Carlos Cardoso Aveline
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Reproduzimos
a seguir um capítulo do
livro
“Três Caminhos Para a Paz Interior”,
de
Carlos Cardoso Aveline, Editora Teosófica,
Brasília,
191 pp. A ortografia foi atualizada.
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Não importa se você está em sua casa, em uma
biblioteca ou numa praça pública. Imagine-se, agora mesmo, diante de uma
presença divina. O que você pensaria, se percebesse que uma grande inteligência
espiritual, de uma sabedoria infinita, está a seu lado? Qual a sua atitude se
percebesse que um ser santo e sábio, um instrutor da humanidade, observa, neste
preciso instante, suas emoções e pensamentos? Teria vergonha, sentiria orgulho,
ou seria tomado pela emoção? Ficaria calmo ou nervoso?
Sejam quais forem as suas respostas para as perguntas
acima, elas não são um mero exercício de imaginação. Cada ser humano sempre
está, de fato, na presença do mundo divino e do princípio supremo do universo.
Mesmo que tenha uma tendência crônica de esquecer desse fato.
Acostumados com a falsa ideia de que o mundo divino é
algo distante, muitos pensam que os grandes sábios e instrutores da humanidade
estão fora do seu alcance. Isso, é claro, estimula a preguiça e é
tranquilizador para os mais acomodados: assim, eles podem insistir no erro sem
serem perturbados pela ideia inquietante de que uma inteligência divina observa
o que fazem. A incômoda verdade, porém, é que todos os assuntos humanos estão
imersos em uma consciência maior, que os registra, observa e busca conduzir
para o caminho do bem. Nada fica sem registro, para nosso débito ou crédito.
Se a energia divina e o princípio supremo estão em
toda parte, porque eles não estariam também em minha própria alma, e ao meu
lado, como mestres, protetores e conselheiros? A questão espiritual gira em
torno do desafio central que é perceber conscientemente a presença da energia
sagrada em cada momento da nossa vida.
As dificuldades para a percepção da presença divina
são mais aparentes do que reais. Estão no efeito hipnótico que o mundo externo tem sobre nossa consciência, e na
nossa preocupação excessiva com nós mesmos. A filosofia dos kleshas, na tradição da Raja Ioga, explica bem o processo: primeiro, a
ignorância espiritual (avidya) causa
a impressão de que somos um “eu” separado da vida ao nosso redor. Essa sensação
tem o nome de asmita. Depois, o
egoísmo nos faz prisioneiros das emoções básicas
de atração e rejeição. Esses são os dois braços de uma vontade de viver que é
espiritualmente cega (abhinivesha).
Porém, com o surgimento de novos valores e a crise da
religiosidade dogmática, os obstáculos à libertação espiritual vêm perdendo
força. Milhões de pessoas cansam da antiga postura do avestruz, que enterra a
cabeça nas areias da crença cega, ou preocupação consigo mesmo, para fugir da
visão do céu imenso e do sol da fraternidade.
O o o o O
Cada
cidadão que ergue seu olhar adquire consciência da sua condição de cidadão
planetário e percebe melhor a presença divina no ambiente humano. A
austeridade, o altruísmo, a oração, a meditação e o exercício constante do bom
senso são técnicas que simplificam nossa vida interior, libertam a nossa
consciência de questões menores e abrem espaço para a vivência do sagrado.
Olho mentalmente as multidões agitando-se nas ruas das
cidades brasileiras e posso reconhecer nelas a presença divina. Milhares de
pessoas apressadas, vendedores gritando, cidadãos fazendo refeições rápidas nos
balcões de bares, em meio ao ruído do trânsito. O burburinho humano é o
burburinho da vida. Em qualquer situação, as pessoas buscam o bem, e ajudam
umas às outras na luta pelo que é bom. A soma dos conflitos humanos é
infinitamente menos importante que a ajuda mútua, que nos torna animais
sociais. O mero ato de viver em sociedade implica uma atitude de colaboração e
uma atuação em conjunto. A inveja, a competição e a violência são episódios
menores na vida da barulhenta fraternidade humana, que sobrevive unida pelo
amor. Em cada pessoa há uma luz interior que é eterna. Os milhões de pequenos
gestos solidários que fazem o dia-a-dia da nossa civilização expressam com
força silenciosa um sentimento sagrado de respeito incondicional pela vida.
