No Verdadeiro Afeto, A União
É Total Mas Preserva a Autonomia
Erich Fromm
O amor é a prática de um poder que só pode ser
exercido com liberdade
Erich Fromm

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Nota Editorial de 2014
O amor é uma atividade primordial na
vida de todos os seres. Não há quem não busque
a felicidade na vida afetiva. Mas quantos buscam
aprender a amar? E quantos caem desde a infância
em padrões de conflito psicológico que envolvem
uma estranha satisfação e um prazer irracional
no sofrimento próprio,
ou no sofrimento alheio?
O ser humano está rodeado o tempo todo
de oportunidades para o bem. Sempre há
tempo para a cura natural da alma, que resulta
do despertar da compreensão e da sabedoria.
O extraordinário texto a seguir é reproduzido
da obra “A Arte de Amar”, de Erich Fromm, que
foi publicada, com tradução de Milton Amado, pela
Ed. Itatiaia, de Belo Horizonte, em 1990. Ver pp.
29-33.
(Carlos Cardoso Aveline)
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O desejo de fusão
interpessoal é o mais poderoso anseio do homem. É a paixão mais fundamental, é
a força que conserva juntos a raça humana, clã, a família, a sociedade. O
fracasso em realizá-la significa loucura ou destruição - autodestruição ou
destruição de outros.
Sem
amor, a humanidade não poderia existir um só dia. Contudo, se chamarmos “amor”
a realização da união interpessoal, poderemos encontrar-nos em séria
dificuldade. A fusão pode ser obtida de diversos modos - e as diferenças não
são menos significativas do que aquilo que é comum às várias formas de amor.
Devem ser todas chamadas de amor? Ou devemos reservar a palavra “amor” somente
para um tipo específico de união, aquele que tem sido a virtude ideal para
todas as grandes religiões humanísticas e sistemas filosóficos dos últimos
quatro mil anos de história ocidental e oriental.
Como
se dá com todas as dificuldades semânticas, a resposta só pode ser arbitrária.
O que importa é sabermos de que espécie de união estamos falando, quando
falamos de amor. Referimo-nos ao amor como à resposta amadurecida ao problema
da existência, ou falamos das formas imaturas do amor que podem ser chamadas união simbiótica? Nas páginas seguintes,
darei o nome de amor apenas à primeira. Começarei a discussão sobre o “amor”
com a última.
A união simbiótica tem seu modelo
biológico na relação entre a mãe grávida e o feto. São dois e, contudo, um.
Vivem “juntos” (sym-bio-sis),
necessitam um do outro. O feto é parte da mãe, recebe dela tudo de que necessita;
a mãe é seu mundo, em suma: alimenta-o, protege-o, mas também a própria vida
dela é acrescida por ele. Na união simbiótica psíquica, os dois corpos são independentes, mas a mesma espécie de
ligação existe psicologicamente.
A
forma passiva da união simbiótica é a
da submissão, ou, se usarmos um termo clínico, a do masoquismo. A pessoa masoquista foge ao insuportável sentimento de
isolamento e separação tornando-se parte e porção de outra pessoa, que a
dirige, guia, protege; que, em suma, é sua vida e seu oxigênio. O poder daquele
a quem alguém se submete é expandido, trate-se de uma pessoa ou de um deus; é
tudo, e o submisso nada, exceto naquilo em que é parte dele. Como parte, é
parcela da grandeza, da força, da certeza. A pessoa masoquista não tem de tomar
decisões, não precisa assumir quaisquer riscos; nunca está só - mas não é
independente; não tem integridade; ainda não nasceu de todo. Num contexto
religioso, o objeto da adoração é chamado ídolo; num contexto secular de
relações de amor masoquista, o mecanismo essencial, o da idolatria, é o mesmo.
A relação masoquista pode-se misturar com o desejo físico, sexual; neste caso,
não é só uma submissão de que participe o espírito de alguém, mas também todo o
corpo. Pode haver submissão masoquista ao destino, à enfermidade, à música
rítmica, ao estado orgíaco produzido por drogas ou sob transe hipnótico: em
todos esses exemplos a pessoa renuncia à sua integridade, torna-se o
instrumento de alguém ou de algo fora dela própria; não precisa de resolver o problema
de viver por meio da atividade produtiva.
