Algumas Tarefas Exigem
Séculos Para Serem Realizadas
Carlos Cardoso Aveline
Rousseau e o clássico do judaísmo
“Duties of the Heart” (“Os Deveres do Coração”)
Jean-Jacques
Rousseau, o angustiado pensador que inconscientemente ajudou a preparar a
revolução francesa, proclamou uma ideia que continua popular na primeira metade
do século 21.
Muitos
pensam ainda hoje que ao condenar a sociedade atual como um todo, ou ao
denunciar as elites que estão no poder, podemos alcançar a felicidade e
facilmente libertaremos nossos povos de todo sofrimento.
Em
seu livro “História da Magia”, o cabalista Eliphas Levi (1810-1875) não adota
uma postura amável, nem generosa, em relação a este sonho de Rousseau.
“Havia
no mundo um homem profundamente indignado por sentir-se covarde e vicioso”, diz
Levi em linguagem pouco diplomática, “e que considerava como culpada pela sua
vergonha a sociedade inteira. Este homem era o amante infeliz da natureza, e a
natureza, em sua cólera, o armara com a eloquência de um flagelo.”
Eliphas
Levi prossegue:
“Ele
ousou defender, contra a ciência, a causa da ignorância; contra a civilização, a
causa da barbárie; e defendeu todas as baixezas, contra as camadas superiores
da sociedade. O povo instintivamente rejeitou este insensato, mas os grandes o
acolheram, as mulheres transformaram-no em herói. Ele obteve tanto sucesso que
seu ódio contra a humanidade aumentou por isso e ele acabou matando-se de
cólera e de desgosto. Depois de sua morte, o mundo foi abalado pelas tentativas
de realizar o sonho de J. Jaques Rousseau (…).” [1]
Não
há motivo para adotar uma atitude arrogante e condenar Rousseau, no plano
pessoal, pelos seus erros. Em termos morais, Rousseau foi um grande homem. Seu
amor incondicional à verdade, sua franqueza e sua inteligência espiritual
trazem lições válidas em qualquer tempo e lugar. Suas falhas são as falhas dos seres
humanos, e Eliphas Levi cometeu erros semelhantes.
Tal
como os partidos políticos de esquerda desde os dias de Karl Marx, J.-J. Rousseau
foi brilhante ao mostrar os fracassos da civilização atual. No entanto, teve a
tendência de ser pior do que inútil em suas tentativas de resolver os problemas
que apontava, e o mesmo ocorreu com o marxismo desde o século 19.
Na
Rússia, Leo Tolstoi e outros pensadores foram influenciados pelos sonhos de
Rousseau, mas Dostoievsky teve mais discernimento e desmascarou a falta de bom
senso dos revolucionários no romance intitulado “Os Demônios”.
Muitas
almas nobres pensaram que ao desprezar uma ordem social imperfeita o cidadão
produz felicidade. Os pioneiros da ilusão contemporânea transferiram
subconscientemente a velha e imaginária “inocência paradisíaca” dos povos
indígenas da América, projetando-a sobre os camponeses e os operários do século
19.
Pensavam
que haviam feito uma descoberta extraordinária: as pessoas pobres e os
trabalhadores das fábricas tinham todos almas puras, se não fossem santos, enquanto
nas “classes dominantes” reinava o egoísmo. Um excesso de cobiça havia surgido
entre os humanos apenas por causa de uma estrutura econômica e política errada.
E eles sentiam que qualquer um que rejeitasse as suas ideias grandiosas deveria
ser severamente denunciado e condenado.
Não
havia necessidade de que os seres humanos reformassem a si mesmos, moralmente,
para que merecessem viver em uma sociedade moral e justa.
Tudo
que as pessoas precisavam fazer era projetar seus medos e sua raiva na direção
das “elites” e da “classe dominante”, e tentar vencer e eliminar os seus adversários.
Não havia consenso, naturalmente, sobre como
fazer isso. Mas todos queriam mudar a
sociedade, e muito poucos desejavam mudar
a si mesmos.
Marx, Lênin e
Gandhi
A
ideia infantil de que basta derrotar as elites para ser feliz cumpriu papel
central na preparação de uma grande experiência utópica e um desastre social
duradouro: a Revolução Russa de 1917.