Pensar na lei do equilíbrio universal faz com que
desapareçam as nossas feridas psicológicas. As injustiças que sofremos perdem a
importância, e o coração se enche de paz. A lembrança da presença divina
constitui há milhares de anos uma técnica espiritual definida, que podemos
aplicar criativamente à nossa própria realidade específica. Ela já era usada na
Grécia antiga, mais de 500 anos antes da era cristã, quando Pitágoras deu impulso
à tradição esotérica ocidental. O fato está bem registrado. Sextus, o
pitagórico, escreveu:
“Coloque a divindade diante de si mesmo em todas as
suas ações. Invoque-a como testemunha de tudo o que fizer.” Por outro lado,
Sextus também advertiu: “Você não estará escondido da divindade quando agir
injustamente, nem quando pensar em agir mal. Nem pense naquilo que você não
quer que a divindade saiba”.
Demócrates afirmou: “Aquele que acredita que a
Divindade vê todas as coisas não pecará, nem ostensivamente nem em segredo.” E
um terceiro sábio pitagórico, Demófilo, ensinou assim a prática da Presença:
“Se você tiver sempre o cuidado de lembrar que, em
qualquer lugar em que seu corpo ou sua mente tomam qualquer atitude, a
Divindade está presente como um fiscal da sua conduta, você reverenciará em
todas as suas palavras e ações a presença de um fiscal do qual nada pode ser
escondido, e, ao mesmo tempo, terá a Divindade como íntima amiga.” [1]
Essa técnica foi adotada mais tarde na tradição
cristã. A verdade é que a tradição pitagórica exerceu e exerce até hoje uma
influência significativa sobre o cristianismo, embora o fato seja pouco
conhecido. Os essênios e os neoplatônicos, que estão ligados à origem do
cristianismo, eram continuadores da tradição pitagórica.
Um dos exemplos pessoais mais inspiradores que conheço
sobre o uso dessa técnica pertence ao mundo cristão, e ocorreu no século 17.
Nicholas Herman nasceu pobre, desconhecido e
insignificante, no interior na França, em 1611. Aos 18 anos, ele teve uma
experiência de iluminação espiritual que transformou sua vida. Durante um dia
típico do rigoroso inverno europeu, Nicholas observava com amor uma árvore
castigada pela neve, seca, sem folhas, semimorta, quando pensou na nova vida
que a primavera traria à sua amiga, e foi tomado por uma experiência
irresistível de amor pela divindade e de conhecimento direto dela. Desde aquele
momento, conforme ele mesmo contou mais tarde, Nicholas passou a viver em todas
as situações “como se estivesse na presença de Deus”.
Não nos interessa, aqui, discutir em detalhes o
conceito de “Deus”. No Capítulo 11 de “Três Caminhos Para a Paz”, “A
Psicanálise das Religiões”, vemos que a ideia de um Deus autoritário, que toma
decisões ao sabor do momento, é uma fantasia injustificada. Além disso, nem
sempre se leva em conta o fato de que algumas das principais religiões da
humanidade, como o taoísmo e o budismo, não trabalham com o conceito de Deus.
