Autor
Clássico Examina a Eterna Renovação da Vida
Matias
Aires

Página de rosto da edição de 1941 da obra de Matias Aires, que
consiste de exemplares numerados. A imagem é reproduzida do
exemplar 1.172, que pertence à Biblioteca da Loja Independente
de Teosofistas. A primeira edição do livro apareceu no ano de 1752.
Nota Editorial:
Matias Aires (1705-1763) é um dos grandes humanistas luso-brasileiros do
século 18. Também é considerado o primeiro filósofo brasileiro. Nascido em São
Paulo, ele viveu no Brasil até os onze anos de idade, quando foi para Portugal.
Em Paris, estudou
com um orientalista. Paracelso estava entre os autores que despertaram seu
interesse. Estudou a filosofia estoica, e foi amigo de Antônio José da Silva,
“o Judeu”, assassinado pela Inquisição católica. Foi influenciado pelos
jansenistas e por La Rochefoucauld.
Seu livro “Reflexões
Sobre a Vaidade dos Homens”[1], um comentário a Eclesiastes, 1,
foi publicado em 1752 e tem correlações com diferentes tradições culturais. A obra
de Matias Aires pode ser vista como um estudo sobre o Vazio budista e o
conceito oriental de Maya, Ilusão. É
correto interpretá-la como um comentário ao famoso fragmento de Heráclito sobre
a Impermanência: “ninguém pode banhar-se duas vezes no mesmo rio” - porque tanto
o rio como aquele que se banha nele mudam a
todo momento.
Por outro lado, o
livro é um exame rigoroso da primeira das Quatro Nobres Verdades do senhor
Buddha, segundo a qual “Dukkha” - dor, ou aflição -, é inerente à vida. Entre
os pensadores do século 21, o ponto de vista adotado por Matias Aires ressurge
no conceito de “Vida Líquida”, de Zygmunt Bauman. [2]
Apresentamos a
seguir trechos selecionados da obra.
Mudamos em algumas
frases a pontuação e substituímos palavras caídas em desuso por sinônimos que
são usados hoje. Ao final de cada parágrafo, assinalamos o número da página.
(Carlos Cardoso
Aveline)
Reflexões Sobre a Impermanência
Matias Aires
*Em nada podemos estar firmes,
pois vivemos no meio de mil revoluções diversas: as idades, e a fortuna
continuamente combatem a nossa constância. Tudo consiste em representação que
começa, não para existir, mas para acabar; menos para ser, que para ter
sido. Vimos ao mundo a mostrar-nos, a
fazer parte da diversidade dele; parece que as coisas nos vão fugindo, até que
nós vimos a desaparecer também. Somos formados de inclinações opostas entre si,
e temos em nós uma propensão oculta que, sob a aparência de buscar os objetos,
só procura neles a mudança. A inconstância nos serve de alívio, e nos desoprime,
porque a firmeza é como um peso que não podemos suportar sempre, por mais que
seja leve: e com efeito como podem as nossas ideias serem fixas, e sempre as
mesmas, se nós sempre vamos sendo outros? Tudo nos é dado por um certo tempo;
em breves dias, e em breves horas se desvanece a razão da novidade, que nos fazia apetecer; fica invisível aquele
agrado, que nos tinha induzido para desejar.
