O Modo Como Surge
Uma
Fraternidade Sem
Fronteiras
Carlos Cardoso Aveline

Uma
imagem de Jerusalém
Os desafios do Oriente Médio são um resumo
do drama humano.
Desde a criação
do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948, houve várias guerras e incontáveis
choques armados, atentados e assassinatos. Não têm faltado da parte de árabes e
judeus as demonstrações de amor e fanatismo, coragem e intolerância, fé e
desespero. Estão presentes no Oriente Médio a utopia democrática e o
terrorismo, o cooperativismo e um desprezo pela vida, a busca da paz e o culto sistemático
do ódio.
Por outro lado, grande
parte do caminho para a paz no Oriente Médio depende do que ocorre fora do
universo judaico-muçulmano.
O mundo ocidental
inteiro precisa superar e abandonar uma das principais maldições que o
acompanham há um milênio e meio. O nome da maldição é antissemitismo. Quando a humanidade
avançar um pouco mais no caminho da sabedoria universal, o Oriente Médio deixará
de ser um campo de confrontos militares e religiosos e se transformará em uma
região de paz. Então Jerusalém inteira será vista como um templo do espírito planetário
e da fraternidade sem fronteiras.
A lição a
aprender inclui o fato de que, na política como nas relações pessoais, o ódio
não se extingue pelo ódio, segundo ensina o Dhammapada
budista. O ódio só se extingue pelo respeito, pela consideração, e pelo amor à
vida.
O Oriente Médio
é, pois, um laboratório decisivo para a construção da civilização do terceiro
milênio. Parte da tarefa alquímica é enfrentar e vencer a pesada herança de
incompreensão e rancor acumulados. Ali se encontram três grandes religiões que
necessitam reler suas próprias escrituras e redescobrir nelas algumas lições da
sabedoria eterna.
A fase
contemporânea do quebra-cabeças começa em 1948, quando o Estado de Israel foi fundado com apoio da
ONU, dos Estados Unidos e da União
Soviética. O novo país surgiu como um lar para o povo judeu após quase dois mil
anos de perseguição cristã e do holocausto provocado pelo nazismo. Imediatamente
depois da fundação, os cinco principais países árabes vizinhos foram à guerra.
O objetivo - nada modesto - era eliminar
Israel do mapa. Os muçulmanos que acreditavam na violência foram derrotados e
setecentos mil palestinos se viram deslocados das suas terras.
Em 1956, nova
guerra, e Israel toma o Sinai do Egito. Em 1967, na fulminante “guerra dos seis
dias”, Israel obtém uma vitória esmagadora contra Síria, Egito e Jordânia. Em
1973, Egito e Síria atacam Israel e são derrotados. De lá para cá, a sangrenta
sucessão de choques tem prosseguido, com intervalos de paz que são usados pelos
muçulmanos radicais para se prepararem novamente para a guerra. As facções radicais da política palestina têm
ganhado força, financiadas e manipuladas por países árabes exportadores de
petróleo que, deste modo, podem atacar Israel sem perder seus próprios
soldados.
Falta à região
do Oriente Médio uma visão intercultural e inter-religiosa de base, que
proponha a convivência pacífica e a cooperação. Este fator não só é decisivo e
indispensável, mas também viável. A sabedoria destrói o ódio. A mística judaica
e a sua cabala encontram uma contrapartida válida na mística islâmica e no
sufismo.
A intolerância no
Oriente Médio de hoje não é um problema de árabes e judeus apenas. O conflito
tem raízes históricas. A responsabilidade
dos cristãos é enorme. Em março de 2000, o papa João Paulo II fez uma
autocrítica em nome do Vaticano ao dizer em
Israel, durante cerimônia de homenagem às vítimas do holocausto judeu da
segunda guerra:
“A igreja católica
(...) está profundamente entristecida por causa do ódio, dos atos de perseguição
e das manifestações de antissemitismo dirigidas contra os judeus pelos cristãos
em todo tempo e lugar.”
O papa acrescentou
que rezava para que a dor da tragédia judaica do século 20 levasse a uma nova
relação, livre de ódio, entre cristãos e judeus. Em outra oportunidade, João
Paulo II pediu perdão pelos pecados que a igreja católica cometeu durante os
últimos 2000 anos, incluindo o tratamento dispensado “às outras
religiões”. Ainda no ano 2000, cerca de 350
bispos brasileiros e o representante do Vaticano no Brasil pediram perdão aos
índios e negros pelas injustiças e violências cometidas durante os últimos 500
anos. Na Alemanha, em agosto do mesmo ano, a igreja católica anunciou que iria
indenizar as vítimas de trabalho escravo durante o regime nazista. Sob a
liderança de Hitler, a igreja católica alemã foi vergonhosamente beneficiada
por trabalho escravo (em grande parte de judeus) devido à sua intimidade com os
nazistas. Embora estes sinais de autocrítica tenham sido elogiáveis, foram
passos demasiado tímidos e caíram no vazio.