Mas, naturalmente, a filosofia esotérica conhece e
ensina a conhecer o mundo divino e a lei do universo. O erro da religiosidade
ocidental está em acreditar em um único Deus, um ser todo-poderoso, separado do
universo e capaz de tomar quaisquer decisões sem responder por elas. É a partir
dessa concepção de Deus que surgem as
religiões dogmáticas, que justificam as guerras e a exploração do homem pelo
homem. O mestre Koothoomi afirmou o seguinte sobre essa criação
teológica:
“O fato é que as suas concepções filosóficas
ocidentais são monárquicas: as nossas, democráticas. Você só é capaz de
imaginar o universo governado por um rei, enquanto nós sabemos que ele é uma
república na qual governa a inteligência intrínseca agregada.” [2]
A filosofia esotérica nega a existência de um Deus
pessoal. Com base na experiência direta dos Mahatmas, ela afirma a existência
de um mundo divino com inteligências cósmicas diversas, dinâmicas, em eterno
movimento.
Na prática, se não em teoria, o conceito de Deus
vivenciado pelos místicos cristãos - entre eles São Francisco de Assis e São
João da Cruz - é compatível com a sabedoria esotérica. “Deus”, para o místico,
é apenas um nome para a lei universal da harmonia, a inteligência universal, o
princípio supremo e indescritível. Mesmo quando oram a Deus e o chamam de
“Senhor”, os místicos estão evocando basicamente o amor e a sabedoria sem
limites, o princípio divino presente em todas as coisas e em todos os seres,
que também é o centro de paz eterna presente em seus próprios corações. Nesse
contexto, a personificação da ideia da divindade, fazendo com que ela se
confunda com a figura de um instrutor, é um fato menor, aceitável como uma
metáfora, uma imagem simbólica, uma expressão poética que aproxima o ser humano
do divino, humanizando aquilo que é supremo. O problema fica bem mais sério
quando se constroem burocracias sacerdotais e ritualísticas cuja base é a
existência imaginária de um Deus pessoal que deve ser homenageado para que o
crente obtenha favores dele.
Os místicos de diferentes religiões admitem que a
experiência direta do que é sagrado está além das palavras. As suas
experiências de unidade interior com o mundo divino correspondem claramente aos
estados elevados de consciência mencionados em Raja Ioga e em outras tradições
orientais.
O fato é que a percepção da presença divina não mais
abandonou Nicholas. Passou a ser parte da vida dele. Mas nem sempre a
consciência de um místico sabe adaptar-se facilmente ao mundo das coisas
práticas, e muitas vezes ele tampouco consegue adequar inicialmente o mundo
externo ao amor universal que o seu coração experimenta. O jovem Nicholas teve
de servir como soldado. Mais tarde, trabalhou como criado de uma família rica
da França. Sua natureza contemplativa não passou despercebida, mas teve consequências
práticas desagradáveis. Ele era um trapalhão: distraído, quebrava sem querer
inúmeros objetos domésticos dos seus patrões.
Aos 55 anos, Nicholas entrou para a ordem dos
carmelitas em Paris como um irmão leigo, adotou o nome de Irmão Lawrence e passou a trabalhar como cozinheiro. Um dos seus
superiores religiosos, M. Beaufort, fez anotações sobre a vida de Lawrence e as
reuniu em um pequeno volume [3],
junto com algumas cartas escritas pelo místico.
Para Lawrence, os seres humanos devem criar um sentido
da presença da divindade usando a técnica de conversar mentalmente com ela o
tempo todo. Lawrence considerava vergonhoso deixar de conversar mentalmente com
o que é sagrado para pensar em ninharias pessoais: por outro lado, a presença
divina, segundo ele, não é ocasião adequada para pedir favores pessoais, mas sim
para ver-se livre das preocupações humanas de curto prazo. Aquele cozinheiro
sem formação teológica preferia viver diretamente a experiência mística, ao
invés de discursar teoricamente sobre ela.
Cada vez que Lawrence enfrentava uma dificuldade ou um
desafio e precisava praticar uma virtude, ele orava, dizendo:
“Senhor, eu não posso fazer isso, a menos que Você me
ajude”. E então ele recebia uma força maior que a necessária. A figura do
Senhor, do ponto de vista esotérico, era a personificação da sua consciência
búdica e da sua própria alma imortal.
