Uma Estratégia Para Romper a Rotina
E Assumir as Rédeas da Sua Própria
Vida
Carlos Cardoso Aveline
O Que é Anestesia
A teosofia afirma que os seres humanos vivem geralmente
imersos em um processo de ilusão ou maya. Eles sonham acordados.
Esta afirmação pode ser confirmada pela observação direta
e, diante dela, parece recomendável investigar de que modo ocorre o processo
autorrenovável de ilusão na vida diária do indivíduo.
Não é difícil perceber que a ilusão funciona em grande
parte como um agradável processo de insensibilidade. A busca da sabedoria não é
cômoda. Embora a verdade não esteja tão longe quanto se pensa, o grande problema
consiste em saber se queremos olhar para ela de frente, porque isso implica
renunciar à anestesia.
A fuga do sofrimento inclui um processo de embelezamento artificial
da realidade. Nele a imaginação - conduzida pelo desejo pessoal - substitui
involuntariamente a constatação objetiva dos fatos. Então o cidadão vê as
pessoas e as situações como quer que elas sejam, e fica entre surpreso e
indignado quando percebe que a realidade, ao invés de se comportar
obedientemente, contraria as suas exigências e insiste em evoluir de maneira
natural, sem consultar a sua opinião.
Na contramão deste processo mayávico, a aprendizagem
teosófica é uma caminhada de desapego, lucidez e contemplação. Nela, o aprendiz
avança renunciando à anestesia. A filosofia esotérica original trabalha com a
verdade como ela é, olha-a de todos os pontos de vista, inclusive o ponto de
vista universal, e des-ilude o buscador da sabedoria ao ensinar que o
caminho da felicidade consiste em nada desejar do ponto de vista das vantagens
pessoais normalmente buscadas pelo eu inferior.
É a ausência de desejo pessoal egocêntrico que permite
constatar os fatos sem anestesia. Quanto mais se tem acesso à compreensão
profunda das verdades universais, mais claramente desmoronam certos aspectos da
vida individual, e mais se é levado ao despojamento e à vida simples em todos
os aspectos.
Cada vez que a vida parece injusta, isso ocorre porque o
aprendiz tinha alguma expectativa indevidamente alta a respeito deste ou
daquele aspecto da vida.
Pouco a pouco, o cidadão aprende a olhar os fatos de
frente. Optando por uma lucidez radical, ele trabalha para que a própria CAUSA da
dor - que é a ignorância - perca o seu poder sobre sua vida. Neste caminho
íngreme, surge o contentamento incondicional, em que não há qualquer desejo insatisfeito,
porque não há desejo algum. A ausência completa de desejos de ordem pessoal é a
mais clara definição de nirvana ou libertação espiritual. Como se pode
caminhar para esta meta? O primeiro passo é, provavelmente, compreender o
mecanismo da anestesia.
A Bem-Aventurança
e a Autoilusão
O processo do autoengano é realimentado pelas emoções e
pensamentos rotineiros. Para romper com o cenário envolvente da ilusão, é
necessário que a busca da verdade seja empreendida com método, com bom senso, e
com a firme decisão de perseverar, acumulando experiência pouco a pouco.
A origem da autoilusão se relaciona com o fato de que a alma
humana adivinha, com razão, a existência de uma bem-aventurança real e eterna,
e que a busca movida por uma necessidade saudável de unir-se a ela. A
bem-aventurança é a vocação natural do ser humano. É apenas quando ele decide
imaginar que há um caminho fácil para chegar até a felicidade que começa a
anestesia psicológica. O verdadeiro cego não tem intenção de enxergar. Ele ouve
o eco distante da felicidade eterna, ele percebe vagamente a sua autenticidade,
mas engana a si mesmo pensando que poderá encontrá-la sem trilhar o caminho espinhoso
da autotransformação. Ele adota, ou constrói, um sistema de crenças que lhe
prometa uma saída fácil, que legitime sua preguiça. Em seguida, ele começa a
detestar as situações em que suas fantasias são contrariadas.
Em “Ísis Sem Véu”, H. P. Blavatsky cita estas palavras de
Serjeant Cox:
“Não há falácia mais mortal do que a ideia de que a
verdade vence por sua própria força, de que basta ela ser vista para ser
aceita. Na verdade o desejo pela real verdade existe em muito poucas mentes, e
a capacidade de discerni-la existe em um número ainda mais reduzido. Quando os
homens dizem que estão procurando a verdade, eles querem dizer que estão
procurando por evidências para apoiar algum preconceito ou predisposição. As suas
crenças são moldadas segundo seus desejos. Eles veem tudo, e mais do que tudo,
o que parece confirmar aquilo que desejam; eles são tão cegos quanto morcegos
para qualquer coisa que os contradiga. Os cientistas não estão mais isentos
desta falha comum do que os outros.” [1]
Assim funciona o processo anestésico do pensamento
conduzido pelo desejo.
