobiografia.[14]
Naquele momento, as Cartas vindas dos Mestres haviam
cessado. Como tantos outros, Alfred Sinnett
falhara. Naquele momento, o grupo de Sinnett já era um duro adversário do
trabalho desenvolvido por H. P. Blavatsky. E foi no grupo de Sinnett que
Leadbeater desenvolveu seus siddhis inferiores, durante sessões mesméricas e
mediúnicas nas quais eles falavam com falsos Mestres. Três anos depois da morte
de H.P.B., Annie Besant juntou-se em
1894 àquele mesmo grupo de pessoas iludidas. Talvez não seja por coincidência
que, no mesmo ano, começou a perseguição política contra William Judge, que era
leal à proposta original de trabalho de HPB.
É neste contexto de abandono das suas fontes originais e
autênticas que a Sociedade Teosófica de Adyar adota, com Annie Besant, um discurso teológico semelhante ao dos
jesuítas e do Vaticano. A crença ou não em Deus está ligada a uma questão técnica
e prática de grande importância para a filosofia esotérica. A crença em um Deus
todo-poderoso – assim como a adoração emocional de Mestres imaginários mas “de
poder ilimitado” – é um ponto essencial
na versão falsificada de discipulado que Annie Besant e Charles Leadbeater
criaram durante a sua tentativa messiânica. Segundo eles, a autonomia individual
deve ser deixada de lado “por devoção”. Nisso, como em outros aspectos, eles
pensavam como qualquer sacerdote cristão.
Ponto por ponto, “Aos Pés do Mestre” ontradiz a
verdadeira Teosofia. O livreto afirma, por exemplo, que uma extrema limpeza
física é de grande importância para o aprendizado espiritual. Besant e
Leadbeater eram quase obsessivos em relação a isso. “Aos Pés do Mestre” faz a seguinte
recomendação para todos os aspirantes ao discipulado:
“O corpo é teu animal – o cavalo sobre o qual montas. Portanto
deves (.....) alimentá-lo corretamente, só com bebidas e alimentos puros, e mantê-lo
sempre minuciosamente limpo, sem o menor resquício de impureza. Pois sem um
corpo perfeitamente limpo e saudável, não podes realizar a árdua tarefa de
preparação, nem podes suportar o seu incessante esforço.” (pp. 22-23)
Lembremos bem da recomendação de “Aos Pés do Mestre” em
relação ao corpo físico – “mantê-lo sempre minuciosamente limpo” – enquanto
examinamos o que os próprios Mestres escrevem a respeito da higiene no plano
físico. Nas “Cartas dos Mahatmas”, um Adepto explica ao sr. Sinnett:
“Os nossos melhores adeptos, os mais eruditos e os mais
santos são das raças dos ‘tibetanos sebentos’ e dos Singhs do Punjab – você sabe que o leão é proverbialmente uma
fera suja e agressiva, a despeito da sua
força e coragem.” [15]
A palavra “Singh” usada neste parágrafo é um nome místico
e simbólico usado pelo mesmo Mahatma que escreve a carta. A identidade
metafórica entre o Mestre e os leões vem do fato de que, em sânscrito, a
palavra “Singh” significa “leão”.
A partir disso podemos concluir com segurança que os
Mestres dos Himalaias são com frequência fisicamente “sebentos” e “sujos”. Os
discípulos regulares deles às vezes até se recusam a usar roupas limpas, segundo
o Mestre menciona na mesma carta. De
fato, um dos seus discípulos recusou-se terminantemente a entregar uma mensagem
para Alfred Sinnett. A razão foi que
H.P.B havia pedido a ele que se apresentasse “com uma aparência pessoal mais
limpa”, para não ofender os preconceitos ocidentais de Sinnett contra “pessoas sujas”. O Mestre explica a Sinnett que o jovem discípulo não aceitava a ideia de atuar como os discípulos
de seitas ilegítimas e rivais, que realmente recomendam uma grande higiene física. (pp.
