O Que Temos a Aprender
Com os Povos Tradicionais
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline

Em vários aspectos, o mais novo e o mais
velho se unem hoje para renovar e ampliar radicalmente nosso modo de enxergar a
realidade.
Nas últimas
décadas do século 20, a vanguarda da física redescobriu a filosofia esotérica
através de Fritjof Capra, David Bohm e outros. O químico da NASA Jim Lovelock
descobriu que o planeta Terra pode ser considerado um ser vivo - como pensava o
mundo grego - e criou a teoria de Gaia. Na biologia, Rupert Sheldrake resgatou
velhos conceitos da filosofia do oriente, especialmente o akasha e a luz astral, através de modernos métodos
experimentais. Estas mudanças na visão científica do mundo estabelecem as bases
para uma relação inteiramente nova entre ser humano e ambiente natural, e nos
fazem compreender, também, que podemos aprender grandes lições avaliando melhor
a filosofia de vida dos primeiros habitantes da América.
Segundo a ecologia profunda, todos os seres têm - em princípio - igual direito à vida.
Esta corrente de pensamento aberta e sem dogmas foi criada na Noruega no início
da década de 70 pelo filósofo e músico Arne Naess. Nos últimos anos os livros e
seminários dedicados ao tema têm ganhado espaço rapidamente, inclusive no
Brasil.
Embora seja
moderno na aparência e inspire uma nova geração de cientistas, este modo de
enxergar a vida é antigo e tradicional. A autoria do maior e mais famoso
manifesto de ecologia profunda que conheço é atribuída ao chefe Seattle, dos
índios norte-americanos Duwamish, em 1855, isto é, onze anos antes de o biólogo
alemão Ernest Haeckel propor pela primeira vez, em 1866, a criação de uma “nova
disciplina” a ser chamada no futuro de “ecologia”. O chefe Seattle perguntou ao
presidente norte-americano Franklin Pearce, que lhe havia proposto comprar as
terras indígenas:
“É possível
comprar ou vender o céu e o calor da terra? Tal ideia é estranha para nós. Se
não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como você poderá comprá-los?
Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um
pinheiro, cada areia da praia, cada bruma nas densas florestas, cada clareira e
cada inseto a zumbir são sagrados na memória do meu povo. A seiva que corre
através das árvores carrega as memórias do homem vermelho.”
A ideia central da
ecologia profunda é abandonar a ideia de que a natureza é apenas um amontoado
de “recursos naturais”. Todo egoísmo tem uma vocação inevitável para o
fracasso, e as políticas de preservação ambiental implantadas no século 20
fracassaram amplamente porque partiam de uma filosofia baseada na ideia de que
o homem pode usar e abusar da natureza. Quando você parte de uma premissa falsa, seu
raciocínio e sua prática estão destinados à derrota. Só quando deixamos de lado
a impressão ilusória de que o homem é o centro do universo passa a ser
possível, para nós, perceber que pertencemos à natureza, somos seus filhos e
devemos respeitá-la. A premissa correta, centro da filosofia do futuro, afirma
que a alma da vida universal está presente em todas as coisas, e o homem é
parte dela. Cabe a ele, agora, ser consciente disso. Assim a preservação
ambiental terá êxito. Nas palavras do chefe Seattle:
“Os rios são
nossos irmãos, eles saciam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e
alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e
ensinar às suas crianças que os rios são nossos irmãos, e seus também, e vocês
devem, daqui em diante, dar aos rios a bondade que dariam a qualquer irmão.”
Em uma análise
comparativa, poucos deixariam de afirmar que nossa civilização tecnológica é
mais avançada que as dos indígenas. Mas o que estamos fazendo com nossas
crianças? Abandonando-as? Matando-as?
Prostituindo-as? O que são os assaltantes das grandes cidades além de crianças
abandonadas que cresceram aprendendo violência?
Considerando o
que estamos fazendo com nossos rios e florestas e também o grau de violência,
corrupção e poluição que há em nossas cidades, em que coisas somos de fato melhores, e em que
aspectos somos mais bárbaros, mais
violentos e atrasados que os indígenas das Américas tradicionais?
“Não há um
lugar calmo nas cidades do homem branco”, afirma a carta dos duwamish: “Nenhum
lugar para escutar o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de
um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreenda. O ruído
parece apenas insultar os ouvidos. E o que resta da vida, se o homem não pode
escutar o choro solitário de um pássaro ou o coaxar dos sapos em volta de uma
lagoa à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o
suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio aroma do vento,
limpo por uma chuva do meio-dia, ou perfumado pelos pinheiros.”
Recuperar a
capacidade de conviver com o mundo natural é avançar em direção àquele futuro
em que as cidades trarão para si o melhor do campo, e o campo terá em si o
melhor das cidades. Então desaparecerão as doenças físicas e emocionais
causadas pela tensão nervosa das grandes cidades. Desaparecerão fenômenos como
a síndrome do pânico, a insegurança das ruas modernas ou a violência contra os
agricultores sem terra. E ainda respiraremos melhor, como os indígenas faziam.
