A Arte Secreta de Viver um
Ideal, e de Expressá-lo no Dia-a-Dia
Carlos Cardoso Aveline
O uso correto do
tempo abre espaço para vivenciar a sabedoria
O
estudante de filosofia deve restringir pouco a pouco sua agenda pessoal, para
que possa obter de fato a paz interior e a sabedoria.
A quantidade maior ou menor de coisas por fazer ao longo de um dia é um
fator decisivo para o estado mental e emocional de alguém. A civilização
materialista é marcada pela ansiedade porque as pessoas querem fazer mais
coisas do que podem, a cada dia.
Diz a tradição que “um iogue pode estar no mundo sem pertencer a ele”. O
segredo que torna isso possível está no fato de que um iogue libertou-se do excesso
de estresse porque não prioriza metas pessoais. Ele obedece à Lei da
Conservação da Energia. Ele atua no plano das Causas. Ele evita o exagero e age
com moderação.
Os aprendizes da filosofia esotérica mantêm e ampliam o contato com sua
própria consciência interna através da renúncia à pressa e à cobiça, na sua
relação com o mundo.
Para quem trilha o caminho teosófico, a tendência natural é que ocorra um
esvaziamento e uma simplificação da vida pessoal. Surge então o verdadeiro
autoconhecimento, que é o conhecimento da alma imortal. Nesse processo, o discernimento
é ferramenta indispensável.
A Teoria e a Prática
O exame atento do processo de aprendizado mostra que, na realidade, não há um
distanciamento entre Teoria e Prática. No entanto, pode haver uma grande
distância entre Teoria e Discurso.
A verdadeira Teoria é aquilo que serve de orientação para a prática. Uma
“teoria” que não se aplica à prática não é de fato uma teoria: é apenas um discurso.
Por isso há aquele ditado popular brasileiro:
“Na prática, a teoria é outra”.
Em certas situações, pode haver um discurso que se apresenta como uma
teoria. Ao observar os fatos, porém, podemos ver que, na prática, a teoria que
serve de orientação à vida real não é aquele discurso elegante mantido
perante os outros - ou mesmo perante si mesmo, quando há autoilusão. Existe
apenas uma teoria estreita, pobre, egoísta, ilusória, que não resiste a um
exame racional; uma teoria subconsciente, que reproduz e eterniza a ignorância.
A verdadeira teoria de alguém se mostra mais através das suas ações, do que
pelo seu discurso. Se um indivíduo diz a
si mesmo que busca servir à causa da humanidade, ele deve examinar suas ações a
cada dia, para verificar sua própria eficácia e o seu grau de coerência.
Não basta evitar a pressa. Lentidão não é garantia de espiritualidade. Nem
toda tartaruga alcançou a iluminação. Mas, como ensina Sêneca, é sempre
possível “desocupar-se para viver a sabedoria”. Os iogues que estão no mundo sem ser do mundo
levam vidas calmas do ponto de vista de metas pessoais. E isso não é
exclusividade dos grandes iogues: qualquer cidadão dotado de bom senso pode simplificar
sua agenda pessoal e abrir espaço nela para atividades relativas à alma
imortal, que são marcadas pela presença do altruísmo.
Muitos estão a tal ponto acostumados à agitação que ficam limitados aos
aspectos superficiais da vida. Em uma civilização como a atual, ninguém está inteiramente
livre da pressa. O ser humano é um ser
imperfeito. Ele está ainda “em construção”, como destacou Paulo Freire. O bom senso manda estar atento, e não fingir
perfeição, mas buscar o aperfeiçoamento. Há muitas pequenas maneiras de fazer
menos tarefas com mais eficiência, e de desenvolver as suas ações mais devagar,
de modo mais pensado e completo, de modo que elas produzam um melhor resultado.
A verdadeira filosofia não é um discurso.
Ela é um amor impessoal e incondicional à sabedoria, filo-sophia. Este amor se traduz em ações. A vida é como um
Oceano, e por isso tem marés. Para simplificar a agenda, basta não renovar a
agitação. Nem sempre é fácil aceitar a paz, quando surge uma maré mais tranquila
no dia-a-dia. Mas é possível, havendo vontade. Não é necessário fazer rupturas
repentinas: basta ser seletivo na aceitação de novos compromissos. Tranquilidade
é sinônimo de saúde e bem-estar: a “tranquilidade da alma”, sobre a qual
escreveu Lúcio Sêneca, é a essência da verdadeira filosofia.