58-59)
O episódio mostra que tanto os Mahatmas como os seus
discípulos dão escassa atenção à limpeza ou sujeira física. Ele também
demonstra que um verdadeiro Mestre preserva inteiramente a autonomia de um
discípulo, que é portanto autorizado a manter seus próprios preconceitos contra
a higiene. Na mesma carta, além de
admitir o erro do seu chela, o Mestre também oferece um exemplo ocidental da
“santa resistência” contra a limpeza:
“Novamente preconceitos e letra morta. Durante mais de
mil anos – diz Michelet – os santos cristãos nunca se lavaram!” (p. 59)
Qual é então a verdadeira razão – alguém pode perguntar –
para que Leadbeater recomende tamanha “fobia mística” contra qualquer sujeira
corporal? Em seu ensaio “Totem e Tabu”, Sigmund Freud nos oferece uma
explicação psiquiátrica. Esta fobia, diz o
fundador da psicanálise, está ligada à neurose compulsiva: “O mais comum
destes atos obsessivos é lavar com água (obsessão com água).” [16]
Na realidade, o discipulado ou a aprendizagem esotérica é
um processo interno que não só preserva mas aumenta a autonomia do aprendiz. E isso
é exatamente o oposto do que se pode encontrar em “Aos Pés do Mestre” e em outros
tantos livros do período de Annie Besant
(1895-1933). O problema estaria limitado ao passado, se as ilusões de Besant e
Leadbeater já tivessem sido devidamente
esclarecidas e descartadas.
De acordo com a maior parte dos autores da Sociedade de
Adyar, o candidato a discípulo deve desenvolver uma obediência automática em
relação ao suposto Mestre. Isso, dizem eles, deve ser feito por um
sentimento de devoção. Na verdade, este é apenas o princípio da obediência cega que manda “fazer tudo o que o Mestre
quer”. A ideia tem sido muito
conveniente para os líderes de Adyar,
que se colocam como “intermediários”
entre os seus Mestres imaginários e o resto do movimento, e assim
concentram todo o poder em suas próprias mãos.
Até o começo da década de 1950, “ordens diretas” de
supostos Mestres eram recebidas através dos líderes da Sociedade de Adyar e da sua escola
esotérica. O sistema operou até o final da época de C. Jinarajadasa. Formalmente, estas “ordens” cessaram a partir
do começo da liderança de N. Sri Ram em 1953. Mesmo assim, o poder continuou
concentrado até hoje nas mãos dos sucessivos presidentes internacionais e
dirigentes da escola esotérica, os quais, segundo o costume iniciado por
Besant, devem ser tratados como Papas pelo resto dos membros da Sociedade de
Adyar, e se comportam como se fossem “representantes dos Mestres”.
Em “Aos Pés do Mestre”, como em outras obras que seguem a
mesma linha de pensamento, pode-se ver
uma recomendação direta de automática obediência
devocional e de renúncia ao pensamento próprio:
“Quando te tornares um discípulo do Mestre, poderás
sempre pôr a prova a verdade de teu pensamento colocando-o ao lado do Seu. Pois
o discípulo é uno com o seu Mestre, e necessita somente voltar seu pensamento
para o do Mestre para ver imediatamente se ambos estão de acordo. Se assim não
for, o pensamento do discípulo está errado, e ele deve modificá-lo
instantaneamente, pois o pensamento do Mestre é perfeito, porque Ele sabe tudo.
Aqueles que ainda não foram aceitos por ele não podem fazer isso
perfeitamente; mas eles podem ajudar
grandemente a si mesmos parando para pensar: ‘O que pensaria o Mestre a este
respeito? O que diria ou faria o Mestre nestas circunstâncias?’ Pois nunca
deves fazer, dizer ou pensar o que não possas imaginar o Mestre fazendo,
dizendo ou pensando.” (pp. 35-37)
As várias premissas falsas presentes no trecho acima
merecem um exame atento.
* Primeiro, o texto supõe que um discípulo é capaz de
entender plenamente a consciência e os pensamentos do seu Mestre. Para que isso
fosse verdade, seria preciso que não houvesse diferença – nem em amplitude de horizonte mental, nem em carma – entre um Mahatma e o pobre
discípulo ignorante que está sendo treinado por ele.