“Sabendo pela luz da fé que Deus estava presente”,
escreveu M. de Beaufort, “ele era feliz dedicando todas as suas ações a Ele,
sem preocupar-se em colher para si os frutos da ação”. A palavra “fé”, aqui,
significa confiança na Lei e no fato de que há uma divindade presente em todas
as coisas e em cada um de nós. Uma confiança que surge da vivência da bondade.
O único objetivo de Lawrence era não contrariar a vontade divina, isto é, a Lei
universal.
A tradição esotérica diz que, ao longo da caminhada
espiritual, o buscador da verdade aprende gradualmente a unificar sua pequena
vontade individual com a vontade maior do mundo divino, entrando em sintonia
magnética com ela graças à pureza do seu coração e da sua mente. Assim ele
passa a ser uma espécie de posto avançado da consciência divina no mundo. O
irmão Lawrence desenvolveu tamanha experiência em pedir a ajuda divina a cada
momento que, quando tinha uma tarefa prática a fazer, não precisava pensar nela
antecipadamente. Na hora de fazê-la, ele encontrava “em Deus, como espelho, a
visão de tudo o que era correto fazer”. Antes de começar um trabalho externo,
ele orava:
“Oh, Ser Divino, já que você está comigo, e que para
cumprir o meu dever devo, agora, concentrar minha mente em uma tarefa concreta,
peço-lhe a graça de poder continuar em sua presença. E peço que, para isso,
você lance sobre mim a bênção da sua ajuda, receba os frutos do meu trabalho e
seja o proprietário de todas as minhas afeições.”
Depois de cada tarefa realizada, ele usava outra
técnica, tão pitagórica quanto a prática
da presença: a técnica da revisão. A vida espiritual de Lawrence era
espontaneamente pitagórica, sem deixar de ser cristã. “Quando ele terminava uma
tarefa”, escreveu M. de Beaufort, “examinava a si mesmo e se perguntava como havia cumprido o seu dever; se concluía que
havia trabalhado bem, agradecia a Deus. Se achava que havia feito algo errado,
pedia perdão. E retomava, imediatamente, seu exercício constante da
presença divina”. Lawrence morreu em 1691, aos 80 anos de idade, depois de
ensinar a muitos a experiência direta do contato com o sagrado.
Alguns podem considerar a prática da presença divina
como algo predominantemente devocional, mas, na verdade, não só ela faz parte
da filosofia clássica - por pertencer à tradição pitagórica - mas também é
adotada por diversas disciplinas orientais, inclusive Jnana Ioga, a ioga da
contemplação das verdades universais, e Raja Ioga, cuja ideia central é o
fortalecimento da autonomia, da responsabilidade e do autocontrole do aprendiz.
“O homem é o microcosmo”,
escreveu Helena P. Blavatsky. “Assim sendo, todas as Hierarquias dos Céus
existem nele. (...) Como o
interno, assim é o externo; como o grande, assim é o pequeno; como é acima, assim
é abaixo. Só existe uma Vida e uma Lei.” [4]
Em seu Diagrama de Meditação, passado a um dos seus
discípulos em 1887-1888, Helena Blavatsky recomenda um meio prático de
fortalecer a ligação e a identidade entre cada indivíduo humano e o universo
infinito:
“Primeiro, conceba a UNIDADE através da Expansão no
Espaço e da Infinitude no Tempo (seja com ou sem autoidentificação). Depois
medite lógica e persistentemente nisso, e na sua relação com os estados de
consciência.”
Uma fórmula mencionada no mesmo diagrama para praticar
a nossa autoidentificação com o espaço e o tempo ilimitados consiste em
meditar, lenta e repetidamente, nas seguintes palavras: “Eu sou todo o Espaço e
todo o Tempo”.
Blavatsky prossegue:
“Então, o estado normal da sua
consciência deve ser moldado pela constante presença, em imaginação, em todo o
Espaço e Tempo. Disso se origina um substrato de memória que não cessa durante
o sonho nem durante o estado de vigília.” [5]
Esse exercício é - em essência, se não nos aspectos formais - muito semelhante
à prática da presença divina.
