Pais e Filhos São Mestres Uns dos Outros
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
“Isto está bem assim, meu filho. Siga adiante.”
Você já teve a
sensação de ouvir mentalmente comentários de seus pais sobre situações que você
vive? Caso a resposta seja afirmativa, não se trata de um fato isolado. A
relação entre pais e filhos funciona, mesmo, como um diálogo interior
permanente. Nossas figuras paternas e maternas são presenças sutis que falam em
nossas mentes o tempo todo. Este vínculo oculto entre gerações diferentes
ultrapassa os limites do conhecimento racional, porque faz parte da alma
humana.
Mas a relação entre
pais e filhos contém, também, uma chave de acesso para a compreensão da
misteriosa e fascinante relação que se dá entre personalidade e alma imortal,
ou eu inferior e eu superior.
Comecei a investigar
este fato de maneira inesperada, ao perceber em mim mesmo uma atitude simultaneamente filial e paternal em relação ao que posso chamar
de meu eu superior. Algum tempo atrás
fui levado por um impulso a colocar no papel as seguintes palavras:
“Tento ouvir e
obedecer ao meu eu superior. Sou filho dele. Ao final da minha vida, ele herdará
tudo o que eu tenha feito de bom e de útil”.
Fiquei surpreso com
minhas próprias palavras, porque elas supõem que o eu imortal é tanto meu pai
(origem) como meu filho (herdeiro). Percebi então com clareza o fato de que,
afinal, nossa relação com os filhos e as crianças em geral diz respeito à nossa
imortalidade. Os filhos são uma extensão da nossa existência pessoal, assim
como nosso eu superior ou alma eterna
- que recolhe as experiências práticas de cada vida particular - nos oferece
uma imortalidade espiritual enquanto avança em sua longa caminhada para a
perfeição humana.
Tantos nossos pais
como nossos filhos estão, em parte, fora dos limites cronológicos normais da
nossa vida, e há nisso uma transcendência mútua.
Por outro lado, para
toda criança as figuras do pai, ou da mãe, ou de ambos, aparecem como
personificações do seu próprio eu superior.
Na infância, os pais são heróis míticos, onipotentes, onissapientes, deuses
protetores, e às vezes irados, mas sempre donos de um poder desmedido. E, para
os pais, o filho cumpre um papel semelhante: a criança é um anjo indefeso e
encantador, uma alma pura que inspira os melhores sentimentos e fala direto ao
coração adulto. Cuidar bem dela representa um compromisso sagrado.
Olhando a existência
humana do ponto de vista da viagem infinita da vida pelo tempo linear, vemos
jovens e velhos como vizinhos cronológicos que transmitem uns aos outros a
chama da vida em uma corrente que nunca rompe.
A palavra pai é símbolo de origem, dominação,
coragem, e representa toda autoridade. O chefe, o patrão, o professor, o líder
e o mestre espiritual são aspectos diferentes da figura paterna básica. O pai é
o sol, a noção de limites, e ele também aponta para o infinito. Ele protege e
limita, dita normas e nos empurra para a frente, rompendo o território fechado
da simbiose com a mãe. Já a ideia de mãe
está associada à nutrição, à ternura, à terra, à harmonia, à pureza, e à
ausência de dureza ou agressividade. A palavra criança, por sua vez, é sinônimo de inocência e espontaneidade.
Toda vida familiar é um jogo de papéis dramáticos que reúne as atitudes típicas
do pai, da mãe e dos filhos.
Este jogo nunca cessa
dentro de nós. Há uma família física, externa, e há uma família psicológica no
interior de cada ser humano. É desta última que ele retira o material básico do
seu comportamento. Tios, irmãos mais velhos, professores e avós podem ter-nos
dado alimento decisivo como figuras alternativas de pai e mãe. Mas o que absorvemos,
exatamente, com que profundidade e de que modo, e que significado damos em
nossa vida ao que absorvemos? Estas são questões que dependem, sobretudo, da
nossa própria alma. Um bom exemplo pode ser “absorvido” ou não. Um mau exemplo
pode ser “absorvido”, ou pode ser apenas identificado como uma clara lição
sobre o que não devemos fazer. Isto
dependerá de nós mesmos, de nosso livre-arbítrio e de nossa maturidade
interior. Essa troca de energias ou “contágio” com o mundo emocional ao nosso
redor prossegue enquanto vivemos.
