Examinando a Obra de Machado de
Assis Desde o Ponto de Vista da Ética
Carlos Cardoso Aveline
No Brasil como em
Portugal, o escritor Machado de Assis (1839-1908) é considerado universalmente
um grande nome da literatura.
Analisado
em dezenas de livros de intelectuais importantes, o conteúdo dos seus escritos é
recomendado em escolas, discutido em televisões educativas e escolhido como tema
de teses de mestrado e doutorado.
É
oportuno avaliar o real efeito da sua obra sobre a psicologia do povo. Qual o
significado filosófico de seus livros? Machado transmite sentimentos positivos
sobre o mundo? Ele ensina seus leitores a viverem melhor? O conteúdo do que
escreve é saudável?
Em
seu livro “A Filosofia de Machado de Assis”, o pensador brasileiro Afrânio
Coutinho (1911-2000) faz afirmativas que poucos poderão questionar. Seu ensaio
é sensato e equilibrado. Ele deixa clara a sua admiração pelo talento de
Machado e narra fatos objetivos. Coutinho
resume o que é evidente para todo leitor atento dos livros do escritor:
“O
pessimismo de Machado é a tradução exterior de falta de saúde espiritual.
Revela-se nas criações artísticas por um ódio sistematizado da vida e da
humanidade, uma ausência total de simpatia para os homens e de confiança neles,
uma indiferença completa para os seus sofrimentos, amarguras e desesperos. É
esta a tonalidade geral da sua obra, a nota permanente da sua interpretação do
mundo, essa falta de generosidade no julgar os homens e a vida.”
Ocorrem
risos de todo tipo na convivência humana.
Há
sorrisos inocentes, confiantes e sinceros. E existem sorrisos amargos,
derrotistas, agressivos. O riso pode ser uma expressão da derrota moral e da
tristeza. E cabe lembrar que zombar do que é sagrado nunca faz bem à alma. No
entanto, nos escritos machadianos a galhofa e a zombaria são frequentes. Ele usa
seu talento literário com o objetivo de transmitir uma determinada visão de
mundo. Afrânio Coutinho descreve com realismo a atmosfera criada por Machado:
“É
preocupação constante dele insinuar ou apontar que a vida é má e madrasta,
indiferente ao homem e portanto não merece o nosso esforço, as nossas lutas,
causas de distúrbios e sofrimentos, porém o desprezo e o ódio. Nas
manifestações dessa vida ele só enxerga zombaria, ódio, egoísmo, lutas,
ridículo, falsidade, cálculo, que formam a trama da comédia humana, e o recurso
é não a levarmos a sério, não nos deixarmos ‘empulhar’. Não encontramos, no seu testemunho da humanidade, os
bons sentimentos e virtudes; tudo é egoísmo, hipocrisia, maldade,
insinceridade, deslealdade. São raros os atos puros, nobres, altruístas, ou,
quando surgem, o autor procura logo desmascará-los apontando a origem
egotística ou sensual deles”. [1]
Em
vários idiomas, a literatura e a arte têm sido em parte moralmente cegas há
alguns séculos. Elas enxergam o talento e o celebram sem examinar se ele é
usado de modo que contribui para a evolução humana, ou de maneira que a
atrapalha.
No
caso específico de Machado de Assis, não se trata de criticar sua pessoa, digna
como todas as pessoas do maior respeito. É necessário perguntar-nos se a sua
obra reduz ou aumenta o sofrimento humano. Cabe investigar se os livros do
escritor conduzem os leitores à sabedoria ou à ignorância, à ética ou ao egoísmo
e ao sofrimento.
Uma sociedade
saudável espera algo elevado e inspirador de alguém que é visto como “grande
escritor”. Deve haver em sua obra um respeito pela vida, um amor aos princípios
éticos fundamentais, uma atitude de apreço em relação ao ser humano e sua
potencialidade sagrada. Vejamos então como Machado de Assis - cuja obra é
considerada de grande valor - enxerga a existência humana.
