2 de abril de 2013

O Observatório de Luxor

Um Estudo Sobre a Loja
Ocidental de Sábios Imortais

Carlos Cardoso Aveline

Uma cena reconstituindo a biblioteca de Alexandria, no Egito


A civilização ocidental começou, de certo modo, com a Grécia antiga. Helena P. Blavatsky escreveu em A Doutrina Secreta:

“Este período, iniciado com Buddha e Pitágoras numa extremidade e terminado com os Neoplatônicos e Gnósticos na outra ponta, é o único foco ainda presente na História no qual convergem pela última vez os raios claros da luz vinda dos eons de tempo passado, e não obscurecida pelas mãos do fanatismo.” [1]

E um Mestre dos Himalaias acrescenta em uma das suas Cartas: 

“Veja os remanescentes dos atlantes - os antigos gregos e romanos (os modernos pertencem todos à quinta raça); veja quão grandiosos e curtos, quão passageiros foram os seus dias de fama e glória!”[2]

O mundo greco-romano antigo tem sido uma fonte inspiradora para a civilização ocidental e para a humanidade em seu conjunto.

A filosofia ocidental clássica oferece respostas para os problemas enfrentados pelo ser humano. O estudante de filosofia esotérica pode perceber a força da sabedoria divina ao ler, por exemplo, os Discursos de Epicteto, os textos de Sêneca, Musônio Rufo, Marco Aurélio e Plutarco, e ainda o texto da Tábua de Cebes ou os Versos de Ouro de Pitágoras. Todos eles têm uma linguagem simples e estão voltados para a vida cotidiana do buscador. 

Convivendo com a substância da vida desses pensadores através da leitura, da meditação e da prática diária, é possível vivenciar mais de perto o fato de que existe, há 2.500 anos, uma escola esotérica para todo o Ocidente. Esta escola de almas é um fio condutor de ensinamentos sagrados, e está à disposição das pessoas de boa vontade. Não é uma corporação ou instituição externa, mas uma linha de pensamento e de ação. É um padrão vibratório. Esta escola “flutua no ar”, ou mais precisamente na luz astral, inspirando mentes e corações de muitas maneiras. As pessoas se ligam a ela por sintonia interior e não por filiação formal.

Os indícios e as evidências da ação dessa corrente inspiradora estão espalhados - assim como seus ensinamentos - pelas áreas de influência e pelas obras escritas de centenas de pensadores e dezenas de escolas filosóficas. Incluem avanços científicos e pesquisas nas mais diferentes áreas de conhecimento. E também podem ser encontrados em diversas tradições religiosas.

Desde o final do século 19, a obra escrita e o exemplo de vida de Helena P. Blavatsky (HPB) formam um foco de luz e indicam aos buscadores mais atentos o modo como funciona o processo de inspiração. 

A mais bem documentada das dezenas de biografias de HPB é o livro Helena Blavatsky, de Sylvia Cranston (Editora Teosófica, Brasília). A parte sete da obra mostra o impacto que o trabalho e a vida de HPB vêm tendo sobre o rumo da história humana, e revela o processo de funcionamento da linha de inspiração sutil que está disponível para a humanidade e é mantida aberta pelo conjunto de seres sábios que transcenderam a etapa atual de evolução.

Por um lado, a energia da consciência planetária superior tem estado ao alcance de todos os aspirantes ao discipulado, embora alguns deles tenham pouca ou nenhuma consciência cerebral do processo de inspiração, ou mesmo da existência de Adeptos. Por outro lado, essa ajuda interior influencia de algum modo a todas as pessoas que buscam sinceramente a paz interior e a sabedoria.

O processo do discipulado ou aprendizagem esotérica foi abordado de modo relativamente detalhado em um estudo específico, O Caminho do Aprendizado (disponível em duas partes em nossos websites associados).

Há muitos milênios a ajuda interna e mística estimula e apoia os que buscam o bem da humanidade -; mas nem todos  têm uma noção adequada do seu funcionamento. A compreensão desse processo, ainda que parcial, provoca uma abertura gradual de horizontes. Do ponto de vista da filosofia esotérica, a ideia de pesquisar na prática a dinâmica desse processo faz com que a nossa tarefa vá muito além de memorizar e repetir literalmente os escritos de HPB, as Cartas dos Mahatmas ou outras obras importantes de filosofia. O trabalho dos verdadeiros estudantes é também criativo. Eles devem abrir espaço concreto para a sabedoria no mundo de hoje.  

O verdadeiro movimento esotérico é um espaço de pesquisa e aprendizado independentes e deve permanecer livre de rótulos e crenças cegas. Ele é um campo magnético formado por aspirantes à sabedoria.