A filosofia esotérica é como um balde de água fria em
tais ilusões. Ela decodifica as religiões, e mostra a essência das filosofias.
Ela ensina a percorrer o Caminho Estreito que leva à autolibertação. Para fazer
isso, a filosofia esotérica necessita romper com os processos psicológicos e
psicossociais que paralisam a alma humana.
Há dois grandes sistemas de anestesia, e eles parecem
conviver bem entre si, porque ambos lucram com o estado atual de relativa letargia
da alma humana.
Um sistema anestésico é a crença em um Deus casuísta, que
faz favores pessoais em troca de rituais, velas acesas, orações e crença cega. O
outro é a fé religiosa na santíssima trindade chamada Dinheiro, Fama e Poder, mas
a observação isenta dos fatos mostra que a adoração destas divindades destrói a
vida da alma daquele que se dedica a elas.
O caminho da verdade e do bom senso é individual, é silencioso,
quase sempre invisível, e deve ser percorrido com base no mérito próprio. Em
sua obra “Ísis Sem Véu”, HPB cita palavras do antigo sábio hindu Narada para
expressar dois dos princípios básicos a serem seguidos por aquele que decidiu
ir além da anestesia:
“Nunca
diga estas palavras: ‘Eu não conheço isso, portanto isso é falso’. É
preciso estudar para saber, saber para compreender, e compreender para julgar.”
[2]
Este é o desafio que está diante dos estudantes atentos
da teosofia original. Para vencê-lo, é necessário identificar e desarticular
uma espessa rede de ilusões mentais e emocionais.
Formas Comuns de
Autoengano
Entre as formas mais comuns de falta de bom senso há quatro
que podem ser evitadas sem grande trabalho, quando há a devida atenção.
A primeira é a armadilha da “perfeição já existente” e do
“problema resolvido”. É a ideia de que somos perfeitos - os outros é que
ainda não perceberam isso -, ou de que este ou aquele indivíduo é perfeito, e
bastará segui-lo para alcançar a iluminação.
Uma segunda forma frequente de autoilusão consiste em
pensar que “deveríamos ser perfeitos”, ou de que alguém teria supostamente a
obrigação de ser perfeito. Esta armadilha é especialmente perigosa porque
empurra a muitos para uma decepção pessimista com o caminho.
A terceira ideia errada decorre da anterior e consiste em
pensar que a nossa evidente imperfeição é uma prova de que não podemos
aperfeiçoar-nos, ou que a imperfeição dos outros comprova o fato de que eles
não são capazes de aperfeiçoar-se. Esta é a ilusão da imobilidade e da impossibilidade
de superar o erro. Na verdade, nenhum ser humano é perfeito, mas todos eles se
aperfeiçoam, e alguns fazem isso de modo voluntário e consciente, colaborando
definidamente com a natureza.
Uma quarta forma comum de falta de discernimento é a
ideia de que este e aquele livro ou instituição contêm e explicam tudo o que é
necessário saber para alcançar a libertação espiritual, e não devemos buscar a
verdade com independência.
Atrás destas quatro formas simplistas de pensar há, na
verdade, doses apreciáveis de preguiça mental, ingenuidade, e apego à rotina. Evitar
estas quatro ilusões não é suficiente, porém. É preciso lembrar que o verdadeiro
autoaperfeiçoamento é interior e invisível aos olhos. Ele não consiste em
parecer perfeito ou sábio nesta ou naquela situação. Ele ocorre quando
compreendemos e combatemos as CAUSAS da ignorância própria e alheia, colocando
em movimento, de maneira crescentemente eficaz, o esforço que produz sabedoria.
Cabe, neste ponto, examinar de que modo isso pode ser realizado com segurança.
A Prática Diária
da Atenção Interior
A vida ensina que, antes de colher, é preciso plantar. As
causas da felicidade interior podem ser colocadas em movimento através do
esforço e da vigilância. A prática da auto-observação e da autodisciplina funciona
24 horas por dia e permite aumentar a relação do indivíduo com o que ele
considera essencial em sua vida. Assim, ele se torna capaz de dar importância
às coisas que são verdadeiras, e de não dar importância às coisas que não são
verdadeiras. Ele aprende que, independentemente das circunstâncias, ele sempre
tem a possibilidade da escolha consciente sobre o rumo das suas ações e do seu
estado de espírito, e percebe que isto define o seu presente e o seu futuro. Robert
Crosbie escreveu:
“O momento da escolha existe o tempo todo para cada
indivíduo.”