Também neste aspecto, temos a aprender com eles:
“O ar é
precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo
sopro. O animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. O homem
branco parece não sentir o ar que respira. Como um animal que agoniza há vários
dias, ele é incapaz de sentir o mau cheiro. (...) Ensinem às suas crianças o
que ensinamos às nossas crianças. Tudo o que ocorrer com a terra, ocorrerá com
os filhos da terra. Se os homens desprezam o solo, estão desprezando a si
mesmos. A terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra.” [1]
Um testemunho
menos conhecido, mas não menos belo, foi deixado a nós pelo chefe Urso-em-pé,
dos Lakota. Ele disse, lembrando de tempos anteriores:
“Os velhos
Lakota amavam o solo e sentavam-se ou reclinavam-se no chão com o sentimento de
estarem próximos de um poder maternal. Era bom para a pele tocar a terra, e os
velhos gostavam de se descalçar e andar com os pés nus sobre a terra sagrada.
As tendas eram erguidas sobre a terra, e os altares feitos de terra. O solo era
tranquilizante, revigorador, purificador e medicinal. Por isso é que os velhos
índios ainda se sentam diretamente na terra, fonte de suas forças vitais. Para
eles, sentar-se ou deitar-se no chão permite pensar com mais profundidade e
sentir com mais clareza; podem penetrar nos mistérios da vida e descobrir seu
parentesco com outras formas de vida ao redor. (...) Os velhos Lakota eram
sábios. Sabiam que o coração do homem distante da natureza se torna duro;
sabiam que a falta de respeito pelas coisas vivas leva imediatamente à falta de
respeito pelos humanos.” [2]
Urso-em-pé
mencionou aqui uma causa central da violência e degeneração da vida emocional
das grandes cidades. Dominadas hoje por meios eletrônicos de “comunicação” cuja
influência parece crescer lado a lado com a falta de comunicação real entre seres humanos, as cidades degeneram pelo seu
distanciamento da natureza e dos seus ritmos vitais básicos. Como um animal em
cativeiro que perde a alegria de viver, o ser humano distante da natureza é
preso por suas preocupações pessoais, e dificilmente encontra paz, dentro ou
fora de si. O resultado é a violência: primeiro em pensamento e sentimento, e
depois na realidade externa.
Por outro lado,
temos alguns erros em comum com as sociedades indígenas e um deles é a
superstição. A maior parte da população brasileira atual, herdeira da cultura
europeia, ainda é guiada por fortes crenças ilusórias. Algumas das nossas
superstições são materialistas (como pensar que o dinheiro traz felicidade), e
outras são religiosas (como a de pensar que, para ser religioso, basta adorar e
pedir favores a um Deus em forma humana). Até mesmo nossos modernos pajés, os
cientistas e intelectuais, participam em grande parte das superstições
coletivas da nossa civilização.
Os indígenas
também tinham uma visão relativamente estreita do mundo. Vemos com facilidade
os erros do pensamento indígena tradicional, porque é sempre fácil enxergar os
defeitos alheios e nossas limitações são outras. Mas apesar das cegueiras
culturais, dos tabus e nacionalismos tribais, havia em todas as sociedades
indígenas - como há hoje na nossa - uma tradição de sabedoria transcendental.
Ela permanecia à disposição dos que estavam prontos e eram capazes de erguer os
olhos para ela. Quando o aprendiz está pronto, a sabedoria aparece - em
qualquer tempo e lugar.
Certo dia o
indigenista brasileiro Orlando Villas Bôas ficou surpreso ao conversar com um
pajé do rio Xingu, o mais versado, ali, nos conhecimentos que vão além do saber
comum. Ele conta o fato em seu livro A
Arte dos Pajés [3]. Um pajé de meia-idade, Arru, chegou do
mato cansado de caminhar e sentou-se ao lado de Orlando.
“Lá é o céu”,
diz Arru, apontando para o alto.
“Sei”, responde
Orlando.
“Lá é a aldeia
dos que morrem.”
“Sei”, diz
Orlando, conhecedor da cultura indígena.
Depois de um
momento em silêncio, olhando bem para o alto, Arru acrescenta:
“Lá no céu do
céu... ela está lá.”
Orlando pensa
que quem está lá no céu do céu deve ser um deus antropomórfico.
“Quem está lá?
Um índio velho que sabe tudo?”
A resposta de
Arru é enfática:
“Não, apenas
uma sabedoria.”
O pajé do Xingu
surpreendeu Orlando mostrando que acreditava na existência de uma lei ou
sabedoria universal, e que estava livre da superstição de um deus em forma
humana, de quem se pode obter favores pessoais fazendo-lhe homenagens como a um
rei todo-poderoso.