Três Centros da Fraternidade Universal

Os Iniciados ensinaram que há três grandes centros da Fraternidade Universal no mundo. Um Mahatma afirma em uma carta:

“Assim como o curso do rio depende da natureza da sua bacia, o canal da comunicação do conhecimento deve se adequar às circunstâncias que o rodeiam. O hierofante egípcio, o mago  caldeu, o Arhat  e o Rishi [3] empreenderam na antiguidade a mesma viagem de descoberta e no final chegaram à mesma meta, embora por trilhas diferentes. Há, mesmo no momento atual, três centros da Fraternidade Oculta, amplamente separados do ponto de vista geográfico, e também do ponto de vista exotérico. As verdadeiras doutrinas esotéricas são idênticas em substância, embora se diferenciem nas palavras; todas buscam o mesmo grande objetivo, mas não há duas delas que concordem, aparentemente, nos detalhes de procedimento. É um fato do dia-a-dia encontrar estudantes que pertencem a diferentes escolas de pensamento sentados lado a lado aos pés do mesmo Guru. Upasika (a senhora B.) e Subba Row, embora discípulos do mesmo Mestre, não seguem a mesma filosofia - ela é budista e ele é advaita.”  (ver Carta 120, p. 257 do volume II de “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”)  

Um dos três grandes centros de ação da fraternidade de Iniciados está situado nos Himalaias. A ele pertencem os Mahatmas que ajudaram mais diretamente a criar o movimento teosófico entre 1875 e 1891.

Outra seção da Fraternidade Oculta está nas Américas, e reúne Iniciados dos povos  remanescentes da quarta raça-raiz, habitantes da cordilheira dos Andes, na América do Sul, e de certas regiões da América Central e da América do Norte.

O terceiro centro, tema do presente artigo, é conhecido como Observatório de Luxor. Está situado tradicionalmente no Egito e tem uma relação especialmente forte com a tradição esotérica ocidental. 

A palavra Luxor designa uma cidade egípcia famosa por suas ruínas de grande valor histórico. A carta 3, segunda série, de Cartas dos Mestres de Sabedoria [4] é assinada por diversos adeptos desse centro da Fraternidade Oculta. Estão ali os nomes de S. B. (Seção de Ellora), P. I. (Seção de Salomão), R. M. (Seção de Zoroastro), e T.B. Os nomes destas seções sugerem a sua dimensão intercultural. No final do texto, há a indicação de que a carta foi escrita no “Observatório de Luxor”. 

Não se trata de um observatório astronômico, mas de um observatório de almas humanas em que brilha com força a luz da boa vontade. Neste caso, não existe diferença entre observar e inspirar.

O adepto que usava o nome místico de S. B. cumpriu um papel central durante os primeiros anos do esforço teosófico. Considerando-se o universo das cartas conhecidas e publicadas, ele está num nítido terceiro lugar entre os que mais escreveram.

Sabemos que o mestre S. B. pertence à Seção Ellora do Observatório de Luxor;  porém, as informações sobre a Seção Ellora são extremamente escassas. Há uma nota de pé de página do editor C. Jinarajadasa, na carta 3, informando que Ellora é, na Índia, um conjunto de cavernas ou grutas situadas 350 km ao norte de Mumbai (antiga Bombaim).  

Ellora foi declarado um Patrimônio Mundial pela UNESCO em 1983, e representa a epítome deste estilo de arquitetura na Índia. As suas centenas de monumentos incluem pelo menos 34 antigos monastérios e templos. Ellora certamente constitui um centro magnético de grande importância, e algumas das suas cavernas podem ser desconhecidas e invisíveis para o público devido a uma proteção oculta. 

Na obra A Doutrina Secreta (“The Secret Doctrine”, Theosophy Co., vol. II, pp. 220-221), H. P. Blavatsky nitidamente sugere que Ellora e outros lugares antigos têm ainda hoje vastas redes subterrâneas de labirintos e passagens, talvez com seis ou sete andares. Quanto a épocas antigas e esquecidas, HPB afirma em Ísis Sem Véu (Ed. Pensamento, volume II, capítulo XIV, p. 239, entre outras) que as construções e ruínas de Ellora são tão semelhantes às velhas ruínas da Guatemala, do México e outros lugares que os seus construtores evidentemente tinham contato entre si. Na página 263 do mesmo volume II de “Ísis Sem Véu”, ela também menciona antigas salas subterrâneas em Ellora e suas ligações com outros lugares.

Vários elementos de informação fortalecem a ideia de que o Centro ocidental de Adeptos é uma grande fonte de inspiração transcendente.

