Carlos Cardoso Aveline
Sigmund
Freud e a capa do livro de McGrath (com o nome errado na edição brasileira)
Esquecido
por muitos, o livro de 1988 “Política e Histeria”, de William J. McGrath, é uma
ferramenta valiosa caso você queira evitar guerras planetárias e impedir formas
desnecessárias de destruição. [1]
Atualmente
difícil de obter, o livro ajuda-nos a compreender as crises políticas dos
tempos atuais e uma doença grave: a doença do desprezo pelas decisões
democráticas e pelas instituições públicas.
A
enfermidade crônica está presente em muitos países que são formalmente democráticos,
lado a lado com a epidemia dos ataques pessoais contra adversários políticos.
Descrevendo
a origem da psicanálise durante os anos em que Sigmund Freud fez estudos e
pesquisas sobre histeria, o livro de McGrath examina e evolução dos enfoques
médicos e psicológicos da histeria e a relação entre esta desordem e a história
humana, inclusive na vida política e institucional.
A
enfermidade parece existir há longas eras.
A
histeria coletiva faz com que na opinião pública o raciocínio seja substituído
pelos slogans e pela mera propaganda. Tão logo isso acontece, surge o processo
do ódio organizado. Os bodes expiatórios, políticos ou religiosos, são
necessários para que o sentimento coletivo de frustração seja projetado sobre
algum objeto externo, o que produzirá uma falsa sensação de alívio.
Embora
o hábito de jogar as culpas nos outros - que domina a política de hoje - seja
ridículo quando olhado desde um ponto de vista racional, ele constitui uma
prática antiga. Foi popular na idade média e nos tempos modernos, assim como é
na época “pós-moderna”.
Este
tipo de luta estimula a busca perversa de satisfação sadomasoquista; isto é, o
prazer derivado do sofrimento próprio, ou do ato de fazer os outros sofrerem. A
perseguição católica contra judeus e heréticos na Idade Média era um processo
histérico, assim como as várias formas políticas e sociais de ódio no século 21
- sejam elas “progressistas” ou não.
A
dinâmica da histeria deve ser compreendida antes de ser abandonada. O bom senso
e o amor pela verdade são suficientes para eliminá-la. No entanto, o livro de McGrath
convida-nos à construção de um enfoque intercultural que tenha respeito pelas
diferenças. A tarefa pertence à teosofia, à psicologia, à filosofia e outros
campos de conhecimento.
Quando
se desmascara o caráter irracional da histeria - na família, na política e em
todos os aspectos da vida - o carma ou destino humano muda para melhor. É
inútil esperar que “aconteça alguma coisa” capaz de curar a doença de fora para
dentro. Cada indivíduo tem o poder de tornar-se alguém que cura a si mesmo e regenera
o mundo.
A
paz da alma será restabelecida conforme as necessidades da evolução, e todos
podemos ajudar nisso. Os acontecimentos grandes e pequenos estão unidos. Sementes
minúsculas tornam-se árvores adultas. Uma borboleta bate as asas em Taiwan e um
furacão ocorre em Londres. O impacto das ondas do mar em uma parte do mundo é
sentido pelas ilhas de outros continentes, conforme Victor Hugo escreveu em “Os
Trabalhadores do Mar”. [2]
Sempre
que a histeria se espalha pela sociedade, o diálogo sincero e a moderação se
tornam objeto de desprezo. Devemos observar, portanto, o processo emocional que
flui por baixo das formas instáveis, nervosas e automáticas de intolerância.
Psicose e Histeria
Talvez
a principal diferença entre psicose e neurose seja que o neurótico sacrifica os
seus instintos básicos para preservar uma visão realista dos fatos. Na vida coletiva,
essa atitude é essencial para o processo democrático. A renúncia também é
necessária em qualquer relação equilibrada entre seres humanos, ou entre os
seres humanos e o ambiente natural.