O Amor e o Casal
A afinidade
de corações sustenta e expande a vida. Cada existência humana é resultado do
amor e necessita ser alimentada por laços afetivos. Na obra de Machado, porém,
o amor brilha pela sua ausência, conforme Coutinho esclarece:
“O amor não
existe como um sentimento puro e nobre, vivido sem receios e em plenitude, mas
como um ato indigno, praticado sem a aprovação da moral, em geral contra as
leis sociais. Nem sempre os casamentos se fazem por amor, muitas vezes contra o
amor, e grande número de vezes o amor, para se realizar tem de procurar a
existência fora do casamento. São inúmeros os amores adúlteros na obra do autor
do Dom Casmurro.” [2]
Os Laços de Família
A vida em
família tem importância suprema no carma e no destino de um país. A evolução individual
e coletiva estão ligadas. O afeto sincero nas relações íntimas possibilita a construção
de um país saudável. O testemunho de Afrânio Coutinho é imparcial e bem
documentado:
“A vida da
família [nos livros de Machado de Assis]
não oferece nenhum motivo de que possa o homem orgulhar-se. Ao contrário,
repousa sobre uma trama secreta de intrigas e ridículos em que o egoísmo
constitui o sentimento diretor. Machado não vê, por defeito de sua criação
infantil fora do ambiente de um lar, como muito bem notou Mário Matos, na vida
de família, o aspecto fecundante de vida, a atmosfera moral e sentimental, a
pequena sociedade celular de influência poderosíssima na grande sociedade, como
na psicologia mesma do homem. Para ele a família não tinha nenhum valor moral,
e era resultante de forças contra as quais o homem nada podia: o egoísmo do
sexo, as convenções sociais, o interesse econômico. Quase nunca a formação da
família, o casamento, se faz por impulsos nobres. A maioria das vezes é efeito
da conveniência, das convenções e da trama dos interesses. Raras são as uniões
que se fazem vitoriosas sobre as convenções sociais. Há sempre empecilhos de
raça, de classe, e muitas vezes políticos, a estorvar uniões, que, se se
realizam, serão infelizes, como se o romancista procurasse mostrar que não há
outro caminho para a ligação conjugal além daquele.” [3]
A Figura Feminina
A mulher,
símbolo do amor, da beleza e do cuidado para com o outro, desempenha um papel
central na vida familiar. Cabe, pois, examinar com cuidado como é descrita na
obra de Machado a figura decisiva da esposa e da mãe. Teria ele desprezo pelas
mulheres?
Afrânio
Coutinho informa:
“Outro modo
ainda por que se manifesta o ódio à vida em Machado é a respeito das mulheres e
da vida feminina. Procura impedir ou tolher o gosto de viver. São sem conta as
mulheres solteironas, ansiosas, e ainda esperançosas, de um amor, cujo drama
íntimo consiste nessa expectativa falhada, admiravelmente explorada pelo
romancista para tirar notas de ridículo. Por outro lado, são as fontes mesmas
da criação e da vida que ele destrói: as suas mulheres em geral são estéreis e
não possuem o senso da maternidade, não desejam filhos, não se preocupam com
eles. Das poucas vezes que Machado salvou a mulher da esterilidade foi para
torná-la infeliz, como Natividade, que sofreu até morrer do antagonismo dos
dois gêmeos, ou então para fazê-la uma traidora astuciosa, como no caso de
Capitu, temperando portanto, ou associando, o sublime sentimento da maternidade
- fonte de vida - a um ato pecaminoso, egoístico e miserável, tirando-lhe toda
a pureza e nobreza.”
Afrânio prossegue
no mesmo trecho:
“Mário Matos
mostrou, ao lado dessa ausência do sentimento de maternidade nas mulheres
machadianas, outros sentimentos que as fazem distantes da vida: a impiedade, a
crueldade, a falta de bondade, de amor, de humildade, de crença. ‘São mulheres
mais sociais do que domésticas, distinguindo-se pelo respeito às normas e
regras da sociedade, e, assim, procuram sempre salvar as aparências, procuram
compor um estilo que se adapte ao meio e aos seus prejuízos necessários. Têm
horror à responsabilidade dos atos que as aviltem no conceito social’.
‘Falta-lhes por completo a alma doméstica’.” [4]
Os trechos
acima indicam fatos facilmente verificáveis.
O Respeito pela Infância
Cabe
examinar o papel que a obra de Machado de Assis cumpre de fato na formação do
ser humano.