Desde
aquele ano, a ideia rousseauniana segundo a qual os seres humanos são bons mas vivem em sociedades injustas
espalhou-se mais rapidamente. Os resultados práticos desta utopia disfuncional
- tanto nas suas versões de esquerda como de direita - foram corretamente
descritos, de modo quase profético, por George Orwell.
As
ideologias “progressistas” e “reacionárias” - incluindo nazismo e stalinismo -
compartilham o mesmo amor histérico pela violência. Elas adotam a ilusão de
tratar de derrotar ou eliminar seus adversários, ao invés de estimular o
automelhoramento dos cidadãos.
Mesmo
um líder grande em sabedoria como Mahatma Gandhi foi prejudicado em parte pela
falsa noção de que as almas dos seres humanos já estão suficientemente boas, e
não necessitam procurar, em primeiro lugar, a sabedoria. A principal tarefa é
“ver-nos livres daqueles que hoje se opõem a nós”.
O
legado político de Gandhi é um exemplo valioso e ilustra corretamente a
situação. Foi muito mais fácil para a Índia libertar-se da dominação colonial
inglesa do que evitar a pobreza, prevenir a guerra, ou derrotar a corrupção e a
violência. Os líderes da Independência tampouco impediram a divisão da nação em
três países - Paquistão, Bangladesh e Índia. É significativo o fato de que duas
destas novas nações - o Paquistão e a Índia - agora possuem armas nucleares ao
mesmo tempo que uma vasta parcela da sua população vive em extrema pobreza.[2]
Em
todos os continentes ainda existe o hábito doentio de odiar e buscar a derrota
dos adversários, como se eles fossem a principal causa da infelicidade
coletiva. Esta falta de bom senso continua a estimular estreiteza mental,
violência verbal, fanatismo, terrorismo e conflitos militares.
Nenhuma
pessoa deve ser responsabilizada pela autoilusão coletiva. Meras acusações não
ajudam a derrotar a ignorância.
Cada
um deve julgar a si mesmo antes de julgar os outros.
Aqueles
que têm discernimento tratam de conhecer a si próprios e evitam a tentação
sadomasoquista de pensar que a felicidade está em “derrotar nossos
adversários”. É uma concepção infantil e irresponsável ver a nós próprios e a
nossos amigos como os legítimos proprietários da “inocência primordial”.
Durante
a década de 1940, Paul Carton fez um exame detalhado das ilusões de Rousseau.
Condenando a Sociedade
pelos Nossos Erros
Carton
abre seu livro “O Falso Naturismo de Jean-Jacques Rousseau” [3] com 50 páginas dedicadas aos
aspectos positivos da filosofia do pensador francês. E eles são fundamentais:
sua crítica às civilizações materialistas é um bom ponto de partida.
Em
seguida, Carton examina o fato de que o ponto de vista de Rousseau está baseado
no mito
do
bom selvagem, “le bon sauvage”, o homem que vive na natureza e obedece às suas
Leis, e que segundo Rousseau está livre de egoísmo.
O
ser humano era bom e era feliz até que surgiu a civilização, diz Rousseau. As
formas avançadas de sociedade fizeram com que ele passasse a ser ao mesmo tempo
um egoísta e um sofredor. O homem é naturalmente bom, mas o Conhecimento e a
Civilização o forçaram a tornar-se egocêntrico. Não é necessário que as almas
humanas lutem consigo mesmas para encontrar a sabedoria imortal, para evitar
erros e libertar-se da ignorância. Uma vida natural nos oferece a perfeição sem
esforço. Tudo o que precisamos fazer é, portanto, libertar-nos das estruturas
sociais injustas, que produzem a cegueira moral e as inclinações e tendências
negativas. [4]
Quando
esta visão ingênua do ser humano e da sociedade se tornou suficientemente
popular, o próximo passo foi tratar de promover algum tipo de mudança social
radical, como meio de “libertar as pessoas boas e autênticas do povo,
derrotando uma elite irresponsável e eliminando as estruturas coletivas
injustas”.
Foi
assim que a revolução francesa de 1789 começou a “promover justiça” através da
violência, com o objetivo de restabelecer os “sentimentos naturalmente bondosos”
dos cidadãos.
Nunca
houve uma chance de êxito. A revolução culminou num banho de sangue
indescritível, durante o qual a “mudança social” derrotou completamente a si
mesma. Naturalmente a maior parte dos sonhadores divorciados da realidade não
aprendeu a lição, e muitas “experiências revolucionárias” foram realizadas a
seguir, com resultados que é fácil avaliar.