Nas décadas pioneiras do século 19, quando o movimento teosófico moderno necessitava formas externas de contato com os Mahatmas, um Mestre de Sabedoria escreveu para Alfred P. Sinnett, referindo-se a HPB como “velha senhora”:

“O sol da Teosofia tem que brilhar para todos, não para uma parte. Há muito mais neste movimento do que o que você percebeu até agora, e o trabalho da S. T. está vinculado a um trabalho similar que está sendo realizado secretamente em todas as partes do mundo. Mesmo na S. T. há uma seção, dirigida por um Irmão grego sobre a qual nenhuma pessoa da Sociedade sabe, com exceção da velha senhora e de Olcott; e mesmo este sabe apenas que o trabalho avança e ocasionalmente executa alguma ordem minha com relação a ele. (.....) A Europa não será descuidada, nunca tenha receio disto; mas talvez você não possa antecipar como a luz será derramada lá.” [5]

Esse trecho merece comentários.

Naqueles tempos pioneiros (1875-1891), o movimento teosófico tinha três seções. A primeira seção era formada apenas por Iniciados. A segunda era composta de discípulos. A terceira reunia os aspirantes ao discipulado e os membros em geral.

O que o Mestre afirma acima, ao dizer que há uma seção sobre a qual quase ninguém sabe, é que havia, de certo modo, uma quarta seção, dirigida por um Iniciado grego. O fato  mostra a proximidade cultural que há entre Egito e Grécia. Durante muitos séculos, o Egito pertenceu totalmente ao mundo cultural grego: daí o neoplatonismo e o neopitagorismo de Alexandria, com Amônio Sacas, Plotino e Porfírio, entre outros. E, ao assegurar que “a Europa não será descuidada”, o Mestre está sugerindo que essa seção está relacionada com o trabalho dos Iniciados no Ocidente.

Será interessante examinar algumas informações disponíveis sobre um dos “Irmãos” (Adeptos) gregos.   

Através da carta 21, segunda série, de Cartas dos Mestres de Sabedoria, ficamos sabendo que Henry Olcott tinha consigo um retrato de um mestre chamado Serápis, e que Olcott usava aparentemente o nome alternativo de Apollo para referir-se a esse mestre. O nome Apollo parece conter uma referência à relação entre esse Adepto e a cultura clássica da Grécia. O deus Apolo, o espírito do Sol, era mitologicamente filho de Zeus. Pitágoras, o primeiro filósofo, era associado a Apolo.

O termo Serápis também designa aquele que foi o deus oficial do Egito durante a longa ocupação do país pela Macedônia helenística, desde 305 a.C. até 30 a.C.  O deus foi adotado pelo primeiro governante grego do Egito, Ptolomeu I Sóter, que tinha como meta vincular as tradições mitológicas do Egito e da Grécia.

A principal estátua de Serápis ficava na cidade egípcia de Alexandria, em um templo especialmente construído para ela. Esse deus absorvia aspectos de Osir-Apis, “o touro morto Osíris”. Osíris, cujo mito incluiu a ressurreição muito antes do Novo Testamento cristão, era um deus que cumpria as funções de rei e juiz das almas no pós-morte. [6]  

A Serápis eram atribuídas curas miraculosas, o que atraía multidões a Alexandria. Ele também era um deus da fertilidade - e, de certo modo, da cultura. Em seu livro sobre o papel das grandes bibliotecas na história da humanidade, Matthew Battles esclarece que não havia apenas uma grande biblioteca em Alexandria, mas duas:

“A maior delas foi construída no século III a. C., no interior do Mouseion, ou templo das Musas. Sua ‘irmã’ menor foi criada um século depois, no interior do templo de Serápis, deus egípcio helenizado e padroeiro da sincrética Alexandria, cuja proteção os ptolomeus, sempre habilidosos no trato de questões teológicas, invocavam para si. Ambas as coleções ficavam no Brucheion, parte da cidade onde ficavam os palácios reais, e é comum que se fale a respeito delas como se fossem uma só.” [7]

O Egito helenizado irradiava a cultura grega para o mundo, assim como Alexandria brilhava no contexto egípcio. Matthew escreve:

“Nos primeiros séculos da nossa era, a cidade seria o palco de intensa competição cultural entre pagãos, judeus, cristãos e neoplatônicos. Aquilo que conhecemos hoje como a tradição judaico-cristã teve suas origens no ecletismo de Alexandria. Suas bibliotecas sempre se mantiveram acima dessas disputas: tinham por objetivo reunir em suas estantes toda a herança da literatura grega, bem como as obras mais significativas escritas em diversas línguas estrangeiras. A biblioteca de Alexandria foi, assim, a primeira com aspirações universais e, com sua comunidade de estudiosos, tornou-se o protótipo das universidades da era moderna.”[8]

A influência cultural de Alexandria estava perfeitamente de acordo com o plano dos Adeptos para acelerar a evolução humana e eliminar as causas de sofrimento desnecessário. Por isso é natural o fato de que o movimento esotérico moderno seja uma continuação e uma retomada dessa linha de atuação, como HPB deixa claro em seus livros.