(p. 101)
*Não temos liberdade para deixar de amar a formosura do mundo, e das
suas partes; não temos livre o arbítrio para resistir ao encanto que a natureza
esconde nas suas produções. A variedade das cores, o movimento dos animais, o
canto das aves, o elevado dos montes, o ameno dos vales, a verdura dos campos,
a suavidade das flores, e o cristalino das águas, tudo atrai a nossa admiração,
e tudo nos infunde amor. A fábrica do
universo é como um retrato da Onipotência; a grandeza do efeito indica a
majestade da causa; por isso o amor, ou o louvor da obra, cede em honra do
artífice. (pp. 122-123)
*A primeira coisa que a natureza nos ensina é amar; e assim o primeiro
afeto que sabemos é aquele mesmo por onde a nossa existência começa a ter
princípio. Novos no mundo, porém não no
amor, esse se manifesta em nós logo no berço; ali mostramos para alguns objetos
desagrado, e inclinação para outros; a uns buscamos com riso, e de outros
fugimos com medo; uns nos servem de espanto, outros de divertimento; choramos
por alcançar uns, e também choramos por evitar outros; como se o ódio e o amor
naquela idade não tivessem outro modo de explicar-se, nem soubessem mais idioma
que o das lágrimas. Também não é novo o chorar-se de gosto, do mesmo modo como
se chora de pena. (p. 124)
*Vemos confusamente as aparências de que o mundo se compõe: os nossos
discursos raramente se encontram com a verdade, com a dúvida sempre; de modo
que a ciência humana toda consiste em dúvidas. Ainda dos primeiros princípios
visíveis, e materiais, só conhecemos a existência, a natureza não; porque a
contextura do universo é em si [tão] unida, e regular em forma, que na ordem
das suas partes não se podem conhecer umas, sem se conhecerem todas; por isso
todas se ignoram, porque nenhuma se conhece. Só a vaidade costuma decidir sem
embaraço, porque não chega a imaginar-se capaz de erro. Os homens mais obstinados são os mais
vaidosos, e sempre a porfia vem na proporção da vaidade. (pp. 56-59)
*A nossa tristeza nos faz parecer tudo o que vemos
triste; a nossa alegria tudo nos mostra alegre; e o nosso contentamento tudo
nos mostra com agrado. Os objetos
influem menos em nós, do que nós influímos em nós mesmos. Vemos como de fora as aparências de que o
mundo se compõe, por isso não conhecemos o seu verdadeiro ser, nem gozamos
delas no estado em que as achamos, mas sim no estado em que elas nos acham. A
delícia dos olhos, e do gosto, depende mais da nossa disposição que da sua
eficácia; o mesmo que ontem nos atraiu, hoje nos aborrece; ontem porque estava
sem perturbação o nosso ânimo, hoje porque está com desassossego; e tudo porque não somos, hoje, o que ontem
fomos. O mesmo que hoje nos agrada,
amanhã nos desgosta, e os objetos, por serem os mesmos, não causam sempre em
nós as mesmas impressões. (pp. 112-115)
*Não somos firmes no amor, porque em nada podemos ser
constantes. Continuamente nos vai mudando o tempo. Uma hora a mais é mais uma
mudança em nós. A cada passo que damos no decurso da vida, vamos nascendo de
novo, porque a cada passo vamos deixando o que fomos, e começamos a ser outros.
Cada dia nascemos, porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos deste modo,
tanto mais nos fica perto o fim que nos espera. A inconstância, que é um ato da
alma, ou da vontade, não se faz sem movimento; a natureza só se conserva e dura
porque muda e se move. O mundo teve o seu princípio no primeiro impulso que lhe
deu o supremo Artífice; a própria luz, que é uma bela imagem da Onipotência,
toda se compõe de uma matéria trêmula, inconstante, e vária. Tudo vive enfim do
movimento. A falta de movimento é o mesmo que falta de vida, e de existência;
assim a firmeza é como um atributo essencial da morte. (p.126)
*É próprio da vaidade o [ato de] dar valor a muitas
coisas que não o têm, e quase tudo o que a vaidade estima é vão. Que coisa pode
haver que tenha em si menos substância do que certas felicidades que, ponderada a melhor parte delas, consiste, ou
em palavras, ou em gestos? A denominação de grande, de maior, e de excelente, e
as submissões, que indicam o respeito, fazem uma parte essencial das glórias
deste mundo. A primeira não consiste mais do que em palavras; a segunda toda se
compõe de gestos. Que importa à
felicidade do homem que os outros, quando lhe falam, articulem mais um som que
outro, e que nas reverências que a lisonja introduziu se dobrem mais, ou menos? A vaidade nos faz crer [que somos] felizes à
proporção que ouvimos esta, ou aquela voz, e que vemos este, ou aquele culto; a
vida civil se reduz a um cerimonial composto de genuflexões, e de palavras.