Tolstoi
e outras boas almas transformaram o mito do “bom selvagem” no mito do “bom
operário e camponês”. Pensava-se que os trabalhadores do campo e da cidade
tomariam o poder político, alcançariam a liberdade e construiriam o Paraíso
socialista na Terra. Nasceu em seguida o mito do “partido operário e camponês”,
e começaram a espalhar-se o ódio e a violência ao redor do mundo, em nome da
felicidade futura de todos.
Atuando
em outro nível, pensadores como Jiddu Krishnamurti adaptaram as ilusões de
Rousseau transformando-as em um individualismo sonhador e irresponsável, no
qual as pessoas pensam que podem “libertar-se de todo condicionamento” - isto
é, da lei do carma e das obrigações éticas - e deste modo alcançar uma
“libertação” inteiramente imaginária.
No
século 21, a infeliz popularização do uso de drogas fortalece a ilusão do
“descondicionamento”, cujo resultado é um abandono do bom senso e uma negação
voluntária dos fatos objetivos e das condições cármicas reais em que se deve
atuar.
A
verdade é que cada indivíduo é fundamentalmente autorresponsável. Ele deve
“erguer sua cruz” - o seu inevitável carma acumulado por ele mesmo - e avançar pelo caminho da sabedoria
universal. A sabedoria consiste em compreender o funcionamento da Lei da
Justiça e atuar em harmonia com ela.
Limitar-se
a atacar as elites e condenar a sociedade como um todo são formas de fugir da
responsabilidade que cabe a cada um. Através da fuga emocional as pessoas
deixam de lado o poder de transformar as suas vidas e de mudar a sociedade pelo
processo eficiente, que consiste em plantar bom carma.
Quando
alguém projeta psicologicamente “o mal” sobre seus adversários, o resultado é a
expansão da ignorância e do sofrimento, principalmente os seus próprios.
O
sadomasoquismo é uma doença socialmente organizada, mas tem cura. A enfermidade
da alma que faz com que alguém sinta profunda satisfação em derrotar e humilhar
adversários, ou em exaltar e exagerar o seu próprio sofrimento, pode ser curada
pela influência combinada de dois fatores: o autoconhecimento e a ação
solidária.
A
ajuda mútua é a lei da natureza, e é necessário ter discernimento para agir à
altura dela.
A Bondade
Natural em Nós
Os
seres humanos têm em suas almas uma fonte natural de bondade e são
espontaneamente bons, na medida em que permanecem leais a ela.
No
entanto, escutar a voz da consciência não é fácil, porque as percepções humanas
são uma combinação precária de instintos animais e potencialidade divina. A
evolução espiritual inclui uma luta oculta feroz entre os níveis superiores e
inferiores da alma.
Ideias
ilusórias dominam amplamente no estágio atual da evolução humana. É difícil
escutar a voz do espírito, e ainda mais difícil agir de acordo com ela no mundo
externo.
Há,
é claro, lições sagradas a aprender através do contato estreito com a Natureza,
tal como aconteceu na antiguidade. Estas lições têm uma importância decisiva
para o futuro da humanidade. O artificialismo deve ser deixado de lado.
Recuperar um contato intenso com o ambiente natural é uma tarefa básica. No
entanto, não faz sentido pensar que as sociedades antigas e que os homens
primitivos eram perfeitos, ou que todos os problemas humanos desapareceriam se
“voltássemos para a Natureza” ou “nos libertássemos das elites atuais”.
A
verdadeira Natureza com que devemos estar conectados não é física. Ela deve ser
encontrada sobretudo em nossas almas. O paraíso é fundamentalmente interior.
Sonhando
de olhos abertos, Rousseau idealizou unilateralmente a noção de “bom selvagem”
e viu nele o modelo ideal da humanidade civilizada. E Rousseau estava
parcialmente certo. Ele mostrou que os povos indígenas tinham imenso valor
humano e deveriam ser respeitados pelas nações ocidentais. No entanto, sua
ideia de que as nações indígenas são todas boas, e o conhecimento moderno todo
mau, é falsa.