Ao referir-se à origem do termo “teosofia”, que surgiu em Alexandria, a sra. Blavatsky escreve:

“Ele vem dos filósofos de Alexandria, os chamados amantes da verdade, Filaleteus, de ‘Fil’ (amar) e ‘Aleteia’ (verdade). O nome ‘teosofia’ data do século três da nossa era, e começou a ser usado por Amônio Saccas e seus discípulos, que criaram o sistema Teosófico Eclético (...). Disso surgiu o lema adotado pela Sociedade Teosófica: ‘Não há religião mais elevada que a verdade’. O principal objetivo dos fundadores da Escola Teosófica Eclética era (...) reconciliar todas as religiões, seitas e nações sob um sistema comum de ética, com base em verdades eternas.” [9]

Assim, quando os Mahatmas propuseram uma filosofia esotérica e um movimento voltados para o estudo comparado das diferentes tradições filosóficas e religiosas e para a vivência da fraternidade universal, eles não estavam agindo apenas com base nas filosofias orientais e na sabedoria dos raja-iogues que habitam os Himalaias. Sua ação surgia com base também na melhor tradição de sabedoria ocidental, inspirada pelos Adeptos cujo núcleo central é sediado no Egito e se relaciona com a cultura helênica.

A Importância de um Casal Humano

No período entre 1875 e 1891, a Loja ocidental da Fraternidade de Iniciados participava do dia-a-dia do movimento esotérico.  

Em março de 1883, por exemplo, o jornal Indian Mirror, de Calcutá, narrava curas feitas por Henry S. Olcott com imposição das mãos. Olcott beneficiava doentes que não haviam obtido êxito com nenhum dos tratamentos da medicina convencional, e isso chamava atenção do público. Em um curto bilhete dirigido a seu discípulo leigo Alfred Sinnett, um Mahatma oriental explicou a origem magnética dos poderes curativos de Olcott: 

“Isto tudo é feito através do poder de um cacho de cabelos mandado para H. S. O. pelo nosso amado Chohan mais jovem.” [10]

O “Chohan mais jovem” era o mestre Serápis.

Outra manifestação importante do mesmo Mestre aborda  os afetos humanos e aparece em Cartas dos Mestres de Sabedoria. Ali, na carta 18 da segunda série, o instrutor Serápis aborda o aspecto espiritual da relação de casal:  

“A pureza do amor terreno purifica e prepara para a realização do Amor Divino. Imaginação humana alguma pode conceber os ideais da divindade a não ser através daquilo que lhe é familiar. Aquele que se prepara para compreender o Infinito deve compreender antes o finito.” 

E ele acrescenta, na carta 19 da segunda série:

“...Onde um amor verdadeiramente espiritual busque consolidar-se através de uma união pura e permanente de duas pessoas, no sentido terreno, não há pecado nem crime aos olhos do grande Ain-Soph [11], pois esta é somente a repetição  divina dos Princípios Masculino e Feminino - o reflexo microcósmico da primeira condição da Criação. Diante de uma tal união os anjos bem poderão sorrir! Mas uniões como essas são raras, Irmão meu, e podem ser criadas apenas sob a sábia e amorosa supervisão da Loja (...)”.[12]

Aqui, como em outras Cartas, o mestre se refere ao Centro Adeptos de Luxor como uma Loja. Chama a atenção, nas cartas desse Adepto, o modo intenso como ele defende Helena Blavatsky, que já então era bastante incompreendida e atacada, como geralmente ocorre com qualquer pessoa que questiona os preconceitos dominantes da sua época.  

No mundo preconceituoso do século 19, HPB era uma mulher descasada. Vivia sozinha, viajava muito e dava pouca ou nenhuma importância às aparências. Tinha uma vida pura. Estava totalmente dedicada ao ideal espiritual. Mas era irreverente e punha por terra os principais dogmas do cristianismo autoritário daquela época, enquanto também questionava a superstição e a ignorância acumuladas nas outras diversas religiões do Oriente e do Ocidente. Isso era mais do que suficiente para despertar uma furiosa oposição por parte das mentes pequenas. 