* Segundo, o texto supõe que um discípulo deve imitar
mecanicamente seu Mestre, tratando de copiar seus pensamentos, suas palavras e
suas ações. Na realidade, devido ao fato de que o Mestre e o discípulo são dois
seres diferentes, que possuem quantidades
radicalmente diferentes de sabedoria e
vivem em situações cármicas muito distantes uma da outra, os dois devem
inevitavelmente pensar, falar, e agir de modos muito diversos.
* Em terceiro lugar, este suposto discípulo desiste
totalmente de pensar por si mesmo, ou de ser responsável por sua própria vida e
suas ações. Ele se esconde atrás do que
imagina que seriam os pensamentos do seu Mestre. Naturalmente, para tornar o
“discipulado” mais fácil, tais “pensamentos dos Mestres” serão transmitidos ao
aprendiz pelas autoridades de Adyar. Aqui temos a manipulação de poder.
Na realidade, o aprendizado esotérico autêntico ocorre em
um nível muito mais profundo e é muito mais democrático, também.
É verdade que os estudantes não podem comparar os seus
pensamentos individuais com os
pensamentos individuais de qualquer Mahatma. Por outro lado, eles podem
facilmente comparar a sua visão do discipulado com os ensinamentos gerais dos
Mestres sobre o mesmo tema, tal como eles estão corretamente registrados nas “Cartas
dos Mahatmas”, nas “Cartas dos Mestres de Sabedoria” e em outras obras.
Este estudo comparativo é uma experiência reveladora, se
não for revolucionária. O que os Mestres ensinaram de fato sobre discipulado é
absolutamente o oposto do que se afirma na obra “Aos Pés do Mestre” e em muitos
outros livros mais recentes da literatura “esotérica” em geral. Já em 1882, os
Mestres estavam combatendo diretamente a “heresia da obediência cega”, que
também pode ser chamada de “princípio da preguiça mental”, algo que se alimenta
da submissão mecânica, se não mediúnica, a um Mestre imaginário. Um Adepto dos Himalaias escreveu:
“... Você tem uma carta minha em que explico por que nós nunca guiamos nossos chelas (mesmo os mais avançados; nem os avisamos
antecipadamente, mas deixamos que os efeitos produzidos pelas causas criadas
por eles ensinem-lhes uma melhor experiência. Por favor, leve em conta aquela
carta em especial. Antes que o ciclo termine, cada concepção errônea deveria
ser eliminada. Eu confio e dependo de você
para esclarecê-las inteiramente nas mentes dos membros de Prayag.” [17]
Este princípio pedagógico central, o princípio da
autonomia do aprendiz, é ensinado e mencionado por toda parte nos escritos de H.P.B. e dos Mestres. No volume “Cartas dos Mestres de Sabedoria”,
por exemplo, podemos ler este apelo, feito por um Mahatma a uma certa senhora de intenções altruístas:
“Você está pronta para fazer sua parte no grande trabalho
de filantropia? Você ofereceu-se para a Cruz Vermelha; mas, Irmã, existem
doenças e feridas da alma que não podem ser curadas pela arte de nenhum
cirurgião. Irá auxiliar-nos a ensinar à humanidade que os doentes-da-alma devem
curar a si próprios? Sua ação será a resposta.” [18]
A responsabilidade consciente do indivíduo diante da Vida
é a condição básica e fundamental para qualquer estudante de Teosofia, se ele quiser
obter uma quantidade razoável de êxito em seus esforços. O mesmo se aplica aos
discípulos leigos e aos aspirantes ao discipulado leigo.