Há muito por fazer
para que sejam eliminadas as raízes do preconceito contra o povo hebraico. A perseguição aos judeus começou no mundo
antigo. Assim que os cristãos deixaram
de ser perseguidos como mártires, passaram a perseguir como inquisidores. Adotada pelo império romano no início do
século IV da era atual, a nova religião logo começou a tratar com ferro e fogo
as antigas tradições de sabedoria,
chamadas depreciativamente de “pagãs”, e
passou a culpar os judeus pela morte de Jesus.
A acusação era absurda,
não só porque Jesus e seus discípulos diretos eram todos judeus, mas porque o
próprio Jesus perdoou os seus perseguidores. O ensinamento cristão proíbe a
vingança. Mesmo assim, no ano 325, o Concílio de Niceia considerou a religião
judaica “uma aberração”. Contrariando
Jesus, São João Crisóstomo considerou a sinagoga um local para “bestas impuras”. Segundo os cristãos, os judeus não deviam desfrutar
de direitos humanos.
O período de
dominação do Vaticano sobre o mundo esteve longe de ser luminoso. Mulheres,
negros, índios, judeus e muçulmanos eram considerados inferiores e oprimidos. Os
“hereges” eram torturados até a morte para maior glória de Jesus. O santo nome
não era só usado em vão, portanto: era usado para legitimar o crime. Foi neste
contexto que surgiu no século vinte a íntima cooperação entre alguns papas e o
nazi-fascismo.
Em 1929, o
Vaticano assinou o Tratado de Latrão, estabelecendo bases da sua colaboração ativa
com Benito Mussolini, o ditador fascista. O Vaticano havia desencorajado a resistência
democrática por parte dos católicos italianos, facilitando a tarefa fascista,
conforme destaca o historiador inglês John Cornwell. Em 1929, quatro anos antes
de tomar o poder total na Alemanha, Adolf Hitler escreveu:
“O fato de que a
Igreja católica chegou a um acordo com a Itália fascista (...) prova além de qualquer dúvida que o mundo das
ideias fascistas é mais próximo do cristianismo do que o liberalismo judeu ou
mesmo o marxismo ateu (...).” [1]
Até março de 1933,
os 23 milhões de católicos alemães mantinham-se unidos e valorizavam a
democracia, condenando o nazismo. Em
julho de 1933, o núncio apostólico do Vaticano na Alemanha, Eugênio Pacelli - que
viria a ser o papa Pio XII - assinou com o governo nazista um acordo que ajudou
a abrir caminho para que Hitler tomasse o poder como ditador. Como Pio XII,
Pacelli foi o “papa de Hitler”, segundo John Cornwell. Já o historiador Paul
Johnson [2] destaca que a maior
parte dos protestantes e luteranos da Alemanha apoiou Hitler e o nazismo até
com “um certo entusiasmo”. É verdade que certo número de cristãos da Alemanha resistiu
à tirania nazista. Foram perseguidos, presos em campos de concentração e assassinados.
O teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, que morreu no cárcere, é um exemplo de
heroísmo. Das várias correntes do cristianismo alemão, no entanto, só os seguidores
das Testemunhas de Jeová foram frontalmente contrários ao nazismo e
compartilharam como heróis a sorte dos judeus nos campos de concentração.
O Vaticano,
oficialmente neutro, esperou desde 1939 até 1942 para aproximar-se dos Aliados
que defendiam a democracia. Foi um gesto hábil e calculado: naquele
momento a derrota do nazismo já despontava no horizonte.
O discreto
envolvimento do Vaticano com o nazismo não nega o fato de que houve no mundo
todo um grande número de padres, freiras e leigos católicos que ajudaram
heroicamente a luta antinazista e foram solidários com os judeus e outros
perseguidos. Também devemos levar em
conta que o nazismo, com técnicas sofisticadas de propaganda e de hipnotismo de
massas, foi capaz de iludir durante anos milhões de pessoas ingênuas e de boa
intenção.
No pano de fundo
da luta entre judeus e árabes há, portanto, uma boa dose de antissemitismo, um
resultado das perseguições promovidas pelo cristianismo. Sendo uma das três grandes religiões que consideram
Jerusalém uma cidade sagrada, o
cristianismo e suas instituições deveriam tomar a iniciativa no sentido
da autocrítica sincera e provocar um
diálogo inter-religioso capaz de produzir uma nova visão da vida e do
futuro no Oriente Médio, com base no
fato de que a convivência pacífica
entre diferentes religiões e ideologias
é necessária e inevitável.
Até agora as
instituições cristãs têm ajudado pouco, talvez porque elas próprias não estão
livres do dogmatismo. Os esforços de paz não podem ficar entregues ao governo
norte-americano, ou a meras instâncias diplomáticas internacionais, inclusive
porque grande parte do conflito entre israelenses e palestinos é religioso, e
não político. A paz deve ser construída na vida das comunidades. Para isso, a
sacralização islâmica do sentimento de ódio e a divinização da violência e da
morte devem ser abandonadas.
Há questões
práticas e materiais por resolver na região.