Os ataques contra ela não eram poucos, e nem sempre é fácil defender os que são vítimas de injustiça. Em determinado momento, o mestre Serápis adverte Olcott por haver escutado críticas de alguém contra HPB, optando por manter silêncio e não erguer a voz para defendê-la. A advertência foi feita de modo sutil, mas eficiente.  Usando poderes ocultos, o mestre fez com que se materializasse diante de Olcott  um papel com uma mensagem em que não havia referências ao incidente, mas  com uma reprodução de um trecho do Dhammapada budista.[13] As três primeiras frases do trecho dizem:

“Aquele que ouve seu irmão ser ultrajado, e mantendo a face serena deixa a ofensa passar despercebida, tacitamente concorda com o inimigo, como se admitisse que a mesma fosse apropriada e justa. Aquele que faz isso tem o coração de rato ou o egoísmo jaz no fundo do seu coração. Não está ainda pronto para ser ‘um companheiro’.” [14] 

Para bom entendedor, meia palavra basta: o mestre apenas escreveu duas palavras -  “Tradução correta” -  e assinou. 

A citação do Dhammapada não é localizável nas versões públicas da obra. No entanto, o mestre escreveu em inglês usando palavras separadas, “Dhamma Padam”.  Estes dois termos podem ter vários significados. “Dhamma” ou “Dharma” significa Lei, Dever, Virtude e Doutrina. “Padam”  ou “Pada” é “caminho” ou “disciplina”. “Dhamma Padam”  pode ser interpretado como uma referência a todo o cânone sobre a disciplina que leva à Sabedoria, e não ao livro popularmente conhecido como “Dhammapada”.

É significativo o fato de que a mesma ideia destas três frases pode ser vista, com outras palavras, imediatamente antes da Escada de Ouro, no Memorando Preliminar da Escola Esotérica fundada por Helena Blavatsky. Além destas frases, a citação inteira feita pelo mestre, composta por três parágrafos, é similar em conteúdo aos parágrafos que antecedem a Escada de Ouro.

Um Mestre Pouco Conhecido

Vejamos mais alguns dados sobre esse personagem pouco conhecido, que tinha notável influência sobre o trabalho de outros Adeptos. Um Mahatma oriental escreveu a Henry Olcott:  

“...Uma vez que você decidiu fazer da Índia seu novo país, estando isto em concordância com as ordens diretas de nosso bem-amado Senhor e Chefe, aquele que você conhece pelo nome de S. e de Maha Sahib, você partiu não antes, porém mais tarde do que deveria.” [15]

Em seguida, em uma nota de pé de página, o editor C. Jinarajadasa explica: “Maha Sahib, um título dado ao Mestre Serápis, não deve ser confundido com o de Maha-Chohan”.

A palavra Maha significa “grande” em sânscrito. Sahib é um termo indiano que significa “senhor, mestre” e era usado como uma maneira respeitosa de dirigir-se, na Índia colonial, a europeus. A expressão Maha Sahib parece sugerir que o Mestre Serápis, de corpo físico europeu, tivesse atividades também na Índia, como parte da íntima cooperação entre diferentes lojas da Fraternidade de Adeptos.  (Como veremos mais adiante, Sinnett o viu uma vez  enquanto ainda morava na Índia.)  

Jinarajadasa deixa claro que Maha Sahib não é “Maha-Chohan”. As duas expressões significam grande senhor, com a diferença de que a palavra Chohan pertence ao idioma tibetano.  O adepto conhecido pelo nome de Maha-Chohan era o mestre e líder direto dos dois Mahatmas que inspiraram mais diretamente a criação do movimento teosófico e trabalharam em contato intenso e direto com H.P. Blavatsky.  Eles são membros do Centro da Fraternidade Universal sediado nos Himalaias.

O que poderia aumentar o perigo de confusão, sugerindo erradamente que Maha Sahib e  Maha-Chohan fossem dois nomes para o mesmo Mahatma é o fato de que o Mestre de HPB era ele próprio discípulo e auxiliar do Maha-Chohan e, mesmo assim, chamou o Mestre Serápis ou  “Maha Sahib” de “senhor e chefe”, na carta citada.

A explicação disso é que o surgimento do movimento esotérico foi uma operação conjunta dos três grandes grupos de adeptos, e o Mestre de HPB consultava e ouvia seres mais desenvolvidos do que ele, tanto na loja Oriental como na loja Ocidental.

Fica claro, em várias cartas, que o Mestre Serápis dava orientações ao Mestre de HPB (M.), e este mestre as seguia à risca. [16]

Outro Iniciado, H.,  seguia ordens do Maha Sahib, conforme podemos ver nas cartas 43 e 44 da segunda série de Cartas dos Mestres de Sabedoria. Tudo isso demonstra que Serápis Bey era um Adepto de vasta responsabilidade.