A civilização da ansiedade parece estar providenciando o seu próprio final.
O estudante de filosofia deve ficar de fora do ritmo insano da ansiedade.
Deve trabalhar como um centro de consciência que antecipa a próxima civilização,
a Civilização da Alma e da Paz, que já começou a surgir.
Os Vários Níveis da
Intenção
A
verdadeira teoria não é o discurso, pois, mas o conjunto dos marcos
referenciais que efetivamente orientam a ação prática. A palavra “teoria” vem de “Theos”, e significa
o conhecimento relativo aos deuses e aos assuntos que eles iluminam.
Para o
estudante de filosofia esotérica, até que a teoria divina ilumine o subconsciente, as contradições entre o
discurso ou pensamento e a prática efetiva podem ser perigosamente vastas.
Nisso consiste o inevitável caminho probatório, o processo de testes da
“teoria”, na “prática”.
Há em
geral dois tipos de perigos. De um lado, o aprendiz pode cair no pântano da
hipocrisia, desvinculando o discurso da prática e a palavra da ação. Quando isso ocorre ele continua na caminhada espiritual
apenas nominalmente, e procura manter as aparências. Neste caso ele faz,
consciente ou inconscientemente, o papel de lobo vestido de ovelha. Assim são
os “sepulcros caiados” de que fala o Jesus do Novo Testamento.
De outro
lado, o medo e a falta de autoconfiança podem levar o caminhante a abandonar a
jornada por pensar que não está pronto para ela, ou por considerar que ela é
demasiado difícil, ou irreal.
O
caminho do meio parece estreito e íngreme, mas é “ainda assim um caminho”, como
escreveu H. P. Blavatsky. Para trilhá-lo, basta perseverar na aprendizagem, avançar
passo a passo, aceitar as derrotas, tentar sempre o melhor e ouvir a voz da
consciência individual. O estudante deve avançar observando os próprios tropeços
- assim como os erros dos outros -, e aprendendo com eles.
É
necessário sobretudo examinar a substância da vontade de trilhar o caminho
espiritual. Toda ação tem pelo menos três níveis de intenção.
*O
primeiro nível é o da intenção que se mostra para os outros, a intenção
declarada;
*O
segundo nível é o da intenção que o indivíduo define e declara
conscientemente para si mesmo, sem falar disso aos outros;
*O
terceiro nível, ou conjunto de níveis, são as intenções, tendências e
inclinações que não residem no setor voluntário da consciência do
indivíduo. Aqui está a intenção do eu
superior, que nem sempre a consciência voluntária percebe. Aqui está o conjunto
de intenções subconscientes, que tampouco obedecem necessariamente à
consciência voluntária. Dessas intenções e motivações involuntárias e
não-verbais o indivíduo tem uma noção mais ou menos precária,
especialmente nos primeiros estágios do Caminho.
É
importante examinar com realismo por que razão queremos fazer o bem aos outros
e à humanidade. Haverá, misturada a este
motivo nobre, alguma forma de vaidade sutil? Qual é o peso
relativo da vaidade? E por que motivos, verdadeiramente, queremos estudar
filosofia e obter sabedoria?
O exame
imparcial e cotidiano dessas motivações mostrará que é necessária uma
transmutação completa, gradual, consciente. A possibilidade dessa
transmutação depende de estarmos sinceramente interessados no Mistério que
é a unidade interior de todas as coisas e todos os seres do universo.
O ser
humano é um microcosmo. Ao compreender sua própria alma imortal, ele compreende
a essência do universo, e a recíproca é verdadeira. Quando percebe a natureza
do universo, ele reconhece algo essencial da sua própria alma.