Embora a tentativa messiânica do século vinte promovida por Adyar tenha
falhado como projeto, as suas falsas noções e o seu apego a ilusões confortáveis ainda intoxicam
mentes e corações de teosofistas em todo o mundo. As tendências mayávicas que resultam daquele
momento histórico também influenciam a
muitos que não pertencem à Sociedade de Adyar. Mesmo
agora, mais da metade das pessoas que se consideram teosofistas aceita
indiretamente as mesmas ilusões “avatáricas” e “clarividentes” criadas nas
primeiras três décadas do século 20. Isso
não é algo de importância secundária para o movimento esotérico. O perigo de
ser iludido é uma das razões pelas quais o lema de todo verdadeiro teosofista
deve ser, como H.P.B. escreve em “Ísis Sem Véu”
-
“Eu não aceito de modo
automático o ponto de vista de homem algum, esteja ele vivo ou morto!”[19]
De algum modo, o movimento deve renovar amplamente a si
mesmo para tomar os passos necessários e avançar em direção ao ano,
aparentemente distante, de 2075.
Felizmente, podemos confiar no fato de que os meios para
esta autorrenovação surgirão no tempo
correto e da maneira adequada ― talvez invisíveis, quase desapercebidos e pouco a pouco; mas
ainda assim tão inevitavelmente quanto a chegada de um novo dia.
NOTAS:
[1] “The Esoteric Character of the
Gospels”, de HPB, em “Collected Writings”,
Helena P. Blavatsky, TPH, Adyar, volume VIII, p. 173.
[2] “Vida e Morte de Krishnamurti”,
Mary Lutyens, Ed. Teosófica, Brasília, 1996, 296 pp., ver p. 34, nota de rodapé.
[3] “Is This Theosophy?”, livro
autobiográfico de Ernest Wood, Londres, Rider & Co., 1936, Paternost House,
E.C., reimpresso em edição fac-similar por
Kessinger Publishing, LLC, MT, USA, 319 pp., ver p. 163.
[4] “Is This Theosophy?”, página
162.
[5] “Vida e Morte de Krishnamurti”, Mary Lutyens, Ed. Teosófica,
Brasília, 1996, ver pp. 85 a 88.
[6] “Is This Theosophy?”, Ernest
Wood, p. 161.
[7] “Krishnamurti and the Wind”, de Jean Overton Fuller, The Theosophical
Publishing House, London, 2003, 300 pp., ver p. 23.
[8] “Aos Pés do Mestre”, Editora Teosófica, Brasília, edição de bolso,
148 pp., 1999, ver pp. 16 e 17.
[9] “Aos Pés do
Mestre”, p. 20.
[10] “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Editora Teosófica, Brasília, dois
volumes, 2001, ver volume II, Carta 88, pp. 53-54.
[11] “Cartas dos Mahatmas Para A.P.
Sinnett”, Carta 88, p. 55.
[12] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C.
Jinarajadasa, Ed. Teosófica, Brasília, 1996, ver a Carta 43 da primeira série,
pp. 103-104.
[13] “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”, volume I, Carta
30, p. 166. Esta carta é um documento de
grande importância para que se possa entender a posição da filosofia esotérica
sobre a questão de Deus.
[14] “Autobiography of Alfred Percy
Sinnett”, Theosophical History Centre, London, 1986, 65 pp.
[15] “Cartas dos Mahatmas”, volume I,
Carta 5, p. 57.
[16] “Totem and Taboo - Resemblances
Between the Psychic Lives of Savages and Neurotics”, de Sigmund Freud, Dover Thrift Editions, Dover Publications,
Inc., Mineola, New York, USA, 1998, 138
pp., ver p. 25.
[17] “Cartas dos Mahatmas”, Carta 95,
volume II, p. 151.
[18] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C.
Jinarajadasa, Ed. Teosófica, Brasília, 1996, ver a Carta 72 da segunda série,
p. 248. A edição brasileira comete um
erro, corrigido aqui. A palavra certa é “Irmã”, e não “Filha”. O mestre chama
de irmã a pessoa a quem a carta é dirigida.
[19] “Isis Unveiled”, H. P. Blavatsky, Theosophy Company, Los Angeles, vol. I, p. X.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da
situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu
formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas
prioridades a construção de um futuro
melhor nas diversas dimensões da vida.
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