Sacrificamos
nossos desejos pessoais para preservar a harmonia na comunidade. Praticamos o
autocontrole para beneficiar outras pessoas a quem amamos, para possibilitar a
preservação da natureza ou porque respeitamos a realidade da democracia e da
ajuda mútua em nossa cidade e nosso país.
Na
atitude psicótica, porém, o indivíduo sacrifica o seu sentimento de respeito
pela realidade, para seguir automaticamente os seus próprios instintos e
desejos. A verdade, então, é deixada de lado e a moderação cai no esquecimento.
A
psicanálise diz que na neurose existe uma “perda de si mesmo”, um
autossacrifício. Na psicose, o indivíduo perde a sua relação com a realidade
objetiva. Na neurose, a pessoa tira lições, não sem sofrimento, dos seus
conflitos internos. Na psicose, os conflitos são projetados para o mundo
externo e o indivíduo pensa que não tem necessidade de obedecer a limites.
Freud escreve:
“…
Um dos fatores que estabelecem a diferença entre uma neurose e uma psicose [é]
o fato de que numa neurose o ego, em sua dependência da realidade, suprime um
pedaço do id (da vida instintiva), enquanto numa psicose o mesmo ego, a serviço
do id, afasta-se de um pedaço da realidade. Assim, para uma neurose o fator
decisivo seria a predominância da influência da realidade, enquanto para uma
psicose seria a predominância do id. Numa psicose, uma perda da realidade
estaria necessariamente presente, enquanto em uma neurose, parece que esta
perda seria evitada.” [3]
Numa
neurose, a visão dos fatos é distorcida, enquanto na psicose a visão da
realidade é simplesmente suprimida, e nenhum grau de frustração será aceito. A
fantasia rouba o lugar dos fatos: disso surge o processo histérico. Em qualquer
psicose, a dissociação domina e a razão tem pouca chance.
Em
acontecimentos sociais como antissemitismo, racismo, terrorismo e intolerância
religiosa, as atitudes psicóticas estão presentes e têm forte influência. Todas
as formas de ódio sistemático em política tendem a colocar os instintos acima
da razão e estão sob a ação da histeria. Devemos lembrar que a histeria
significa uma condição infantil da
alma. As crianças pequenas ainda não tiveram a possibilidade de reconhecer os
limites adequados das suas ações, que a Vida e a Necessidade inevitavelmente
impõem. [4]
A
relação complexa entre o instinto e a razão nas almas humanas é um fator
central para o futuro das civilizações.
Desde
as décadas finais do século vinte, o uso ampliado de drogas psicoativas tem
estimulado a epidemia de atitudes psicóticas e a perda de equilíbrio na
percepção da realidade.
A
alternativa, segundo a filosofia esotérica clássica, é restabelecer a
capacidade de estar em harmonia com a alma. Aquele que escuta a voz da sua
consciência pode escutar os seus semelhantes. Por outro lado, aquele que não
consegue prestar real atenção aos outros não é capaz de aprender as lições
ensinadas por seu próprio espírito.
Uma
alma que desperta faz com que o indivíduo veja a lei do equilíbrio em operação
e perceba a unidade cósmica de todas as partes do universo. A alma nos ensina
harmonia, e tão logo alcançamos a paz interna nós vemos a unidade e a interação
positiva acontecendo entre todos os seres vivos.
A Situação do
País e o Estado da Alma
Sigmund
Freud documentou a relação direta entre o estado de consciência do indivíduo e
o estado do país em que vive. [5]
Há
uma influência recíproca.
De
um lado, a paisagem social e política da comunidade é um fator decisivo na
definição da geografia da alma. De outro lado, o conteúdo da consciência se
projeta naturalmente para o mundo externo, porque nossas emoções e pensamentos
subconscientes são as lentes pelas quais olhamos para o mundo.