E ele afirmou também:
“Aquele que faz o melhor que pode, com uma
motivação correta e uma sincera boa vontade, faz o suficiente.” [3]
A disciplina diária é um instrumento fundamental para
isso, porque a vida constitui uma série de hábitos. O coração, os rins e o fígado
- assim como o plano emocional e o plano mental - se guiam por padrões
vibratórios. Para trilhar o caminho da sabedoria, é preciso examinar que tipo
de ritmo estamos dispostos a imprimir - por um ato definido de vontade - a cada
aspecto da nossa vida individual. Vejamos a seguir alguns pontos básicos que
exemplificam a prática diária da busca do autoconhecimento.
1) Simplificar
a agenda pessoal.
É recomendável tornar simples a vida nos planos físico, emocional,
profissional e familiar. Só uma mente livre de complicações pessoais pode dedicar-se
à contemplação e ao exame dos temas da filosofia universal.
A simplificação da agenda não virá de repente. Ela ocorrerá
a seu tempo, pouco a pouco, caso seja profundamente desejada. Um primeiro passo
é tomar a decisão de não renovar compromissos que não precisam ser renovados, e
de examinar bem cada ponto da agenda para ver se ele é efetivamente
necessário. Ainda neste item, merece especial atenção a lista de coisas que se
faz durante as horas de folga.
2) Definir
um horário diário para os estudos filosóficos.
O estudo regular da teosofia clássica muda as conexões
cerebrais de modo que um novo mapa de ideias e hábitos mentais passa a dar uma expressão
voluntária à função intuitiva do eu superior.
É melhor que haja um local fixo para o estudo. O
magnetismo próprio da consciência profunda ficará associado àquele local.
O horário deve ser, de preferência, logo ao acordar, antes
de a mente ficar ocupada com assuntos e obrigações do mundo físico. Vale a pena
começar o dia mais cedo. O cérebro, pela manhã, é como uma página em branco. As
primeiras ideias, ao tomar consciência do corpo, devem ser elevadas e firmes. O
estudo logo cedo aproveita o fato de que a mente ainda está descansada e a nossa
consciência acaba de “chegar de longe”.
O
que se deve fazer quando não é possível ter um horário e um local fixos para a
prática diária de estudo e introspecção? Nada é mecânico no mundo da teosofia.
Há outras variáveis importantes no processo do estudo diário, além do local e
do horário. Entre elas estão:
* A qualidade e o altruísmo da motivação pela qual
se deseja aprender;
* A intensidade e a firmeza da motivação pela qual
se deseja aprender;
* O desapego e a capacidade de abandonar no ritmo
adequado objetivos, hábitos ou compromissos pessoais que são conflitivos com a
prática da busca da sabedoria;
* A capacidade de conduzir-se em todas as situações
do modo mais correto possível do ponto de vista do ideal da sabedoria.
Vale,
sobretudo, a média dos diversos fatores. Os horários oscilantes podem ser
compensados por um horário fixo mais ampliado durante um ou dois dias por
semana, quando há mais folga. Cada estudante deve observar e somar experiências,
levando em conta tanto as recomendações presentes na literatura como a sua situação
concreta de curto prazo. É recomendável combinar tenacidade no que é essencial
com flexibilidade no que é secundário. O tempo ensinará a diferenciar
corretamente uma coisa da outra.
O
desejo de ter condições de estudar com eficácia produz sem exceções os seus
efeitos naturais − na razão direta da sua intensidade e duração. As
oportunidades para que o estudo aconteça aparecem cedo ou tarde, de um
modo ou de outro. A vontade firme e estável criará os mecanismos práticos
no momento certo, mas o teste da perseverança terá de ser vencido.
3) Cortar
o consumo de carne e bebidas alcoólicas.
Tanto o consumo de carne como o consumo de bebidas
alcoólicas são fatores gravemente negativos para a saúde física. Além disso, impedem
o desenvolvimento da inteligência espiritual e criam mau carma nos vários
níveis de consciência.
A ingestão de álcool é uma violência contra si mesmo. A
ingestão de cadáveres de animais implica legitimar uma forma covarde de violência
contra seres obviamente dotados de alma, embora sejam espiritualmente mais jovens
do que os humanos. Por outro lado, a eliminação do consumo de cadáveres de
animais deve ser feita gradualmente, ao longo de alguns meses - para que o
organismo se re-eduque em um ritmo adequado do ponto de vista bioquímico.