Os
líderes da Revolução Norte-Americana de 1776 não caíram na armadilha
rousseauniana, e o resultado do realismo adotado por eles foi uma mudança
social vitoriosa e não-dogmática. Na década de 1890 e começo do século 20, Theodor
Herzl combinou a tradição utópica com o necessário realismo e abriu o caminho
para a fundação do moderno Estado de Israel, cujo progresso e consolidação têm
sido estáveis desde 1948.
A Origem de uma Ingenuidade
A idealização unilateral dos povos indígenas do “Novo Mundo” não começou com Rousseau, no século 18. No final do século 15, os descobridores das Américas esperavam confrontar o Paraíso na Terra. Eles pensavam que poderiam encontrar exemplos vivos da humanidade de antes da “Queda” de Adão e Eva. Esta possibilidade despertava neles tanto medo como esperança.
A Origem de uma Ingenuidade
A idealização unilateral dos povos indígenas do “Novo Mundo” não começou com Rousseau, no século 18. No final do século 15, os descobridores das Américas esperavam confrontar o Paraíso na Terra. Eles pensavam que poderiam encontrar exemplos vivos da humanidade de antes da “Queda” de Adão e Eva. Esta possibilidade despertava neles tanto medo como esperança.
A
ideia do “bom selvagem” está presente no informe oficial de Pero Vaz de Caminha
sobre a descoberta do Brasil em abril de 1500. O Brasil era um paraíso. A mesma
ideia está de certo modo presente em uma descrição menos conhecida da
descoberta do país, a “Relação do Piloto Anônimo”. Pouco depois da conquista
colonial do futuro Brasil, as narrativas idílicas sobre a vida dos povos
indígenas da América do Sul passaram a influenciar o mundo cultural europeu. [5]
Em
seu ensaio “Dos Canibais”, o filósofo francês Michel de Montaigne escreveu
sobre a vida das tribos no Brasil:
“Essas
nações parecem (…) bárbaras simplesmente porque desenvolveram pouco ainda da
arte e da invenção humanos, e estão muito próximas da sua ingenuidade
original.”
“As
leis da natureza”, diz Montaigne, “ainda governam” estas sociedades:
“Lamento
que Licurgo e Platão não as tivessem conhecido, pois creio que o que nós vemos por
experiência nessas nações ultrapassa, não apenas todas as pinturas com que a
poesia embelezou a idade de ouro da humanidade e tudo quanto se possa imaginar
para tornar feliz a condição humana, mas ultrapassa ainda a concepção e o
próprio objetivo da filosofia. Não imaginaram eles ingenuidade tão pura e
simples como a que nós vemos nesse país; nem acreditaram que uma sociedade se
pudesse manter com tão pouco artifício e tão pouca arte humana. É um povo, diria
eu a Platão, em que não existe qualquer tipo de tráfico, de conhecimento de
letras, de ciência de números, nome de magistrado ou de outra dignidade que
indique superioridade política, servidão, riqueza ou pobreza, contratos,
sucessões, partilhas. De ocupações, apenas as agradáveis; de relações de
parentesco, só as comuns. Nem há vestimentas, nem agricultura, nem metais. Não
bebem vinho. Não cultivam cereais. A respeito da mentira, da traição, da
dissimulação, da avareza, da inveja, da maledicência, do perdão, desconhecem até
as palavras.”
A
ideia era fascinante.
Em
sintonia com este sonho, em 1610-1611 William Shakespeare faz com que o seu
personagem Gonzalo diga, na obra “A Tempestade”:
(Ato
II, Cena 1, trecho adaptado à linguagem de hoje)
“Em
meu reino eu faria tudo ao contrário do modo usual. Não admitiria espécie
alguma de comércio. De magistrados, nada, nem mesmo o nome. O estudo seria
completamente ignorado. Não haveria ricos ou pobres, ou servos, ou criados; nem
contratos, nem leis sobre heranças. Não existiriam questões sobre divisão de
terras, cuidados da lavoura, plantação de vinhedos, nada, nada. Nenhum uso,
também, de óleo e de vinho, trigo e metal. Ocupação, nenhuma. Todos os homens,
ociosos, todos. E as mulheres, também; mas inocentes e puras. Não haveria um reinado.
(…) Todas as coisas seriam partilhadas em comum e produzidas pela natureza. Não
haveria traição, nem crimes ou armas. A natureza produziria generosamente tudo
o que fosse necessário para alimentar o meu povo inocente. (…) Meu governo
seria melhor que o governo da Idade de Ouro.” [6]
O
sonho corresponde à vida sem esforços de um Paraíso na Terra. Trata-se de algo
bem diferente da “Utopia” de Thomas More, que foi publicada em 1516 e está
amplamente baseada nos escritos de Platão, da Grécia antiga.