É preciso
investigar se a sua influência torna melhores os homens, as mulheres e as
crianças, ou se pelo menos não os torna piores; e se não lhes tira a percepção
do lado sagrado da vida, cegando-os dolorosamente para a bondade. Precisamos
saber se Machado merece ser estudado nas escolas e universidades, porque não é
suficiente que alguém tenha talento: é preciso que o talento seja usado para o
bem.
Um dos
aspectos mais sagrados da vida humana é o nascimento das crianças. As novas
gerações trazem uma pureza de alma que contém grandes lições. O mundo é
renovado através das crianças. Nelas, de certa forma, renascemos.
Machado de
Assis, no entanto, não sabia disso. Era um pessimista em relação à humanidade,
e sua obra precisa ser avaliada com atenção. Abordando a visão de Machado sobre
os filhos e os netos, Afrânio Coutinho escreve concordando com as constatações
de outro autor:
“…Filho,
para Machado é sempre tormento do espírito e do coração, sempre um dos fatores
de tragédia na vida doméstica, como é o caso de Escobar, filho de Bentinho, em Dom Casmurro. Filhos só dão
aborrecimentos, tristeza, cansaço, peso, como se pode depreender do conto ‘Pai
contra Mãe’.”
Afrânio
prossegue:
“E com essa
teoria a respeito de filhos era natural que não desse às crianças, na sua obra,
um lugar muito destacado. Ao contrário, o que se observa nela é uma ausência de
infância. O romancista não teve infância, quase, ou a teve triste, aperreada; a
sua vida de menino deve ter sido difícil, sem folguedos, sem os atos que
caracterizam e enchem a vida infantil, e concorre para a formação da psicologia
do homem. O menino é o pai do homem, disse ele no Brás Cubas, repetindo o conceito de sabedoria universal. É o que se
pode deduzir da sua obra, onde falta, com raras exceções, não somente a
criança, como, o que é mais grave, o espírito de infância, tão próximo do germe
da vida. Faltou a ele esse contato generoso e alegre.” [5]
O Sentimento de Amizade
Além das
crianças, um aspecto fundamental da vida é a amizade. Na amizade sincera,
escreveu Mário Quintana, “a alma muda de casa”.
Podemos
sentir a vida desde o ponto de vista de nossos amigos, e isso nos conforta
e transmite contentamento interior.
Quando somos amigos de nós próprios, somos amigos de todos os seres. Afrânio
Coutinho avaliou a atitude de Machado de Assis diante do tema:
“De
referência aos bons sentimentos da amizade e do amor, a crueldade do romancista
não perde ocasião de mostrar-se. Desmoraliza-os a cada passo, mostra-lhes a inconsequência,
e até mesmo a injustiça e a inutilidade. Para ele estes sentimentos só trazem
ao homem desgostos, injustiças, e sempre o travo amargo se sente no final de
todas as experiências amorosas. São inúmeras na galeria machadiana as traições
dos melhores amigos, até mesmo de infância, como aquele Escobar, a viúva
Tavares do conto ‘A Senhora do Galvão’, ‘A Causa Secreta’, e uma infinidade de
outros. Não há dúvida que Machado tem a preocupação de mostrar que não há
sinceridade e lealdade no sentimento da amizade, sempre movido por uma causa
secreta, geralmente o egoísmo e o amor-próprio.” [6]
O Trabalho Como Ioga
Através do
trabalho, o ser humano aprende a viver. Trabalhando ele passa a conhecer a si
mesmo, vê a importância de respeitar os outros e descobre modos de vencer na
vida por mérito próprio.