Vemos
com força especial em nossos amigos e adversários as realidades presentes em
nosso interior. Enxergamos no país em que vivemos sobretudo substâncias que
existem em nossa própria alma. Essa relação direta entre o interno e o externo
é algo inevitável. A fantasia da dissociação é uma doença. Neste ponto, sete
conclusões parecem ser em grande parte inevitáveis:
1) Precisamos estar contentes com nós mesmos, se quisermos transmitir paz aos
outros. A harmonia superficial depende dos ventos instáveis da aparência e
portanto dura pouco.
2) A política do rancor não leva a lugar algum, e o mesmo ocorre com a transformação
de adversários em bodes expiatórios permanentes. Estes são meros mecanismos de
fuga histérica da realidade. Não há necessidade de comentar os exemplos famosos
de histeria dados por Adolf Hitler e Benito Mussolini.
3) Não faz sentido que cidadãos e movimentos sociais se comportem como crianças
grandes que gritam e choram enquanto se recusam a ser responsáveis por suas
próprias ações, e insistem em atribuir a outros - os “adultos” - o poder de
decidir sobre suas próprias vidas.
4) Os grupos conservadores devem evitar derrotar a si mesmos comportando-se como
pais e mães imorais que não dão importância às suas famílias e preferem enganar
os que lhes são mais próximos. Aquele que engana os outros ou prejudica os
pobres está apenas iludindo a si mesmo, a longo prazo.
5) Num parlamento, como numa família, se o diálogo honesto se torna impossível e
as palavras não ajudam a produzir uma visão comum das metas compartilhadas, chegou
a hora de calmamente desmascarar a presença da histeria e do absurdo. Uma firme
serenidade é recomendável para que não seja colocada mais lenha na fogueira. O
desastre será evitado se o desmascaramento for promovido a tempo, com a
quantidade adequada de força e determinação.
6) Líderes eficientes estimulam o respeito mútuo. Eles dão o exemplo da
simplicidade voluntária, da atitude construtiva, da boa vontade e da
cooperação. É dever de todos ser honestos com os seus adversários. Estes
princípios previnem as causas da corrupção e impedem o surgimento da injustiça
social, da guerra e do terrorismo.
7) Desde tempos imemoriais, o crescimento da humanidade em sabedoria tem sido o
fator central da História. Porém, o aprendizado da alma acontece em espiral.
Com frequência doloroso, às vezes agradável, o processo da aprendizagem morre e
nasce de novo em ciclos grandes e ciclos pequenos. Os princípios mais básicos da
vida são esquecidos de tempos em tempos e devem ser ensinados outra vez em
milhares de ocasiões. Por esse motivo um teosofista poderia dizer: ‘Quem não tem a coragem de melhorar a si
mesmo não deveria perder tempo fingindo que pretende corrigir os outros. Porque
as duas coisas são inseparáveis. É preciso abandonar os seus próprios erros,
antes de combater furiosamente os erros que pensa que vê nos outros. Devemos
conhecer a nós mesmos, antes que possamos conhecer realmente as pessoas que nos
rodeiam. O autocontrole é melhor do que o controle do mundo externo.’
O
livro de William J. McGrath nos dá elementos valiosos para compreender que as
atitudes histéricas tendem a desaparecer - nas famílias, assim como nas
comunidades locais e nos países - sempre que o conhecimento real é alcançado e
o equilíbrio interior se torna firme o suficiente para ser transmitido aos
outros pelo exemplo.