Erros acumulados durante longo tempo devem ser corrigidos
passo a passo, para que a solução seja definitiva.
4) Manter a
televisão desligada.
Salvo raras exceções, a televisão é, à sua própria
maneira, uma droga estupefaciente. Ela paralisa o cérebro e a consciência humana.
Ela faz uma pessoa viver emoções que não são suas e que adulteram sua própria
sensibilidade e seu próprio ser emocional.
A TV é um dos instrumentos centrais de anulação e
dominação das mentes das pessoas, no novo tipo de autoritarismo “carismático e comercial”
que há hoje. Uma parte importante da prática diária é manter a televisão
desligada e a mente livre para temas que valham a pena.
Em compensação, o computador e a Internet não reduzem o
ser humano à paralisia mental, e, potencialmente, são instrumentos de ação
solidária na busca da sabedoria.
5) Avaliar a relação com a
vida do ponto de vista da ação correta.
É oportuno, para obter maior eficiência nos estudos
teosóficos, observar o grau de ética presente na dinâmica dos nossos relacionamentos,
e na nossa relação com a vida em geral. Tal observação deve ser feita, porém, sempre
do ponto de vista do nosso potencial positivo e sagrado. Os erros, testes e
provações deverão ser reconhecidos como lições valiosas de teosofia. O progresso
real é frequentemente homeopático e deve ser valorizado como tal. Cada situação
da vida diária é uma oportunidade para consolidar um padrão mais correto de
hábitos físicos, emocionais e mentais. O modo como convivemos com nós mesmos é
a base da maneira como convivemos com os outros.
6) Cultivar
o silêncio.
Além do estudo diário, é importante que haja um tempo de
recolhimento. Não é necessário “meditar” como uma disciplina rígida, e sempre da
mesma maneira. Mas vale a pena ler lentamente uma página de algum livro que
seja inspirador e tomar notas em um caderno de anotações, ou ficar alguns
minutos examinando esta ou aquela ideia da sabedoria universal.
Trata-se de ter um momento, durante o ciclo diário,
dedicado a cultivar a lentidão contemplativa, a reflexão interior e a avaliação
dos nossos esforços por viver corretamente.
7) Participar de
um Projeto Coletivo Cuja Meta é Altruísta.
É um privilégio precioso fazer parte de um projeto altruísta
que promove o princípio da independência solidária e evita a criação de burocracias.
O estudante deve compartilhar com outras pessoas não só o que já aprendeu, mas
também as suas dúvidas sobre a sabedoria divina e a arte de viver. Isso o capacita
para aprender e para ajudar ainda mais.
A ioga da ação correta é necessária para que a ioga do
autocontrole e a ioga da contemplação possam ocorrer de modo eficaz. Quando
livre do apego a instituições, a ação solidária no movimento teosófico permite
limpar as lentes dos óculos com que olhamos a realidade, tirando delas as
manchas do egocentrismo que impedem uma visão clara.
Avançar Com
Firmeza e Flexibilidade
As ideias acima não são dogma. São exemplos de ações que
levam a uma “prática diária da atenção”, em um processo que expressa no
cotidiano a livre aprendizagem individual da filosofia esotérica clássica.
Cada estudante é o principal responsável pela sua caminhada
ao longo da vida. Ele deve, portanto, montar uma estratégia própria para
alcançar de fato aquela porção de sabedoria que está mais facilmente ao seu alcance
na encarnação atual.
A sua estratégia deve ser regularmente reavaliada com
base nos resultados obtidos. Havendo
perseverança, os esforços terão efeitos benéficos no longo prazo, no médio
prazo e também no plano imediato. A cada momento a vida do aprendiz ganha mais
significado e, mesmo em meio a desafios e dificuldades, ele pode ter uma
satisfação interior cada vez maior.
NOTAS:
[1] “Isis Unveiled”, H.P.B., Theosophy Company, Los Angeles, Volume I, p. 615. Na
edição da Ed. Pensamento, “Ísis Sem Véu”, volume II, p. 283.
[2] “Isis Unveiled”, obra citada, volume I, p. 628. Na edição brasileira, “Ísis
Sem Véu”, volume II, pp. 295-296.
[3] “A Book of Quotations”, de Robert Crosbie, Theosophy Co., India, pp.
102-103. O livro está publicado em PDF em nossos websites associados.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação
do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja
Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas
diversas dimensões da vida.
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