O trabalho é
uma forma de ioga. É uma ação solidária. Através dele ganhamos autocontrole,
humildade, autodisciplina e capacidade de planejar. A posição de Machado diante
desde tema é clara. Do mesmo modo como nega o valor da vida, ele é cego para o
valor do trabalho. Afrânio Coutinho escreve:
“Há pouco
trabalho para os que habitam o mundo machadiano. Não há necessidade de
trabalhar, por isto é que nos aparece nele uma humanidade enfastiada, a bocejar
de tédio e impaciência, e a procurar divertir-se para matar o tempo, à espera
de que o tempo a destrua. O trabalho nele não é uma lei natural que a todos
obriga, cada qual na sua ordem, e muito menos um meio de dignificação humana. É
esta a explicação do desarvoramento de muitas das suas personagens. Mesmo
quando se trabalha, é só como uma coisa secundária sem exercer nenhuma ou quase
nenhuma influência sobre o caráter e a vida dos mesmos.” [7]
Afrânio
Coutinho aborda a galeria de personagens criados por Machado e constata que ela
reflete a visão de mundo do escritor:
“Basta
lembrarmo-nos da sua galeria enorme, e toda ela quase de gente falhada,
viciada, defeituosa, má, tarada, ingrata, indolente, preguiçosa, indecisa,
incoerente, dissipadora, ou avarenta, frívola, maligna, perdulária, perversa,
orgulhosa, quando não rapineira ou assassina, toda uma galeria pascaliana ou
raciniana, que revela plenamente a sua maneira de colocar a vida.” [8]
O contato
interno com a alma espiritual ocorre sem necessidade de palavras. Essa conexão
com o mundo divino nos permite confiar nos outros e perceber a cada momento a
presença do que é sagrado. Machado de Assis, no entanto, é cego para estes
fatos. Escrevendo com extrema habilidade, o escritor espalha sua cegueira espiritual
e planta em seus leitores o medo do futuro.
Afrânio
Coutinho constata:
“…O ódio à
vida se associa em Machado ao medo da vida. Ele é tímido, reticente,
dubitativo, indeciso. E dentro desse padrão cria os seus personagens. É por
medo da vida que ele é assim. É o medo que o faz temer a controvérsia, o que
foi objeto de um belo ensaio de Mário Casassanta, e o faz evitá-la a seus
personagens. Mário Matos em seu excelente livro põe a sua obra sob a inspiração
do mito do medo, aquele mesmo ‘terror cósmico’ a que se referia Graça Aranha,
que no fundo não passa do medo da vida, reverso do ódio à vida e do
aborrecimento que lhe causava a humanidade. Sinais todos esses de falta de
saúde espiritual.” [9]
O que os
países do mundo lusófono precisam, no século 21 como em qualquer momento da sua
história, são pessoas capazes de compreender que a falta de ética é fonte de
sofrimento e não de felicidade. O cumprimento do dever produz um contentamento sólido:
o amor sincero é saudável e gera bem-estar. A vitória interior decorre da
confiança na lei universal da justiça.
Se Machado
de Assis ataca os sentimentos altruístas e zomba do idealismo e da generosidade
que são naturais ao ser humano, cabe investigar por que motivo ele vem
encantando desde o século 19 o mundo literário brasileiro.
Machado é
sutil: sua mensagem é transmitida com delicadeza. Ele fala para o
subconsciente. Ele oferece talentosamente a seus leitores a ilusão de que optar
pelo egoísmo e desistir de qualquer esforço para melhorar a si mesmo são
decisões sábias. Ele faz circular uma moeda bela e falsa: a ideia de que o
sacrifício nobre merece desprezo e zombaria. E insinua que isso é “realismo”.
Machado viveu
como um infeliz plantando sofrimento. Ele estava fora da realidade, e seus
livros não ajudam a viver melhor. Mas a ideia precisa ser examinada com rigor,
evitando-se a possibilidade de qualquer injustiça para com sua obra.
Machado Muito Longe de Pascal
Ao afirmar
que Machado de Assis é inimigo da ética, Afrânio Coutinho descreve um fato
fácil de constatar. Na identificação das causas desta realidade, porém, Afrânio
erra em parte. Ele exagera a influência de Pascal na visão de mundo de Machado.
[10]
É verdade
que, como destaca Afrânio, no plano da aparência Pascal e Machado têm, ambos, uma
posição negativista sobre o ser humano. Porém o negativismo de Pascal é
superficial, e o de Machado é profundo. Em Pascal a crítica ao ser humano é
tática. Ele mostra a precariedade do ser humano atual e luta por uma humanidade melhor. É um pioneiro do futuro
saudável. Em Machado a crítica aos humanos é estratégica: ele pretende
desmoralizar todo aquele que busca uma melhora interior. Embora não seja sempre
óbvia, a diferença entre Pascal e Machado é decisiva: está na intenção; e em
teosofia, como se sabe, a intenção é que faz a diferença.