Em “A Doutrina Secreta”, Helena Blavatsky escreveu:
“Só o incognoscível Karana, a causa sem causa de todas
as causas, deve ter o seu santuário e o seu altar no recinto sagrado e
inviolável do nosso coração; invisível, intangível, não mencionado, salvo pela
‘voz tranquila e silenciosa’ da nossa consciência espiritual. Os que o adoram
devem fazê-lo na quietude e na solidão sacrossanta de suas Almas; de modo que o
Espírito de cada um seja o único mediador entre ele e o Espírito Universal, não
tendo por sacerdotes senão as suas boas ações, e sendo as suas tendências
pecaminosas as únicas vítimas expiatórias oferecidas em sacrifício à Presença.”
[6]
Já que a divindade e o espaço-tempo infinito estão
presentes em toda parte, inclusive em nós, o desafio é fazer contato consciente
com eles e ouvi-los sem necessidade de palavras. Escrevendo sobre a presença
divina no coração de todo homem honesto, o imperador romano Marco Aurélio,
filósofo neoestóico, afirmou que é aconselhável “não aviltar o espírito implantado dentro do seu peito, e não perturbá-lo
com pensamentos demais, mas conservá-lo tranquilo, seguindo-o obedientemente
como a um deus, e nada dizer contrário à verdade, nem fazer nada contrário à
justiça”. [7]
A filosofia esotérica afirma que se não encontrarmos a
luz sagrada dentro de nós, será inútil procurá-la fora de nós. Ter consciência
dessa presença sutil constitui um dos aspectos mais belos de qualquer caminhada
espiritual. Sócrates ensinou, segundo Platão: “Os iniciados têm a certeza de
que andam em companhia dos deuses”. [8]
O apóstolo Paulo, em Coríntios 1, 3:16-17, afirma: “Você não sabe que é um
templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em você? (...) Pois o templo de
Deus é santo e você é esse templo”.
Podemos viver conscientemente imersos na presença
divina? Todo ser humano tem momentos de inspiração sagrada. Ele experimenta ao
longo da sua vida diversos momentos de elevação mística e força espiritual.
Durante esses instantes inspiradores, o cidadão esquece de si mesmo ou de seus
interesses pessoais de curto prazo, mergulha em um estado de espírito diferente
e mágico e percebe um significado maior em sua vida. Mas, ao invés de receber
de quando em quando a rápida visita de um estado de consciência mais elevado,
alguns preferem viver permanentemente na presença dessa intuição e sabedoria,
abandonando os padrões de comportamento que produzem ansiedade e sofrimento. Um
livro clássico da mística cristã, “Imitação de Cristo”, ensina:
“Se ao menos uma vez entrares perfeitamente no Coração
de Jesus e gozares um pouco do seu ardente amor, não te preocuparás com o teu
proveito ou prejuízo. Ao contrário, te alegrarás com os sofrimentos, porque o
amor de Jesus faz com que o homem despreze a si mesmo. O amigo de Jesus e da
verdade, o homem realmente espiritual, livre de afeições desordenadas, pode
facilmente se recolher em Deus e, elevando-se em espírito acima de si mesmo,
experimentar delicioso descanso.”
Segundo Imitação de Cristo, felizes são os ouvidos que
não atendem às vozes que fazem barulho lá fora, “mas à verdade que ensina lá
dentro”. A verdade fala dentro de nós “sem o estrépito das palavras”. [9]
É quase impossível afastar-se totalmente da divindade,
já que ela faz parte da nossa essência. Jorge Luis Borges escreveu que fugimos
da consciência cósmica porque, se a olhássemos muito de perto, ela nos
aniquilaria. De fato, quando olhamos profundamente a verdade universal, nossa
pequena visão superficial da vida desaparece. O sentimento que experimentamos é
então ao mesmo tempo de felicidade pela percepção da vida infinita e de dor
pela perda do mundo psicológico feito de apegos.