(pp. 63-64)
*No desprezo da vida, é onde a vaidade se mostra altiva e
arrogante. Os clarins que incitam ao combate não são vozes que a natureza
entenda, a vaidade sim; aquela sempre vai com um passo vacilante e trêmulo;
esta conduz o peito ardente e furioso. Por mais que se encontrem precipícios, e
que os olhos só vejam fogo e sangue, nem por isso desmaia o coração que a
vaidade anima. Aquele a quem o escudo da fortuna cobre, e quem marcha resoluto,
já pensa que está vendo os faustos do triunfo. Aquele que prostrado já fica
agonizando, parece-lhe que expira nos braços da vitória, ou nos da fama. Que
felicidade de morrer! A vaidade tira da morte o semblante pálido e horroroso, e
só a deixa ornada de palmas e troféus. (pp. 80-81)
*Os retiros e as solidões nem sempre são efeitos do
desengano. Na maior parte das vezes são delírios de um sentimento vão, ou
furores em que brota a vaidade. Então nos move o fim oculto de querermos que a
demonstração da dor nos faça recomendáveis. Fazemos vaidade de tudo quanto é
grande: o próprio sofrimento, quando é excessivo, nos lisonjeia; porque nos
promete a admiração do mundo. (p. 45)
*De todas as paixões, a que mais se esconde é a vaidade;
e se esconde de tal forma que a si mesma se oculta e ignora. Ainda as ações
mais piedosas nascem muitas vezes de uma vaidade mística, que quem a tem não a
conhece, nem distingue: a satisfação própria que a alma recebe é como um
espelho em que nos vemos superiores aos outros homens pelo bem que realizamos,
e nisso consiste a vaidade de fazer o bem. (p. 34)
*Travam os homens entre si uma contínua guerra de
vaidade; e conhecendo todos a vaidade alheia, nenhum conhece a sua. A vaidade é um instrumento que tira dos
nossos olhos os defeitos próprios, e faz com que apenas os vejamos em uma
distância imensa, ao mesmo tempo que expõe à nossa vista os defeitos dos outros
ainda mais perto, e maiores do que são. A nossa vaidade é o que nos faz ser
insuportável a vaidade dos outros; por
isso a quem não tivesse vaidade não lhe importaria nunca que os outros a tivessem.
(p. 36)
*A vaidade satisfeita, ou ofendida, é a que nos faz
buscar a solidão e o retiro, como temerosos de perder a tristeza em que achamos
uma felicidade de gênero diverso. Há muitos males em que a vaidade parece [que]
se deleita; e ainda sem vaidade a alegria muitas vezes nos soçobra. Não só o
excesso, mas ainda a mediocridade dela; porque nunca a gozamos sem alguma
perturbação. Um receio insensível de a perdermos basta para oprimir-nos, e por
mais que o contentamento nos extasie, nunca nos deixa em um estado de não
sentir. A vaidade satisfeita não nos
entrega à alegria sem primeiro a temperar, com
a mesma equidade com que nunca nos entrega de todo à tristeza. A união
do gosto com o pesar não é incompatível, por mais infinita que nos pareça a
distância de um a outro extremo. Também a vaidade e a humildade muitas vezes se
encontram, se unem e se conservam. (pp. 106-107)
*Quantas dores há, que se formam do gosto, e quantos
gostos, que resultam da dor! Essa infinita variedade dos objetos tem a mesma
causa por origem. As diferentes produções
que vemos, todas se compõem dos mesmos princípios, e se formam com os mesmos
instrumentos. Algumas coisas degeneram à proporção que se afastam do seu
primeiro ser; outras se dignificam, e quase todas vão mudando de forma à medida
que vão ficando distantes de si mesmas. As águas de uma fonte a cada passo
mudam; porque apenas deixam a fonte ou rocha de onde nascem, quando em uma
parte ficam sendo limo, em outra flor, e em outra diamante. Que coisa é a
natureza, se não uma perpétua e singular metamorfose? (pp. 37-38)
NOTAS:
[1] “Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens”, Matias Aires, Livraria Martins, São
Paulo, 1942, 234 pp., introdução de Alceu Amoroso Lima. Uma segunda edição da
obra foi feita pela mesma editora, em 1952. Sobre a vida de Matias Aires, veja-se
a obra “Dois Paulistas Insignes”, de Ernesto Ennes, Companhia Editora Nacional,
São Paulo, 1944, 488 pp. O nome completo
desse pensador é Matias Aires Ramos da Silva de Eça, e ele nasceu a 27 de março
de 1705. (CCA)
[2] Veja-se, “Vida Líquida”, de Zygmunt Bauman, Ed. Zahar, RJ, 210 pp.,
copyright 2005, ou “Tempos Líquidos”, do
mesmo autor, Ed. Zahar, RJ, 2007, 120
pp. Uma limitação de Bauman - que não
tira o valor de suas obras - consiste em supor que os “tempos líquidos” são
recentes. No tempo recente, a liquidez apenas se acentua. A vida sempre foi
fluída. (CCA)
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O texto acima foi publicado inicialmente na edição de
julho de “O Teosofista”.
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