Continua Sem Resposta Final
Um Desafio Formulado em 1750
Carlos Cardoso Aveline
J.-J.
Rousseau e a capa de uma das primeiras
edições
do seu Discurso Sobre as Ciências e as Artes
Em Paris, no ano de 1750, a Academia de Dijon fez um concurso
público que premiaria o melhor Discurso
sobre o seguinte tema:
“Se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu
para aperfeiçoar os costumes.”
A pergunta continha uma referência à Renascença dos dois
séculos anteriores, durante os quais a sabedoria clássica grega e romana havia
experimentado uma nova primavera. Devido ao renascimento das ciências e das
artes, haviam melhorado os costumes, os hábitos as ações das pessoas?
Essa era a questão colocada pela Academia.
O vencedor do concurso foi Jean-Jacques Rousseau com sua exposição
“Sobre as Ciências e as Artes”. Sua abordagem
constitui um dos pontos altos da filosofia de todos os tempos. E a resposta de
Rousseau foi negativa. Ele achava que o conhecimento não estava sendo usado
para o bem.[1]
Não seria sábio querer chegar a uma resposta rápida para a
pergunta sobre se o conhecimento reunido pela humanidade está sendo usado corretamente.
Melhor do que lançar uma resposta pronta,
é questionar-se a respeito.
O uso do conhecimento é contraditório. Ele é usado de modo construtivo
e destrutivo, conforme a situação. A luz
e a sombra convivem. O papel evolutivo da ignorância organizada é garantir que
a vitória da sabedoria, quando ocorrer, será merecida.
Cada vez que uma civilização vai além da fase útil do seu
ciclo, ela é desconectada da Sabedoria e cai nas mãos da Ignorância, para que a
destrua. Assim se abre espaço para uma outra forma melhor de civilização.
O discurso fascinante de Rousseau em 1750 transmite uma bondade
imensa, uma grande sabedoria. Ao ouvi-lo, vemos as culpas e os fracassos da
humanidade. Rousseau quase descrê da busca do conhecimento. E no entanto ele
dedicou sua vida conscientemente à busca da verdade. [2] A questão diante de nós, como a questão diante de Rousseau, não
consiste em ter ou não ter conhecimento. A tarefa é examinar o que se deseja saber,
quando se busca conhecimento; com que objetivo se faz isso, e que uso prático
se dá ao saber, uma vez que ele é obtido.
Culpar a humanidade é inútil. Desde os primeiros séculos da
era cristã os profetas têm o hábito de condenar a humanidade e discursar sobre
a sua decadência. Falar mal dos tempos atuais é um modo fácil de colocar-se
acima da sociedade que nos rodeia. Lamentações servem para justificar o
desânimo e as atitudes irresponsáveis. Cabe ser rigoroso. Mas é igualmente necessário
apontar um futuro saudável que possa ser construído desde já, passo a passo, e
cuja construção leve à felicidade, geração após geração.
A questão levantada por Rousseau deve ser vista como um
problema prático.
Considerando que o movimento teosófico autêntico lida no
século 21 com uma filosofia universal e que estimula os níveis superiores de
consciência, cabe perguntar se os teosofistas em geral têm usado de modo
correto o conhecimento que lhes foi confiado, e o conhecimento que obtiveram.
A resposta deve ser individual. É preferível que cada um fale
por si. Mais do que condenar os outros, ou criticar a civilização atual, é útil
que perguntemos a nós próprios até que ponto usamos para o bem o nosso
conhecimento em cada aspecto da vida.
Em que situações devemos melhorar?
Se um certo número de teosofistas autorresponsáveis diante do
Carma usarem corretamente o conhecimento, obterão sabedoria. A percepção da ética
divina nascida da prática filosófica passará por osmose a permear o resto da
civilização. Isso ocorrerá de modo silencioso, de dentro para fora. Assim, o
conhecimento humano passará a ser usado a cada século de modo mais benigno do que no século anterior,
dentro das possibilidades dos ciclos cármicos evolutivos.
Para isso será preciso que cada um enfrente por si mesmo o
peso da ignorância acumulada do mundo.
Não
importa quanto “conhecimento” alguém pensa que tem. O significado do
conhecimento está no que nós fazemos com ele. A sabedoria divina é não-verbal e
só pode ser realmente obtida por aqueles que a merecem, e enquanto a merecem. Os
outros só conseguem alcançar as palavras
relativas à espiritualidade; e, com frequência, eles não sabem diferenciar as palavras
corretas das palavras distorcidas. Terão de desenvolver o discernimento.