O diálogo entre
Villas Bôas e Arru tem outros aspectos interessantes. A “aldeia dos que
morrem”, que existe no céu dos índios xinguanos, é um conceito equivalente, de
certo modo, ao kama loka da tradição
esotérica. Para o kama loka vão os níveis intermediários da
consciência de um ser humano fisicamente morto. Ali, os níveis médios de
consciência passam por uma purificação que dará lugar ao devachan ou bem-aventurança, um longo período de descanso antes de
um novo renascimento. O devachan equivale
à “terra sem males” dos tupis brasileiros,
local mítico e não-espacial. Ali
ninguém morre ou adoece, a lavoura se trabalha sozinha e a colheita ocorre sem
que seja necessário fazer esforço.
Do ponto de
vista esotérico, não conheço referências muito complexas ou exatas ao processo
pós-morte na tradição indígena das Américas. Porém, na sua simplicidade, os
povos indígenas reconhecem a existência de um mundo sutil ou astral em que são
registrados os nossos atos e no qual vivem seres invisíveis, ao lado das forças
arquetípicas da natureza e dos seres que se foram do mundo físico.
“Há na cultura
indígena uma total dependência da criatura com o mundo sobrenatural”, escreveu
Villas Bôas. Se trocarmos a palavra “sobrenatural” por “astral”, a frase fica correta
do ponto de vista esotérico e se aplica não só aos indígenas, mas a todos os
povos e seres do mundo em todos os tempos. O mundo físico inteiro é reflexo do
mundo astral e, por isso, depende dele. Todas as relações de causa e efeito
operam no mundo astral, que é perfeitamente natural, porém invisível ao olhar
físico, e que, em seus níveis superiores, leva à vida especificamente imortal e
espiritual em que se localiza o devachan
e se alcança o nirvana.
As culturas
indígenas populares tinham acesso a uma versão simplificada da sabedoria
espiritual dos descendentes de Atlântida. Depois da destruição daquele
continente, o conhecimento iniciático e esotérico foi inteiramente
reorganizado. Então, da Índia e do Egito antigos surgiu uma nova série de
civilizações que dura até hoje. Esotericamente, considera-se que os indígenas
americanos são descendentes da tradição espiritual Atlântida, que corresponde à
quarta raça-raiz, segundo Helena Blavatsky. A nossa quinta raça-raiz, mais
racional, perdeu a antiga intuição humana. Mas já começa a recuperá-la em um
nível superior, combinando o método científico experimental com a antiga
capacidade de comunhão com a natureza e o respeito por todos os seres,
habilidades que as sabedorias indígenas, sobreviventes da tradição atlântida,
ainda mantêm intactas.
As tradições do
extremo oriente são outras tantas ramificações da quarta raça-raiz e têm
ensinado lições de grande valor ao nosso confuso ocidente através da medicina
tradicional, da meditação zen, das artes marciais de fundo espiritual, do taoismo,
e do feng-shui, para citar alguns poucos exemplos. Helena Blavatsky afirma em
seu livro clássico “A Doutrina Secreta” que
desde o século 19 surgem, aqui e ali, os primeiros cidadãos da sexta raça-raiz.
Eles não podem ser identificados por qualquer característica física, mas sim
por uma percepção intuitiva dos princípios da sabedoria e da fraternidade
universal que guiarão a humanidade, de modo consciente, no futuro. Para a
ciência esotérica, a fraternidade universal da humanidade é uma lei, e a diversidade
racial é indispensável à evolução.
Neste momento, cabe repensar o processo civilizatório.
É preciso parar a destruição dos ambientes naturais e respeitar os povos que
preservam o conhecimento de como viver em intimidade com a natureza. É
prioritário proteger as crianças, símbolos do futuro, e aprender aquela
sabedoria universal que permeia a história de todos os povos, independentemente
das características físicas, hábitos culturais ou níveis de desenvolvimento
tecnológico dos seus cidadãos.
Devemos ter a
humildade necessária para reconhecer que os povos mais desenvolvidos
tecnologicamente nem sempre foram os mais sábios, e que hoje somos um notável
exemplo disso. Devemos ser capazes de lembrar que, segundo o manifesto
atribuído ao chefe Seattle, “os cumes rochosos, os sulcos úmidos do campo, o
calor do corpo do potro e o homem, todos pertencem à mesma família”.
NOTAS:
[1] “Preservação do Meio Ambiente - Manifesto do chefe
Seattle ao Presidente dos EUA”, Editora Interação/Fundação SOS Mata Atlântica,
SP, 1989.
[2] “Pés Nus Sobre a Terra Sagrada”, Compilador: T.C.
McLuhan, Ed. L&PM, Porto Alegre, 1994, ver pp. 13-14.
[3] “A Arte dos Pajés”, de Orlando Villas Bôas, Editora
Globo, 2000, ver pp. 89-90.
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Sobre a ecologia da mente e a teosofia do ambiente
natural, veja o livro “A Vida Secreta da
Natureza”, de Carlos Cardoso Aveline.

O livro foi publicado pela Editora Bodigaya, de Porto
Alegre, tem 157 páginas divididas por 18 capítulos e está na terceira edição,
de 2007.
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