Pascal faz a
crítica da hipocrisia humana para que ela seja superada. Olha os defeitos da
humanidade com a visão do místico. Mostra as misérias do eu inferior com rigor
e lucidez. Trabalha para que seus leitores, identificando e transcendendo tais
mazelas, percebam melhor a luz da alma espiritual e se libertem da ignorância.
Machado, ao contrário, descreve a hipocrisia e a falsidade como se fossem
inerentes à vida humana e debocha dos que lutam pela autopurificação, pela
sabedoria, e pela eliminação das causas do sofrimento.
Machado,
leitor declarado de Pascal, leu o filósofo francês à sua maneira e tirou dele
apenas o que lhe interessava.
Pascal foi
honesto e propôs a honestidade. Machado defende uma visão de mundo
diametralmente oposta, e afirma dogmaticamente, através de ironias e
caricaturas, que a desonestidade é inevitável e toda religiosidade uma fraude.
Pascal foi
um livre-pensador vigoroso. Combateu a hipocrisia dos jesuítas, foi perseguido
pelo Vaticano e permaneceu em sintonia sempre com a bondade humana essencial. O
filósofo francês foi um amigo da sabedoria eterna. Vivenciou os aspectos mais
elevados do cristianismo místico. Machado, por sua vez, atacou a ideia básica
de que o ser humano tem alma e deve evoluir pelo caminho do bem.
Buarque de Holanda Ignora o
Essencial
Em 1944,
Sérgio Buarque de Holanda publicou um artigo sobre o livro em que Afrânio
Coutinho aborda a filosofia de Machado. [11]
Escrevendo
em plena segunda guerra mundial, Buarque não se preocupa com a questão da
responsabilidade moral do ser humano. Prefere criticar sutilmente Afrânio,
alegando que exagerou a importância do filósofo Pascal nas obras de Machado.
Buarque faz
comentários sem tomar posição clara sobre coisa alguma, recusando-se a abordar
o tema básico do desafio ético. Mesmo sem usar de franqueza, Buarque tenta
desautorizar a exigência de honestidade
que foi bem formulada por Afrânio Coutinho. Ainda assim, admite a postura
cética de Machado diante do mundo da alma. Buarque de Holanda afirma que o
“amoralismo” de Machado tem raízes na sua “insensibilidade fundamental” diante
do mundo divino [12]. Ou seja: para
Buarque, a falta de respeito de Machado pelos sentimentos generosos da alma
humana está vinculada à sua militância radical contra toda e qualquer ideia de
bondade.
De fato, é
fácil verificar nos livros de Machado que ele procura rir dos gestos
humanitários e da sabedoria divina.
A Abordagem de Reale
O respeitado
pensador Miguel Reale escreveu o livro “A Filosofia na Obra de Machado de
Assis”, que inclui uma Antologia
Filosófica do escritor. [13]
O enfoque de
Reale é lúcido, correto e bem fundamentado no que tange a fatos. Porém, sofre
da mesma incapacidade demonstrada por outros autores de perceber que Machado
não raciocina filosoficamente, e, ao invés disso, ataca a filosofia de modo
definitivo.
Machado
prejudica a seus leitores ao convidá-los a aceitar a armadilha da ilusão
egoísta. O escritor também condena a sua própria obra à irrelevância de longo
prazo, porque, cedo ou tarde, a hipocrisia será identificada por todos como
causa de sofrimento e a ética será reconhecida como chave-mestra para a
felicidade.
Miguel Reale
comete a ingenuidade de afirmar que Machado tem “afinidades essenciais com Schopenhauer”,
para em seguida admitir que “leva em troça a metafísica schopenhauriana”. [14]
A afinidade
é falsa: ninguém ri de algo com que sente afinidade.
O mesmo
ocorre em relação a outros filósofos de quem se diz que influenciaram Machado.
Quando o escritor aborda as ideias de Montaigne, Pascal, Renan ou Schopenhauer,
ele o faz para em seguida debochar das suas ideias, assim como também procura
desmoralizar o que há de bom no cristianismo, no espiritismo e em qualquer
forma de busca da sabedoria.
Miguel Reale
evita por todos os meios criticar Machado ou ver defeitos em sua obra. Lava as
mãos, humildemente, em relação a questões de fundo. Fica restrito ao papel de
compilador, recusando tomar posições. Mesmo assim, admite que Machado de Assis
construiu um mundo artificial no qual “a vida em si mesma não obedece a
qualquer diretriz ética de perfectibilidade”.[15]
Isto é, em
Machado a vida não evolui, ou não evolui para melhor.