Minha Mente Para
Mim é Um Reino
Paz
e paranoia, lucidez e histeria, confiança, medo e fúria são todos estados
mentais individuais e coletivos. No entanto, a fonte e a base de qualquer
civilização estão na consciência individual. A vida familiar cumpre um papel
decisivo na ponte entre a percepção vertical do indivíduo e a visão horizontal
da comunidade mais ampla. [6]
É
do mundo interno que a vida social surge. Nossos sentimentos pessoais sustentam
a felicidade ou infelicidade dos países. Este ensinamento está presente nas
obras filosóficas do taoismo clássico. A correspondência entre a vida
individual e a vida política é direta e imediata. Séculos antes de Sigmund
Freud, Sir Edward Dyer (1543-1607) escreveu:
“Minha
mente para mim é um reino;
Encontro
nela um bem-estar tão perfeito
Que
supera qualquer outra bênção.” [7]
Freud
mostra no ensaio “O Inconsciente” (1915) que uma alma humana tem o seu próprio
tipo de topografia. A geografia da mente é análoga à geografia física. Muitas
inteligências diferentes habitam o ser interior de cada cidadão. Todo indivíduo
tem dezenas de vozes e impulsos em sua alma, e eles vivem como cidadãos mais ou menos educados, no reino da
consciência.
No
parlamento do espírito, os pensamentos e os sentimentos representam diferentes
possibilidades, impulsos, pontos de vista e níveis de consciência. É preciso
que haja um sentimento comum e também um governo central que dê um sentido coerente
a eles todos.
É
indispensável um superego que tome
decisões em nome do conjunto. O superego
governamental deve agir com equilíbrio e moderação. Deve escutar a voz sem
palavras da consciência, e expressar um sentido de justiça em suas decisões.
NOTAS:
[1] Na capa do
livro “Política e Histeria” vemos como nome de autor “William J. McGratt”,
quando na verdade o sobrenome é “McGrath”, com “th” no final. Apesar do erro na
capa e na página de rosto, a edição brasileira de “Política e Histeria” é boa.
A tradução de José Octávio de Aguiar Abreu é bem feita. O texto final foi
revisado com eficiência. O livro apareceu em 1988, publicado pela editora
“Artes Médicas”, de Porto Alegre, e tem 296 páginas. O subtítulo é “A
Descoberta da Psicanálise por Freud”.
[2] “Os
Trabalhadores do Mar” (1866). Veja-se a parte II, livro III, linhas finais do
capítulo três.
[3] Do ensaio de
1924 “The Loss of Reality in Neurosis and Psychosis” (“A Perda de Realidade na
Neurose e na Psicose”), de S. Freud, no livro “The Essentials of
Psychoanalysis”, Sigmund Freud, Vintage Classics, seleção de textos feita por
Anna Freud, Vintage Books, London, 2005, 597 pp., ver p. 568.
[4] Sobre a
infantilidade na psicose, veja por exemplo “The Essentials of Psychoanalysis”,
Sigmund Freud, Vintage Books, London, 2005, p. 562.
[5] Leia as páginas
iniciais do capítulo seis, no livro “Política e Histeria”.
[6] O capítulo seis
do livro de McGrath examina o paralelo feito por Freud entre a “política na
alma” e a política externalizada de um país. As mesmas páginas discutem a
oposição pessoal de Freud a Theodor Herzl e ao projeto sionista. Freud morreu
em 1939 e não viu o Holocausto dos anos 1940. Em parte por esta razão, o pai da
psicanálise achava difícil entender a importância de Israel, e não pensava que
fosse necessário, ou possível, construir o Estado Judaico como um local seguro
para os judeus viverem. Freud também pode ter sentido um pouco de inveja em
relação à forte visão de um futuro saudável, que Herzl oferecia. O assunto
deverá ser examinado em algum outro artigo. Freud e Herzl estão entre os
grandes amigos da humanidade e ambos mudaram para melhor a História.
[7] Clique para ver
o poema “Minha Mente Para Mim é Um Reino”.
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O artigo acima foi
publicado nos websites associados dia 04 de novembro de 2019. Trata-se de uma
tradução do inglês. O artigo original está publicado no blog teosófico de “The Times of Israel”.
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Veja
também os artigos “A Psicanálise das Religiões” e “A Civilização Integradora”, de
CCA, e a obra “A Personalidade Neurótica do Nosso Tempo”, de Karen Horney.
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