A inspiração divina está ao nosso alcance. Todos temos
acesso à luz espiritual. Nascemos dela e somos guiados por ela, porém, nem
sempre é fácil reconhecer sua presença. “A luz da natureza básica não tem
criação nem destruição, não conhece aumento nem diminuição”, ensina o livro
“Meditação Taoista”. “Mesmo que ela
seja firmemente abafada por muito tempo, um clarão da luz espiritual pode
extinguir mil maldades e despertar dez mil virtudes. Enquanto você mantiver a
luz espiritual constantemente presente, em que será diferente dos sábios?
Alguns perguntam como manter a luz espiritual sempre presente. Parece essencial
ser respeitoso. Cuidado e precaução certamente são respeito; dedicação também é
respeito. Quando você é respeitoso, não alimenta fantasias, não cai na
distração e não vive com desperdício. Isso parece essencial para que haja
presença da mente. São diretrizes para o autocultivo.” [10]
A consciência da presença divina exige uma certa
preparação. A principal condição é o abandono - gradual, mas irreversível - das
ações e preocupações egocêntricas. O caminho espiritual mostra a inutilidade
das metas egoístas e, ao mesmo tempo, ensina a confiar na vida. O buscador da
verdade renuncia à autoestima superficial enquanto entra em contato direto com
a essência divina em seu coração. Ele perde o orgulho pessoal, mas sente um
sereno respeito pela vida divina dentro de si mesmo. O abandono final de todo
sentimento egocêntrico coincide com a suprema iluminação espiritual. Mas a
ausência de preocupação consigo mesmo não significa que tal pessoa será
descuidada ao atravessar uma rua, ou que não protegerá sua saúde. O sábio
navega plenamente no cosmo mantendo o necessário bom senso no dia-a-dia.
O cidadão atento deve saber que, se deseja abrir
espaço em sua vida para a prática da presença divina, tem de eliminar, uma a
uma, as complicações pessoais. “Nada é melhor para os que cultivam o Caminho do
que simplificar decididamente as coisas”, diz um antigo tratado taoísta.
“Perceba as coisas que são ou não essenciais, avalie as que são importantes ou
triviais, considere se as elimina ou as aceita. Deve ser abandonado tudo o que
não for essencial e importante. (...) Os que chegam à verdade não lutam por
nada que não diga respeito à vida. O que não diz respeito à vida é qualquer
excesso. Alimento simples e velhas roupas são suficientes para cuidar da vida
essencial (...) Desse modo, tudo o que não seja necessário à vida deve ser
eliminado (...) As posses têm uma energia prejudicial, que fere quem as
acumula. Mesmo se tiver poucas coisas você se preocupará com elas; tanto mais
se possuir muitas”. [11]
Para exercitar-nos na prática da presença divina, há
pelo menos três possibilidades iniciais.
Uma
delas é a escolha de um dos grandes instrutores da humanidade, como Buda, Jesus, Pitágoras ou São
Francisco de Assis. A condição básica é que o instrutor escolhido deve ser uma
fonte profunda de inspiração para nós. Nesse caso, é preciso ter cuidado para
que a personificação da prática não torne a experiência estreita, nem a faça
cair em uma espécie de “devoção pessoal imaginária”. Com essa cautela, a
prática é válida.
Uma
segunda possibilidade é visualizar firmemente a nossa própria alma imortal, que nunca se afasta de nós, mas nos guia e
protege, e que é feita de pura espiritualidade. Essa prática nos eleva enquanto
mantém os nossos pés firmemente colocados no chão, porque o nosso próprio eu
superior, que é impessoal, constitui, de fato, a grande ponte entre nossa
personalidade consciente e pensante e o mundo divino.
Uma terceira possibilidade é visualizar o tempo eterno e
o espaço infinito, percebendo que somos parte desse espaço-tempo
ilimitado. Esse exercício pode ser feito tal como foi formulado por Helena
Blavatsky no seu Diagrama de Meditação. Seus efeitos são extremamente benéficos
e incluem a calma interior, o desapego e a plena atenção.