A
forma ativa da fusão simbiótica é a
dominação, ou, para empregar o termo psicológico corresponde ao masoquismo, o sadismo. A pessoa sadista quer escapar de
sua solidão e de sua sensação de encarceramento, fazendo de outra pessoa uma
parte, uma parcela de si mesma. Expande-se e valoriza-se incorporando outra
pessoa, que a adora.
A
pessoa sádica depende tanto da pessoa submissa quanto esta daquela; uma não
pode viver sem a outra. A diferença só está em que a pessoa sádica ordena,
explora, fere, humilha, e a masoquista é mandada, explorada, ferida, humilhada.
Tal
diferença é considerável num sentido realista; num sentido emocional mais
profundo, a diferença não é tão grande quanto o que ambas têm em comum: fusão
sem integridade. Se se compreende isto, também não é surpreendente verificar
que normalmente uma pessoa reage tanto da maneira sádica como da masoquista, de
modo geral para com objetos diversos. Hitler reagia primordialmente de maneira sádica
para com o povo, mas masoquistamente para com o destino, a história, o “poder
mais alto” da natureza. Seu fim - o suicídio em meio à destruição geral - é tão
característico quanto o foi seu sonho de sucesso, de dominação total. (Escape from Freedom, Erich Fromm,
Londres, Routledge, 1942).
Em
contraste com a união simbiótica, o amor
amadurecido é união sob a condição de
preservar a integridade própria, a própria individualidade. O amor é uma força ativa no homem; uma
força que irrompe pelas paredes que separam o homem de seus semelhantes, que o
une aos outros; o amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de
separação, permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo, reter sua integridade. No
amor, ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois.
Ao
dizermos que o amor é uma atividade, enfrentamos uma dificuldade que reside na
significação ambígua desta palavra. Por “atividade”, no emprego moderno do
termo, queremos normalmente referir-nos a uma ação que produz mudança numa
situação existente, por meio de gasto de energia. Assim, um homem é considerado
ativo quando faz negócios, estuda medicina, trabalha numa usina, fabrica uma
mesa ou dedica a esportes. Todas essas atividades têm sido em comum: dirigem-se
para um alvo exterior a ser alcançado. O que não se leva em conta é a motivação da atividade. Veja-se, por exemplo, um homem impelido a incessante
trabalho por um sentimento de profunda insegurança e solidão; ou outro
impulsionado pela ambição, ou pela avidez por dinheiro. Em todos esses casos a
pessoa é escrava de uma paixão, e sua atividade é de fato uma “passividade”,
porque ela é impelida; é o paciente, não o “ator”. De outro lado, alguém que se
assente calmo e contemplativo, sem outro alvo que não o de experimentar-se e à
sua unidade com o mundo, é considerado como “passivo”, porque não está
“fazendo” coisa alguma. E, na verdade, esta atitude de meditação concentrada é
a mais alta atividade que existe, uma atividade da alma, só possível sob
condições de independência e liberdade interiores. Um conceito de atividade, o
moderno, refere-se ao uso de energia para consecução de metas externas; o outro
conceito de atividade refere-se ao uso dos poderes inerentes ao homem, sem que
importe a produção de qualquer mudança exterior. Este último conceito de
atividade foi formulado com muita clareza por Spinoza. Diferencia ele os afetos
entre ativos e passivos, “ações” e “paixões”. No exercício de um afeto ativo, o
homem é livre, é o senhor de seu afeto; no exercício de um afeto passivo, o
homem é impelido, é objeto de motivações de que ele próprio não tem
consciência. Assim Spinoza chega à afirmação de que virtude e poder são uma só
e a mesma coisa (Spinoza, Ética, IV,
Def. 8). A inveja, o ciúme, a ambição, qualquer espécie de cobiça são paixões;
o amor é uma ação, a prática de um poder humano, que só pode ser exercido na
liberdade e nunca como resultado de uma compulsão.
O
amor é uma atividade, e não um afeto passivo; é um “erguimento” e não uma
“queda”.
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Para conhecer um
diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500
anos, leia o livro “Conversas na
Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.

Com 28 capítulos e
170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de
Blumenau, Edifurb.
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