Reale admite
na mesma frase que para Machado a existência é “um processo de dar e receber
que se desenvolve e se contrabalança à margem de distinções sempre penosas
entre o bem e o mal, entre a luz ilusória da virtude ou a meia sombra do
pecado”. [16]
E isso
significa que Reale admite o fato básico: Machado nega a ética, a ciência que
nos permite optar entre o certo e o errado. Ele considera a virtude uma ilusão.
É, portanto, um adversário da filosofia, mas disfarça este fato com uma técnica
literária que serve para fazer sucesso
através da ambiguidade.
Múcio Teixeira e a Abolição da
Escravatura
O poeta
Múcio Teixeira foi pioneiro do pensamento teosófico no Brasil e amigo pessoal do
imperador Dom Pedro II. Contemporâneo de Machado, Múcio deixou seu testemunho
sobre a atitude do escritor diante das questões sociais e humanas do Brasil. O
poeta escreveu sobre Machado:
“Assistiu
indiferente e silencioso ao prolongado e tremendo espetáculo da escravidão da
sua raça, enquanto os brancos como Caldre e Fião, Castro Alves, Joaquim Serra,
Joaquim Nabuco, Dantas, João Alfredo, Rui Barbosa, a princesa Isabel - a
Redentora -, e eu, o mais obscuro de todos, nos batíamos com ardor, até que
chegou o grande dia da abolição. Só o sr. Machado de Assis não teve súplica,
nem um protesto, a maldição da ode ou o florete da sátira para os algozes dos seus
semelhantes!...” [17]
No entanto,
Machado teve a habilidade necessária para aderir à abolição da escravatura tão
logo a meta foi alcançada pelos abolicionistas.
Especialista
na arte de agradar o poder e de circular entre pessoas influentes, Machado
criou a Academia Brasileira de Letras, uma instituição de elite que é vista por
muitos como fútil e diletante. Múcio Teixeira a descreveu como uma “inqualificável
confraria do elogio mútuo”.[18]
O Nascer da Sinceridade
Qual a
importância de examinar a obra de Machado de Assis desde o ponto de vista do
respeito pela verdade, pela bondade e pela sabedoria?
A tarefa vai
além do mundo literário.
Para que
Brasil e Portugal se ergam na direção do seu potencial maior, não basta lutar
por esta ou aquela tarefa econômica e política: é preciso examinar o grau de
ética que existe no clima cultural de cada país.
As metas
socioeconômicas nobres só poderão ser alcançadas caso a atmosfera psíquica do país seja saudável.
Se
consideramos como grande escritor algum
romancista que usa seus talentos para ensinar o ódio à vida e o desprezo pela bondade,
o país em que vivemos não terá grande chance de possuir líderes políticos
honestos, empresários que priorizem a justiça social e eleitores que exijam ética
dos seus representantes.
Desde o
século vinte, brasileiros e portugueses vêm lutando pela honestidade na
política, e isso é bom. Para que a meta seja alcançada, os cidadãos devem tomar
medidas práticas no sentido de que haja ética também na literatura, no cinema,
na televisão, em jornais e revistas. E cada cidadão deve viver com profunda sinceridade
em sua existência individual, irradiando-a para a sociedade em que vive.
Na África,
na Europa, no Brasil, os habitantes do mundo lusófono já podem ir além da
pseudofilosofia do relativismo
lavador-de-mãos, bem denunciado por Farias Brito em 1916:
“…Ainda se
encontram em nosso país indivíduos, homens de letras, jornalistas, políticos, que,
a todo momento e a todo propósito, continuam a repetir ingenuamente a velha frase:
-‘Só há um princípio absoluto: é que tudo é relativo’.- Isto como se se
tratasse da mais alta das verdades.” [19]
O
relativismo pseudofilosófico é usado por indivíduos desinformados como álibi
para agir de modo irresponsável. Esta ilusão provoca índices crescentes de
criminalidade, inclusive nos meios políticos, e não leva a qualquer cenário
correto.