A existência de uma estreita colaboração entre a Loja dos Himalaias e a Loja Egípcia é demonstrada em inúmeros trechos das Cartas.

Em 1882, por exemplo, surgiu uma crise político-militar no Egito. Um Mahatma oriental, usando um estilo irônico, escreveu o seguinte para o seu discípulo leigo Alfred Sinnett, jornalista e editor-chefe de um dos principais jornais diários da Índia:

“As operações egípcias dos seus abençoados compatriotas envolvem tamanhas consequências locais para o corpo de Ocultistas que ainda permanece lá e para aquilo que eles estão protegendo, que dois dos nossos adeptos já estão lá, havendo-se somado a alguns irmãos Drusos, e três outros estão a caminho. Foi-me oferecido o agradável privilégio de ser testemunha ocular da carnificina humana - mas recusei, agradecendo. É para grandes emergências como esta que a nossa Força está estocada, e portanto não ousamos desperdiçá-la...” [17]

Naquele momento, militares ingleses e franceses esmagavam violentamente um movimento nacionalista na cidade-porto do Egito, a histórica Alexandria.  Enquanto trabalhava na edição brasileira das Cartas dos Mahatmas, fiz uma consulta à Encyclopaedia Britannica e acrescentei, em uma nota de rodapé, as seguintes informações: 

“Controlado por forças conjuntas inglesas e francesas, o Egito mostrava desde 1879 sinais crescentes de movimentação nacionalista. Em 1882, o líder popular Arabi Pasha comandou uma revolta. No começo do ano o governo egípcio assumiu posições independentes das forças coloniais, e Arabi assumiu o Ministério da Guerra. As frotas inglesas e francesas foram deslocadas para Alexandria em maio. Em junho, houve um massacre naquela cidade, mas a resistência prosseguiu. Em 11 de julho, os ingleses bombardearam os fortes da cidade. Uma força expedicionária inglesa esmagou as forças de Arabi em 13 de setembro. A Carta do Mahatma foi recebida precisamente em julho de 1882.”

A Biblioteca de Henry More

Estudando “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”, o pesquisador percebe que o mestre Serápis Bey apareceu certa vez para Alfred Sinnett em sonho, durante o sono. Estava ao lado de um Mahatma oriental.  Segundo as cuidadosas anotações de Sinnett, o episódio ocorreu na noite de 19 de outubro de 1880. [18]

Entre muitos outros, dois indícios da estreita cooperação entre a Loja do Egito e a Loja dos Himalaias podem ser citados ainda: 

*HPB foi misteriosamente ajudada a redigir longos trechos da sua obra monumental  Ísis Sem Véu pelo pensador Henry More, filósofo neoplatônico que morreu em 1687, mas que no final do século 19 - cerca de duzentos anos depois - estava firmemente instalado com sua vasta biblioteca no kama-loka, o primeiro grande estágio do processo pós-morte. [19] Ora, a tradição neoplatônica/neopitagórica está sob a égide da Loja Grega-Egípcia ou Observatório Luxor.  A colaboração entre Henry More e HPB é descrita no primeiro volume do Diário de Henry 
Olcott.[20]

*Na Carta 120 de Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett  [21], que foi escrita por um  Mahatma a partir de uma ordem do Maha-Chohan, há uma enfática defesa da filosofia hermética, que vem do Egito antigo e resgata o neopitagorismo e o neoplatonismo. Na carta, o Mahatma faz o possível para preservar, dentro da Loja teosófica de Londres, o equilíbrio entre dois grupos de estudantes. De um lado, estavam os que preferiam os ensinamentos oriundos do Oriente e transmitidos por Adeptos dos Himalaias. Esses eram liderados por Alfred Sinnett, que nessa época morava novamente em Londres. De outro lado, estavam os estudantes que preferiam os ensinamentos oriundos do Ocidente e que estavam, teoricamente, sob a égide e a inspiração do Observatório de Luxor. Esses eram liderados por Anna Kingsford.  Embora Anna Kingsford não tivesse contato direto autêntico com a Loja do Egito (na verdade, tinha contatos imaginários), ela se colocava de modo geral e sinceramente na área de influência da tradição Ocidental. Ela também tinha muito em comum com o chamado cristianismo esotérico, cujas raízes são  neoplatônicas. 

O estudante encontra na Carta 120 um elogio à unidade na diversidade e uma exposição de grande valor sobre o que se pode chamar de democracia espiritual. Lendo a Carta, também conhecemos melhor a profunda harmonia que há entre Adeptos orientais e ocidentais.