É a ação
correta que faz com que mereçamos alcançar verdadeiro conhecimento. Quando
usamos o nosso saber com intenção nobre e de modo acertado, ele se amplia. Assim
cresce a capacidade de ver o que é verdadeiro e o que é falso.
Cabe
lembrar que a sabedoria passa frequentemente desapercebida. Ela parece
invisível, porque o verdadeiro saber tem mais afinidade com o silêncio do que
com o barulho.
J.-J.
Rousseau escreveu:
“Como
seria bom para aqueles que vivem entre nós, se a nossa aparência externa fosse
sempre um espelho dos nossos corações, se boas maneiras fossem também virtude,
se os preceitos que nós recitamos fossem as normas da nossa conduta, se a
verdadeira filosofia fosse inseparável do título de filósofo! [3] Mas estas boas qualidades raramente
andam juntas, e a virtude dificilmente tem tanta pompa, ou tanta pose.” [4]
O
autoconhecimento abre espaço para o autoesquecimento. Este último faz surgir
uma simplicidade essencial diante da vida e dos testes que ela traz.
As armadilhas são inevitáveis. A vitória é certa quando há
perseverança. O texto “O Dilema Ético de S. Paulo” [5] discute o processo de busca da ação correta.
O movimento teosófico autêntico é um refúgio para os que
buscam a verdade e transcendem o apego a aparências. Nele cada estudante aprende
com todos os outros na medida exata da sua capacidade de aprender; e a
observação de si mesmo, feita com a intenção definida de melhorar, expande a aptidão para alcançar a sabedoria.
Ao final de cada dia, assim como no fim de um ano ou de um
mês, podemos perguntar-nos:
*Em que agi acertadamente neste período de tempo que agora
termina?
*Em que usei para o bem o conhecimento que penso que tenho?
*Como posso melhorar no ano que vem, ou a partir do mês que
agora começa?
Quando os buscadores da verdade estão harmonizados interiormente
entre si, cada um pode reunir-se melhor com sua própria alma. O conceito russo
de sobornost significa “comunhão, comum-união,
fraterna-unidade”, e é teosófico. Implica unidade com liberdade. Diz respeito
às verdadeiras escolas esotéricas.
Para a filosofia dos eslavófilos, o real conhecimento só surge em
conjunto com o sentimento de solidariedade incondicional para com todos os
seres.
Numa associação teosófica, o erro de cada um prejudica a todos. O
acerto de um estudante beneficia os outros. A felicidade interior de um só
indivíduo atrai bênçãos para o conjunto. O ponto fraco do meu colega é o meu
ponto fraco. A vitória do meu irmão aumenta a força da luz no meu caminho.
NOTAS:
[1] “Discurso
sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Precedido de
Discurso sobre as Ciências e as Artes”, J.-J. Rousseau, Martins Fontes, SP, 1993, 280 pp.; ver pp. 1-117, especialmente as pp. 9 a 36,
que contêm o discurso em si.
[2] Rousseau
assumiu este compromisso consigo mesmo adotando uma máxima do pensador clássico Juvenal. (“Os Devaneios do
Caminhante Solitário”, Ed. UnB, Brasília, copyright 1986, 135 pp., Quarta
Caminhada, p. 55, primeiro parágrafo e nota de rodapé do editor.)
[3] Ou
da palavra “teosofista”.
[4] Trecho
traduzido da edição em inglês do ensaio de Rousseau, “Discourse on the Sciences
and Arts” (“Discurso Sobre as Ciências e Artes”), publicada no livro
“Jean-Jacques Rousseau”, Susan Dunn, editor; Yale University Press, 2002, ver p.
49. Na edição brasileira de Martins Fontes, citada acima, veja as páginas
12-13.
[5] “O
Dilema Ético de S. Paulo” está disponível em nossos websites associados. Veja
também “A Sabedoria é Só Teórica?” e “A Diferença Entre a Teoria e o
Discurso”. Os três artigos são de Carlos
Cardoso Aveline.
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Uma versão anterior do texto “Como Usamos o Conhecimento” foi divulgada na edição de dezembro de
2015 de “O Teosofista”. A sua
presente versão, inclui o conteúdo da nota “Olhando Para o Coração Humano”,
que o leitor encontrará publicada sem
nome de autor na edição de maio de 2014 do “Teosofista” (p. 04).
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Para
conhecer a teosofia original desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de
Carlos Cardoso Aveline.
Com 19
capítulos e 191 páginas, a obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de
Brasília.
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