Muito melhor
do que fugir da verdade ao lado de Machado de Assis e outros desinformados é
valorizar a obra e a ética de pensadores sinceros como Antônio Vieira, como Baruch
Spinoza, judeu holandês de origem portuguesa, ou Diogo Antônio Feijó, um grande
brasileiro do século 19. A obra “Cadernos de Filosofia”, de Feijó, foi bem
editada por Miguel Reale. Ali, abordando o dever ético de todo ser humano,
Feijó escreve:
“Os deveres de beneficência não podem ser
outros que os que temos para conosco, a saber: amar e estimar os outros como a
nós e, em consequência, socorrer, ajudar, cooperar para que sejam virtuosos e
felizes.” [20]
Este é o
caminho do futuro. A “maldade” constitui uma forma externa da ignorância, e sua
existência é provisória. A sabedoria eterna pertence a todos, e brota
inevitavelmente da alma.
O verdadeiro
conhecimento implica um sentimento de responsabilidade ética. Ele transcende e
atravessa a dor e a alegria, a vitória e a derrota, a satisfação pessoal e a
felicidade no plano emocional. A percepção da verdade não é sempre agradável,
mas produz um bem-estar interior que não oscila.
NOTAS:
[1] “A Filosofia de Machado de Assis”,
Afrânio Coutinho, Livraria São José, Rio de Janeiro, 1959, 191 pp., ver pp.
24-25.
[2] “A Filosofia de Machado de Assis”,
Afrânio Coutinho, Livraria São José, Rio de Janeiro, 1959, 191 pp., ver p. 107.
[3] “A Filosofia de Machado de Assis”,
Afrânio Coutinho, p. 114.
[4] “A Filosofia de Machado de Assis”,
Afrânio Coutinho, p. 115.
[5] “A Filosofia de Machado de Assis”,
Afrânio Coutinho, Livraria São José, Rio de Janeiro, 1959, 191 pp., ver pp. 115
– 116.
[6] “A Filosofia de Machado de Assis”,
p. 108.
[7] “A Filosofia de Machado de Assis”,
p. 117.
[8] “A Filosofia de Machado de Assis”,
p. 107.
[9] “A Filosofia de Machado de Assis”,
p. 118
[10] “A Filosofia de Machado de Assis”,
Afrânio Coutinho, Livraria São José, Rio de Janeiro, 1959, 191 pp. Ver pp.
62-79.
[11] Artigo “A Filosofia de Machado de
Assis”, no volume “Cobra de Vidro”, Sérgio Buarque de Holanda, Livraria Martins
Editora, 1944, 121 pp., ver pp. 44-51.
[12] “Cobra de Vidro”, Sérgio Buarque de
Holanda, ver p. 48.
[13] “A Filosofia na Obra de Machado de
Assis & Antologia Filosófica de Machado de Assis”, Miguel Reale, Livraria
Pioneira Editora, São Paulo, 147 pp., 1982.
[14] “A Filosofia na Obra de Machado de
Assis & Antologia Filosófica de Machado de Assis”, Miguel Reale, Livraria
Pioneira Editora, ver pp. 12 e 13.
[15] “A Filosofia na Obra de Machado de
Assis & Antologia Filosófica de Machado de Assis”, Miguel Reale, ver p.12.
[16] “A Filosofia na Obra de Machado de
Assis & Antologia Filosófica de Machado de Assis”, Miguel Reale, mesma
página 12.
[17] “Mucio Teixeira”, Álvaro Teixeira,
1923, Imprensa Nacional, RJ, 739 pp., p. 380.
[18] “Mucio Teixeira”, Álvaro Teixeira,
1923, p. 410.
[19] “Inéditos e Dispersos - Notas e
Variações sobre Assuntos Diversos”, de Farias Brito, compilação de Carlos Lopes
de Mattos, Editorial Grijalbo Ltda., São Paulo, 1966, 550 pp., ver p. 407.
[20] “Cadernos de Filosofia”, Diogo
Antônio Feijó, Introdução e Notas de Miguel Reale, Editorial Grijalbo Ltda.,
SP, 172 pp., 1967. Ver p. 154. O trecho citado faz parte de um capítulo do
livro de Feijó que está publicado em nossos websites associados sob o título de
“O Dever de Agir com Altruísmo”.
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Para conhecer um
diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500
anos, leia o livro “Conversas na
Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 28 capítulos e
170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de
Blumenau, Edifurb.
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