Sua
atmosfera encantadora é semelhante ao ambiente do Devachan, a vida individual de felicidade subjetiva que ocorre
entre duas encarnações do ser humano. A substância deste mito se refere
portanto à lei da reencarnação, um conceito superficialmente rejeitado pelos
cristãos, mas vivo no judaísmo e nas religiões e filosofias orientais.
A
ideia de um paraíso onde não é necessário fazer esforço algum tem pouca relação
com as realidades sociais e históricas. Esta condição elevada é sutil. Corresponde
à Terra Sem Males dos índios Tupi no
Brasil, um lugar mítico onde o bem-estar é ilimitado; uma metáfora, também,
para o estágio mais elevado da consciência-de-sonho entre duas encarnações.
A
História tem mostrado que não é sábio tratar de trazer este tipo de felicidade
da alma à força para a vida material das nações.
Nossa
memória intuitiva do Devachan nos faz ter uma aspiração saudável pela
fraternidade universal e nos inspira constantemente a buscar a construção de
uma sociedade melhor. No entanto, neste esforço a prudência, o bom senso e o
discernimento são ferramentas indispensáveis, que não podem ser deixadas de
lado se quisermos obter progresso real.
Assim
como o movimento esotérico como um todo tem estado em grande parte preso a
superficialidades e não possui um sentido profundo de orientação e propósito,
do mesmo modo a esquerda política é prisioneira de uma atitude infantil. Ela
protesta contra qualquer situação incômoda, enquanto se recusa a agir de modo
responsável e criativo, como todo indivíduo adulto precisa fazer.
É
naturalmente tão correto como necessário questionar a ignorância organizada.
O
uso prático do conhecimento
científico na sociedade moderna tem chamado atenção pela ausência
extraordinária de ética, prudência e sabedoria. As ciências humanas sofrem da
mesma doença. O conhecimento e os recursos materiais são usados na busca de
falsas prioridades. As comunidades são dominadas pela propaganda política, pela
campanha eleitoral, pelo “entretenimento”, por atividades militares e pela busca
de lucro ilegítimo.
No
entanto, estes são apenas os sintomas. Eles surgem do estado da alma, e o
expressam. A propaganda e a luta pelo poder político de curto prazo não podem
diminuir o sofrimento do mundo. A experiência direta da sabedoria e da justiça
é indispensável. O estado da alma deve ser melhorado, para que a sociedade obtenha
paz e sossego.
Rousseau
usou a sua exagerada idealização do bom selvagem como um meio de denunciar a
hipocrisia e a injustiça do seu tempo. Depois dele os movimentos de esquerda
começaram a adorar a imagem santificada de trabalhadores e cidadãos, como se
eles fossem, agora mesmo, inteiramente bons e suficientemente sábios. “Tudo o
que precisamos”, pensam os ideólogos de esquerda, “é destruir esta ou aquela
forma de sociedade, porque ela é decepcionante para nós.”
Porém
o pensamento negativo não constrói coisa alguma.
É
necessário abandonar a ilusão de que “os homens já são capazes de viver em
harmonia e basta fazer esta ou aquela reforma política”. O ser humano é fundamentalmente
bom - na medida em que ele seguir sua alma e sua consciência. No entanto ele
ainda é amplamente ignorante. O século 21 é o momento adequado para compreender
que só uma sociedade de cidadãos justos pode ser justa. A época é propícia para
constatar que cabe ter cidadãos honestos, se quisermos que haja líderes
políticos honestos e chefes de estado sinceros.
Os Deveres do
Coração
Todos
participamos da mesma substância essencial do universo. Devemos aprender uns
com os outros, e para isso, uma simplicidade de coração é indispensável.
As
ações, e não apenas as palavras, multiplicam a honestidade. Cada cidadão tem a
possibilidade de renovar a espécie humana. O que você desejar que os outros
façam, faça-o você mesmo em primeiro lugar, e o bom exemplo se espalhará no
devido tempo.