Feita a escolha e tomada a decisão sobre como será a
nossa visualização da presença divina, o segundo passo é lembrar dessa
presença, em todos os momentos possíveis da vida diária, e agir de acordo com
esse fato. Sempre que nossa mente tiver um instante de folga, ao invés de
distrair-nos com qualquer objeto, devemos pensar nessa presença divina em nosso
coração e mente, ou junto a nós.
Essa visualização é um exercício que abre horizontes.
O que é realmente divino está além de toda forma e todo pensamento, mas a prática da presença suprema é um modo de
despertar a nossa consciência para a percepção contínua do infinito e do
sagrado. Viver como se estivéssemos na silenciosa presença de um grande
ser, ou lembrar que estamos imersos na Lei Universal, é um hábito que tem
efeitos potencialmente revolucionários. Através dele, temos ao nosso alcance
uma inspiração vinda das inteligências superiores.
Devotos das mais diferentes religiões praticam a
lembrança da presença divina. Na verdade, toda oração pressupõe um diálogo
entre o mundo mortal e o mundo imortal. Quando você ora, falando a um ser
divino, sua alma eterna está envolvida no processo, e você pode sentir uma
certa presença maior. Existe a possibilidade de que esse processo de diálogo
não-verbal seja ininterrupto. Se você fizer da sua vida uma oração, lembrará em
todos os momentos que uma divindade observa seus pensamentos, sentimentos e
ações. E poderá assumir compromissos com sua fonte de inspiração. O poeta
indiano Rabindranath Tagore escreveu, em um texto dedicado ao princípio supremo
e universal:
“Vida da minha vida, tentarei conservar o meu corpo
sempre puro, sabendo que a tua presença está em todo ele. Procurarei conservar
longe do meu pensamento todas as falsidades, sabendo que tu és aquela verdade
que acende a luz da razão no meu espírito. Tratarei de afastar sempre do meu
coração qualquer maldade e conservar vivo o meu amor por ti, sabendo que tens a
tua morada no santuário íntimo do meu coração. E me esforçarei por revelar-te
em minhas ações, sabendo que é o teu poder que me dá força para agir.” [12]
Como todo pensador independente, Tagore desafiava os
dogmas ritualísticos. Ele levantou um ponto importante: se podemos ter acesso
direto à presença divina, os templos das burocracias religiosas perdem
importância. Tagore escreveu:
“Deixa esse rosário de salmos, cânticos e palavras! A
quem veneras nesse canto escuro e solitário de um templo de portas fechadas?
Abre os olhos e verifica que não está diante de ti o teu Deus! Ele está lá onde
o camponês lavra a terra e o trabalhador braçal quebra pedras para abrir novas
estradas. Está com eles sob o sol e a chuva e as suas vestes estão cobertas de
pó. Despe o teu manto sagrado e, como eles, pisa também o chão empoeirado!” [13]
Do ponto de vista da filosofia
esotérica, não é na rotina dos procedimentos cerimoniais que encontramos a mais
autêntica energia divina. Escrevendo no século 15, o sábio e poeta indiano
Kabir colocou palavras atribuídas a Deus em um dos seus poemas. No texto, a
presença divina diz ao buscador:
“Ah, meu devoto, onde me procuras? Olha bem! Estou a
teu lado. Não fico em um templo ou mesquita. Não estou em ritos e cerimônias,
nem na Ioga ou na renúncia. Se tu és um verdadeiro buscador, me verás agora
mesmo; me encontrarás no próximo instante”. [14]
Madre Teresa de Calcutá foi uma
grande praticante da técnica da presença. Ela ensinou assim essa disciplina
mística:
“Nós precisamos encontrar Deus, e Deus não pode ser
encontrado no barulho e na agitação. Não podemos colocar-nos diretamente na
presença de Deus sem que nos imponhamos silêncio interno e externo. É por isso
que devemos nos acostumar com o silêncio da alma, dos olhos e da língua. Não há
vida de oração sem silêncio. (...) Então você poderá ouvir Deus em todo lugar:
no fechar de uma porta, na pessoa que precisa de você, nos pássaros que cantam,
nas flores, nos animais - naquele silêncio que é maravilha e louvor. Os
contemplativos e ascetas de todas as épocas e religiões encontraram Deus no
silêncio e na solidão do deserto, das florestas e montanhas”. [15]
A presença divina pode ser experimentada observando
uma planta cujas folhas são tocadas pelo vento. Pode ser reconhecida no olhar
de uma criança pobre, em um gesto anônimo de ajuda desinteressada, ou na
alegria de um cachorro que abana o rabo expressando amizade. Ela também está no
brilho das estrelas e na marcha das galáxias pelo céu. É ela que nos torna
capazes de amar e desperta em nós uma necessidade natural de respeitar a
justiça e a verdade. A presença divina é o centro de paz em nossos corações.