O Templo Vivo na Consciência de
Cada Um
Não
basta buscar um ideal: é preciso fazer isso com realismo. O tema da diferença
entre teoria e discurso é de uma importância decisiva para a eficiência das
iniciativas humanitárias. É importante questionar os dirigentes políticos que
dizem uma coisa e fazem outra. Mas é ainda
mais importante observar em nós mesmos qual é a diferença
entre as intenções declaradas, as intenções não-declaradas e as ações concretas.
É útil
observar se a diferença entre intenções e gestos está diminuindo ou aumentando.
O indivíduo que busca um ideal elevado sempre estará aquém do ideal. Haverá,
portanto, uma considerável distância entre intenção e gesto. É preciso admitir que
isso, em si, é saudável.
Se a
distância, mesmo grande, estiver diminuindo, há progresso. Onde há esforço, há uma
melhora, mesmo quando ela é momentaneamente invisível. Entre o plantio e a
colheita, é preciso saber esperar, e esperar agindo.
Por
outro lado, se a distância entre intenção e gesto - mesmo que aparentemente
pequena - estiver aumentando, há uma derrota. Na ausência de uma luta para
reduzir a diferença entre ideal e prática, o indivíduo corre o risco de cair na
hipocrisia.
O
autoexame não pode ocorrer diante dos outros. Ele precisa ser feito silenciosamente
no tribunal da consciência interna. Sofrer com os seus próprios erros é
saudável, assim como alegrar-se com o progresso obtido. A consciência humana
deve ser reconhecida como um conjunto de templos “superpostos”, cada um mais
sutil e mais elevado que o outro, todos importantes e interagindo
constantemente.
O tema
dos sete princípios da consciência humana é abordado em detalhe em alguns
capítulos do livro “Três Caminhos Para a Paz Interior” [1]. Visto impessoalmente, o corpo físico é um templo de barro a
serviço da vida. Ele pode ser muito útil enquanto não soar a hora da demolição.
A vitalidade (prana), o plano
emocional e o plano mental são outros níveis em que se pode enxergar a vida
como algo sagrado. Quando os níveis pessoais da existência humana são tratados
da maneira correta, o indivíduo tem acesso ao templo verdadeiramente imortal, o
“eu superior”, a Mônada, Atma-Buddhi. Mas a recíproca é verdadeira. Quando o
estudante chega ao templo interior e verdadeiramente imortal, ele passa a
tratar de modo correto os níveis externos e passageiros da vida.
Assim no
céu como na terra, diz o axioma hermético: o que ligarmos no céu, estará ligado
no solo, ainda que de maneira precária. Os mais belos templos feitos de paredes
e telhados são pálidos símbolos externos do verdadeiro santuário existente no
coração humano. As ações externas de um indivíduo sujeito ao carma do mundo
material são, naturalmente, imperfeitas. A humilde compreensão deste fato é
importante. O verdadeiro templo é interno e oculto. O poeta brasileiro Augusto
dos Anjos escreveu:
“Meu coração tem catedrais
imensas,
Templos de priscas e longínquas
eras...” [2]
Os versos
sugerem a ideia da reencarnação. O que reencarna é o verdadeiro templo: ele vem
de “priscas eras” e viverá em seu próprio plano até unir-se, num futuro
longínquo, ao espírito do universo.
Através
de quatro fatores - autoconhecimento, autocontrole, contemplação das leis
universais e ação prática altruísta - cada estudante pode resgatar o caráter
sagrado da sua consciência pessoal, alinhando-a gradualmente com o santuário sutil
em que vive ao longo das idades o seu próprio espírito imortal, sua Mônada ou eu
superior.
A
semente desta libertação está invisivelmente presente em cada dia de 24 horas.
NOTAS:
[1] “Três Caminhos Para a Paz
Interior”, Carlos Cardoso Aveline, Ed. Teosófica, Brasília, 2002, 191 pp.
[2] Poema “Vandalismo”. Ver “Augusto
dos Anjos, Obras Completas”, volume único, Ed. Nova Aguilar, RJ, 884 pp., 2004,
p. 279.
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Veja também o texto “A Sabedoria É Só Teórica?” do
mesmo autor, que pode ser facilmente encontrado em nossos websites associados.
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Para conhecer a teosofia original
desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 19 capítulos e 191 páginas, a
obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.
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