Um
livro clássico da ética judaica, “Os Deveres do Coração”, afirma:
“Devemos
manter com nós mesmos um registro do nosso envolvimento com outras pessoas no
que diz respeito ao bem-estar geral - isto é, o plantio e a colheita, a compra
e a venda, e outras maneiras pelas quais as pessoas ajudam umas às outras a
criar uma sociedade saudável, e devemos considerar que é nossa obrigação
desejar para os outros o mesmo que desejamos para nós, nestas questões, e não
querer que eles sofram o que não queremos nós mesmos sofrer, e fazer tudo o que
pudermos para defendê-los do que poderia prejudicá-los, porque está escrito: ‘Ame
o seu próximo como a si mesmo’ (Vayikra
19:18).”
O
autor de “Os Deveres do Coração”, não tinha ilusões de curto prazo.
O
rabino Bachya ibn Paquda sabia que este caminho é inicialmente percorrido pelos
Poucos, e não pelos muitos. Depois de mencionar os obstáculos criados pelo
egoísmo e pela ignorância, Paquda escreveu:
“Portanto,
meu irmão, você deve fazer um esforço para obter colegas leais e amigos
verdadeiros, que irão ajudá-lo em seus esforços religiosos e seculares, na
medida em que você seja franco e verdadeiro para com eles. Eles devem ser tão
importantes para você quanto a sua própria alma, quando você encontrar entre
eles os que são dignos deste sentimento.” [7]
É
sendo de fato sábio, e não fazendo apenas propaganda, que alguém muda o mundo.
Para
melhorar uma nação, cabe começar pelas almas das pessoas. O nascimento de uma sociedade
justa ocorre primeiro na consciência e no caráter do cidadão, para depois
tornar-se visível como processo sociológico. A árvore de grande porte sai de
dentro da pequena semente - e não surge de fora para dentro. Cada alma humana pode
conter e irradiar uma pequena amostra da sociedade futura, que no tempo certo irá
crescer e prosperar.
NOTAS:
[1] “História da
Magia”, Eliphas Levi, Ed. Pensamento, SP, 409 pp., p. 330. A tradução do trecho
foi revisada levando em conta a edição da mesma obra em inglês e francês. Ver a
página 441 na edição francesa de 1860.
[2] Após o
assassinato de Gandhi e a guerra entre Índia e Paquistão, o lado positivo do
legado de Gandhi prosseguiu com Vinoba Bhave. Veja o artigo “Vinoba e a Vontade de Construir”.
[3] “Le Faux Naturisme de Jean-Jacques Rousseau”, Paul
Carton, deuxième édition, 1951, 213 páginas, Imp. Bussière, à Saint-Amand
(Cher), França. (Primeira edição
1944.)
[4] Veja as páginas 53 a 86 em “Le Faux Naturisme de
Jean-Jacques Rousseau”, Paul Carton, 1951.
[5] “O Índio
Brasileiro e a Revolução Francesa”, subtítulo “as origens brasileiras da theoria
da bondade natural”, Affonso Arinos de Mello Franco, Livraria José Olympio Editora,
Rio de Janeiro, 1937, 331 pp., ver pp. 34-35.
[6] Esta versão do
trecho leva em conta a versão do tradutor Carlos Alberto Nunes em “A
Tempestade”, volume 01 das obras completas de Shakespeare, Edições Melhoramentos,
SP, primeira edição, 1954; segunda edição, 212 páginas, ver pp. 68-69. Levo em
consideração a versão original em inglês clássico e uma das versões em inglês
moderno disponíveis online. Para examinar a
versão original, consulte por exemplo o volume “The Complete Works of William
Shakespeare”, The Golden Library, Magpie Books, London, UK, 1992, 1142 pp., ver
p. 8.
[7] “Duties of the Heart”, de R.
Bachya ben Joseph ibn Paquda, dois volumes, Feldheim Publishers, Jerusalem-New
York, impresso em Israel, copyright 1996, ver volume dois, p. 745. A
citação anterior está na p. 743. Há uma edição brasileira da obra, publicada
pela Ed. Sêfer, de São Paulo.
000
O artigo
acima foi publicado nos websites associados dia 12 de agosto de 2019. Ele
também está disponível em inglês em nossos websites e no blog teosófico em The Times of Israel.
000
Veja os
artigos “Cada Cidadão é um Imperador, na Democracia”, “Uma Alavanca Para Mover o Mundo”, “O Poder de Mudar o Mundo”, e “Esquerda, Ética e Fraternidade”.
000