Ela constitui a fonte de inspiração para que a humanidade construa, no futuro
próximo, uma civilização solidária. É ela, também, que nos faz buscar a
felicidade.
NOTAS:
[1] “The Golden Verses
of Pythagoras and Other Pythagorean Fragments”, textos selecionados por
Florence M. Firth, Kessinger Publishing Co., Montana, EUA. Os pensamentos de Sextus estão
respectivamente na p. 48 (item 58) e na p. 45 (itens 17 e 22). A citação de
Demócrates está na p. 21, item 71. O trecho de Demófilo está na p. 25 e
corresponde ao item número 13.
[2] “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”, transcritas
por A. T. Barker, edição em dois volumes, Ed. Teosófica, 2001. Ver a p. 389
do volume II.
[3] “The Practice of
the Presence of God”, Conversations and Letters of Brother Lawrence, Oneworld
Publications, Grã-Bretanha/EUA, 1993, 79 pp.
[4] “Fundamentos da Filosofia Esotérica”, de H.P.
Blavatsky, Editora Teosófica, ver p. 84.
[5] “Diagram of
Meditation”, em “The Inner Group Teachings of H.P. Blavatsky”, obra compilada
por H. Spierenburg, Point Loma Publications, 1985, San Diego, Califórnia, EUA. Ver p. 130.
[6] “A Doutrina Secreta”, H. P. Blavatsky, Ed.
Pensamento, Volume 1, p. 311.
[7] “Meditações”, Marco Aurélio, Ediouro, ver p. 42.
[8] Platão, em “Fedro”, conforme citação de H. Blavatsky
em “A Doutrina Secreta”, Ed. Pensamento, vol. 5, p. 254.
[9] “Imitação de Cristo”, Tomás de Kempis, Ed. Vozes,
1993, pp. 69-70. Veja também as pp. 97 a 99, sobre a voz divina.
[10] “Meditação Taoísta”, obra compilada por Thomas
Cleary, Editora Teosófica, 2001, pp. 62-63.
[11] “Meditação Taoísta”, obra citada. Veja a p. 87.
[12] “Oferenda Lírica (Gitanjali)”, livro de Rabindranath
Tagore, Coordenada Editora de Brasília, 1969. Veja o texto número 4, pp. 22-23.
[13] “Oferenda Lírica”, obra citada, texto número 11, p.
25.
[14] “One Hundred Poems
of Kabir”, tradução para o inglês de Rabindranath Tagore, Macmillan And Co.,
London/Calcutta, 1954. Ver p.
01.
[15] “Tudo Começa Com a Prece”, Madre Teresa de Calcutá,
Editora Teosófica, Brasília, ver pp. 19 a 23.
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Sobre a missão do movimento teosófico, que envolve o
despertar da humanidade para a lei da fraternidade universal, veja o livro “The Fire and Light of Theosophical
Literature”, de Carlos Cardoso Aveline.
A obra tem 255 páginas e foi publicada em outubro de 2013 por “The Aquarian Theosophist”. O volume pode ser comprado através de
Amazon Books.
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