Contato Externo Durou Pouco e Já Não Ocorre

O contato ostensivo entre os Mestres e o movimento esotérico não durou muito. Ainda na década de 1880, quando os contatos eram frequentes, um Mahatma oriental declarou o seguinte a Helena Blavatsky, e ela anotou as palavras em um memorando hoje incluído em Cartas dos Mestres de Sabedoria:

“... A Sociedade libertou-se do nosso controle e influência e a deixamos ir - não fazemos escravos à força.  Ele [Olcott] disse que a salvou?  Ele salvou seu corpo, mas permitiu, por puro medo, que sua alma escapasse, e ela é agora um cadáver sem alma, uma máquina que ainda funciona bastante bem, mas que se despedaçará quando ele se for.” [22]

De fato, desde as mortes de Helena Blavatsky (em 1891) e de Henry Olcott (em 1907)  a Sociedade Teosófica sofreu diversas cisões enquanto o foco da proposta original de trabalho era deixado de lado para que os novos líderes pudessem adotar mais facilmente visões falsificadas, ritualísticas e autoritárias do caminho espiritual.

No século 21, o movimento teosófico tem uma grande diversidade de associações e ainda vive a luta entre verdade e ilusão. A Loja Independente de Teosofistas está organizada em torno da clara meta de trabalhar de acordo com a proposta original do movimento. Fundada em setembro de 2016, a LIT mantém certa distância de estruturas burocráticas, e atribui especial importância ao estudo das Cartas dos Mahatmas.

A reunião de todos os estudantes de sabedoria divina em uma só instituição já não seria necessariamente desejável. A esta altura a diversidade institucional é salutar e, se os exemplos históricos têm valor, será útil lembrar que, nos primeiros tempos, tampouco o cristianismo tinha grandes instituições centralizadoras: “A cristandade primitiva não era um movimento unificado”, escreve James Robinson, editor-geral da Biblioteca de Nag Hammadi. [23]

Desde o final do século 19, o contato com os Mestres de Sabedoria continua a existir, e constitui o fator mais decisivo para o presente e o futuro do movimento teosófico. Mas ele já não é verbal, nem visual. Ocorre num plano essencial, acima das aparências, conforme esclarece a bem conhecida Carta de 1900. [24]

E, de fato, já na década de 1880 um Mestre alertava em carta a uma discípula:

“Raramente mostramos qualquer sinal externo pelo qual somos reconhecidos ou sentidos”.[25]

Uma Escola de Almas Que Trabalha Ao Longo de Milênios 

O estudo do material disponível sobre a Loja Ocidental da Fraternidade permite perceber que a cooperação prática entre os três principais grupos de Adeptos está na base do fenômeno atual de valorização da filosofia clássica do Ocidente.

A silenciosa cooperação intercontinental entre escolas internas também está ligada ao atual resgate da tradição andina e das culturas pré-colombianas, na América Central e na América do Norte.[26]

Está disponível hoje online e em livros de papel uma grande quantidade de obras inspiradoras da cultura clássica ocidental. A impressão de que elas são “difíceis e complicadas” é ilusória: cabe deixar de lado a preguiça mental e estudar.  A ética da sabedoria antiga ensina a enfrentar os problemas e desafios da existência pessoal. Estudando as obras da filosofia clássica de Grécia e Roma, podemos perceber que está, de fato, à nossa disposição uma escola espiritual do Ocidente.

Esta linha de ensinamentos vive e trabalha no plano interno, unindo mentes e corações desde, pelo menos, o surgimento de  Pitágoras há 2500 anos. Centenas de pensadores construíram ao longo de milênios um campo de luz búdica que atravessa o tempo e as fronteiras culturais.[27]

Entre eles está Epicuro, o fundador do Jardim. Embora injustiçado por mentes superficiais, como acontece com quase todo pioneiro, Epicuro é considerado por HPB como um autêntico filósofo da sabedoria oculta. Vale a pena concluir o presente estudo meditando sobre um pensamento dele. Ao abordar a relação direta que existe entre a sabedoria e a felicidade, Epicuro ensinou:

“Não é possível ser feliz sem ser sábio, correto e justo, [nem ser sábio, correto e justo] sem ser feliz. Aquele que está privado de uma dessas coisas, como, por exemplo, da sabedoria, não pode viver feliz, mesmo se for correto e justo.” [28]

Deve ser um prazer e uma satisfação, portanto, para o buscador da verdade, viver uma vida correta e digna da sabedoria imortal.   