Os problemas concretos só podem ser resolvidos se, em primeiro lugar, os
palestinos aceitarem que o povo judeu tem direito a viver em paz em Israel.
Deve surgir no
Oriente Médio uma religiosidade mais madura, digna de uma nova era de paz e
solidariedade internacional. O islamismo
deve evoluir. O impasse atual resulta de
uma crise de paradigmas e de visão de mundo. A guerra não faz sentido, mas a
paz não é possível enquanto não construirmos uma cultura ampla e generosa,
cujos deuses respeitem a vida e não
estejam a serviço da violência.
O judaísmo é o
tronco comum de que surgiram o cristianismo e o islamismo. As duas religiões mais
jovens ensinam a seus crentes o mesmo mandamento básico do judaísmo: “não
matarás”. As duas religiões reconhecem uma divindade feita de amor, bondade e
sabedoria, e promoveram algumas das piores guerras dos últimos 1500 anos.
Tanto o
cristianismo como o islamismo expandiram seus domínios pela violência e
guerrearam entre si pelo domínio do mundo. Esta contradição existe porque, se o
assassinato individual é desaconselhado, o assassinato em massa - qualificado
como “guerra” e até “guerra santa” - tem
sido sacralizado pelas burocracias eclesiásticas com base em uma leitura radicalmente equivocada do ensinamento
divino. Se alguém luta por algo sagrado, como Jerusalém, e decide matar seres
humanos indefesos com tiros ou bombas, o que pode restar de sagrado em sua
luta? Um mestre de sabedoria oriental disse que um deus vingativo e
nacionalista não é divino. O que move o mundo é a Lei do Amor Universal, da
Justiça e do Equilíbrio.
A solução dos
dilemas do Oriente Médio está em usar a Torá judaica, a Bíblia cristã e o
Alcorão islâmico para a construção na Terra Santa de uma harmonia
inter-religiosa que ilumine corações humanos em todo o mundo.
A mais antiga
das três religiões merece respeito. A nova Jerusalém, quando surgir, será entre
outras coisas um estado de consciência. Constituirá um centro de paz e uma
escola de convivência entre os povos.
O novo modo de
perceber a vida não é promovido por grandes instituições burocráticas,
religiosas ou não. Ele emerge desde o interior do coração humano. O portal para a fraternidade está situado na
consciência do indivíduo. Não pergunte, pois, por quem começa a paz no mundo.
Ela começa por você e cada ser humano de boa vontade. A sabedoria universal é
um círculo cujo centro está em todas as partes, inclusive em seu coração, e por
esse motivo é útil adotar práticas de meditação criadora.
Vejamos um
exemplo.
Contemplando
o Oriente Médio
1) Sente-se de modo confortável, em local
silencioso e bem arejado. Respire profundamente com a coluna ereta. Feche os
olhos. Relaxe pés, pernas, braços, e a musculatura do rosto.
2) Pense na paz e na vitória. Reconheça honestamente
que todo o sofrimento do mundo existe para fazer-nos despertar do sonho mau da
ignorância.
3) Enxergue o país em que você mora como uma fonte
de paz para o mundo.
4) Pense nos muçulmanos e judeus como seres
capazes de reconhecer que nenhuma religião verdadeira produz ódio, e que cada religião autêntica é um
instrumento da sabedoria e do amor universal.
5) Visualize um cristianismo e um islamismo de
horizontes abertos, capazes de estimular o diálogo inter-religioso e a fraternidade
entre os povos. Veja as crianças palestinas e judaicas convivendo em harmonia,
com boas condições físicas, sociais e culturais, participando de um mundo
global e solidário.
6) Visualize Jerusalém como uma cidade que
não é motivo de conflitos mas um local de livres debates internacionais, fonte
de consciência planetária e elevação espiritual para todos os povos. Veja a
capital histórica de Israel como um centro internacional de paz onde florescem
os estudos filosóficos e a harmonia intercultural.
7) Mande seus votos de paz para os líderes políticos, culturais, religiosos das comunidades
judaicas e muçulmanas.
Repita esta
meditação. Faça-a com seus amigos. Mantenha consigo e alimente com regularidade
estes pensamentos sobre o futuro do Oriente Médio.
NOTAS:
[1]
“O Papa de Hitler, a História Secreta
de Pio XII”, de John Cornwell, Ed. Imago,
R.J., 2000, 471 pp., ver pp. 130 a 132.
[2] “A History of
Christianity”, de Paul Johnson, Penguin Books, Londres, 1976, pp. 481-487.
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Uma versão inicial do texto acima apareceu
na edição de dezembro de 2000 da revista “Planeta”, de São Paulo. A presente
versão foi publicada em novembro de 2014.
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Veja também os textos “A Teosofia e o Oriente Médio”, “Onze Aforismos da Tradição Judaica” e “O Islamismo é Maior Que a Violência”. Os três artigos são de Carlos
Cardoso Aveline, e estão disponíveis em nossos websites associados.
Sobre o mistério do despertar individual
para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.

Com
tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos,
85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The
Aquarian Theosophist”.
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