NOTAS:

[1] “A Doutrina Secreta”, H. P. B., volume I, final da Introdução. Veja a edição original online, disponível em nossos websites.    

[2] “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”, Editora Teosófica, Brasília, 2001, Carta 93B, ver pp. 120-121 do volume II.

[3] Mago: no original, mage, termo do inglês arcaico. Arhat: termo budista para “Iniciado”. Rishi: termo hindu antigo que significa Iniciado ou Imortal.

[4] Editora Teosófica, Brasília, 1996, 295 pp. As cartas desse volume foram transcritas e compiladas por C. Jinarajadasa.

[5] Carta 48, p. 220, no volume I de “Cartas dos Mahatmas”, obra citada.

[6] Na verdade, o “rei e juiz” do pós-morte é o eu superior ou alma imortal do próprio indivíduo. Este Juiz “julga” com base na Lei, isto é, a Lei do Carma. Cada indivíduo recebe no pós-morte a colheita do que plantou em vida. A ressurreição significa a reencarnação, que ocorre após o processo pós-morte.

[7] “A Conturbada História das Bibliotecas”, Matthew Battles, Editora Planeta, SP, 2003, 239 pp., ver p. 29. 

[8] “A Conturbada História das Bibliotecas”, obra citada, p. 36.

[9] “A Chave Para a Teosofia”, H.P. Blavatsky, Capítulo primeiro. Veja o texto “A Chave da Teosofia-1”, de Helena P. Blavatsky, disponível nos websites associados.  

[10] “Cartas dos Mahatmas”, obra citada, volume II, p. 395.

[11] Ain-Soph: na tradição da Cabala, o princípio Absoluto e imanifestado. 

[12] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada. Veja a p. 189 (Carta 18) e a p. 190 (Carta 19).

[13] Veja os “Collected Writings” de Helena Blavatsky, TPH, volume XII, pp. 502-503 - especialmente as primeiras linhas da p. 503.

[14] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada, pp. 193-194.

[15] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada, Carta 27, segunda série, p. 207.

[16] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada. Veja a carta 31 (p. 211), a carta 36 (p. 215), e a carta 45 (pp. 221-222).

[17] “Cartas dos Mahatmas”, obra citada, Carta 68, volume I, p. 317.

[18] “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”, obra citada, volume I, p. 47, carta 3A, de outubro de 1880. 

[19] O Kama-loka normalmente dura entre alguns meses e alguns anos. Essa é, portanto, uma notável exceção à regra. Certamente o kama-loka de um filósofo como More contém elementos do Devachan - a fase abençoada e duradoura do pós-morte - combinados com um apego pessoal à sua biblioteca. 

[20] “Old Diary Leaves”, H. S. Olcott, volume um, TPH, Índia, 1974, ver pp. 237-243. Sobre Henry More e sua cooperação desde o kama-loka com HPB, há também dois artigos na revista “The Theosophist”, editada na Índia. Na edição de setembro de 1972, um artigo de Alex Horne. Na edição de outubro de 1973, um artigo assinado apenas com as iniciais “D.J.B.”. 

[21] Obra citada, volume II, pp. 257-258.

[22] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada, Carta 47, primeira série, p. 108. 

[23] “The Nag Hammadi Library”, Revised Edition, org. James M. Robinson, HarperSanFrancisco, EUA, p. 06.

[24] A respeito do contato com Mahatmas, veja os textos “O Processo da Osmose Oculta” e “Sobre Contatos com Mestres”, de Carlos Cardoso Aveline. Estão publicados em nossos websites.

[25] “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada, Carta II para Laura C. Holloway, p. 146.

[26] Veja em nossos websites os artigos “A Teosofia dos Andes” e “Um Parentesco entre a Índia e os Andes”. 

[27] Leia o texto “Uma Escola Esotérica de Três Mil Anos”. Está disponível em nossos websites.

[28] “Epicuro, as Luzes da Ética”, de João Quartim de Moraes, Ed. Moderna, SP, p. 94.

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O Observatório de Luxor” foi publicado nos websites associados em abril de 2013.
 
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Veja o artigo “O Conde de Saint-Germain”, de Helena P. Blavatsky. O texto inclui em sua nota introdutória um alerta sobre contatos imaginários de falsos clarividentes com supostos mestres de sabedoria de Luxor. Os candidatos a clarividentes do astral inferior imaginaram inclusive estar recebendo “Cartas” de Luxor, cujo conteúdo, aliás, tem valor nulo. Para o estudante sensato, vale sempre a pena evitar as fantasias infantis, mantendo a lucidez e preservando o bom senso. (CCA)
 
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