Quando temos filhos,
é este nosso material emocional básico que projetamos sobre eles. O grau de
autoconhecimento que tivermos alcançado será de importância significativa para
a criança que trouxermos ao mundo e para todos os jovens com quem convivermos.
Uma das coisas mais valiosas que podemos transmitir a nossos filhos - ou herdar
de nossos pais - é a capacidade de ser pessoas íntegras, mesmo que isso
implique coragem, desapego e dificuldades no mundo externo. Nossa verdadeira
herança - tanto a que recebemos como a que transmitimos - não tem nada a ver
com bens materiais. Melhor do que milhões de dólares é a capacidade interior de
ser feliz, percebendo o cumprimento do dever como fonte de contentamento e o
amor e a ética como processos incondicionais.
Os pais só podem dar
aos filhos aquilo que eles têm, e os velhos transmitem aos jovens com igual
generosidade sua sabedoria e sua ignorância. Desde o primeiro instante, pai e
mãe projetam sobre a criança seus conteúdos psicológicos positivos e negativos,
feitos de esperança e medo, virtudes e defeitos, luz e sombra. A criança começa
a receber esta herança logo ao
nascer, e continuará a recebê-la, através do diálogo interno perpétuo com suas
figuras paternas e maternas, até o seu último dia de vida. As figuras de
divindades masculinas e femininas reforçarão e enriquecerão este diálogo em
diversas religiões orientais e ocidentais. É a própria criança que dá
significado às mensagens paternas e maternas em seu mundo interior. O
crescimento psicológico e espiritual constitui o processo pelo qual assumimos a
direção de cada aspecto da nossa própria vida, sem interromper o diálogo com pai
e mãe, mas recriando continuamente este diálogo sobre bases mais elevadas.
Quando a relação superficial entre pais e filhos morre ou é transcendida, surge
a relação espiritual. Quando morremos psicologicamente para nosso próprio
egoísmo, aprendemos a amar nossos filhos e nossos pais - e também as outras
pessoas.
Como podemos
compreender melhor a relação emocional entre pais e filhos? Pode-se começar
fazendo um inventário das heranças de luz e de sombra. Que aspectos positivos e
negativos nossos pais projetaram sobre nós? Como se deu a distribuição de
virtudes e defeitos, de energia positiva e negativa, entre os filhos? Uma
criança traz consigo uma combinação das energias emocionais, mentais e
espirituais dos seus pais, e este conjunto energético inclui várias tonalidades
de luz e sombra. Que aspectos positivos e negativos da nossa personalidade
projetamos - conscientemente ou não - sobre nossos filhos? Que medos e coragens
herdamos de nossos pais? Isto tudo deve ser observado serenamente, sem
autocondenação ou autojustificação.
Se na combinação de
luz e sombra que recebemos de nossos pais predominar o aspecto positivo - o que
dependerá da nossa maneira de ver a vida -, seremos capazes de projetar uma
combinação positiva de luz e sombra para nossos filhos. Mas, em última instância,
somos todos livres. Cada ser humano pode selecionar o que quer da herança
psicológica deixada à sua disposição por seus pais e outras figuras ancestrais.
Na idade adulta, reconstruímos
e reorganizamos as vivências da infância. Renascemos a cada instante. Cada dia
é o começo do resto das nossas vidas. Podemos rever e equacionar novamente a
qualquer momento a nossa postura energética básica, redefinindo de modo mais
luminoso a nossa herança cármica. Para isso, a energia do perdão é fundamental.
Perdoar nossos pais e outras pessoas por seus erros é indispensável para que
nos libertemos do passado. Assim aumentaremos nossa capacidade básica de ser
feliz no momento presente e de projetar felicidade para os jovens com quem
convivemos. Um gesto intenso de projeção de felicidade sobre uma criança é,
literalmente, uma bênção, e pode ter influência sobre mais de uma geração. Os
gestos intensos perduram no tempo porque programam e definem as atitudes médias
diante da vida.
É bom que haja, penso,
uma certa base impessoal no amor
entre pais e filhos. A criança deve saber que certos direitos seus serão
atendidos incondicionalmente. É importante que os jovens se sintam aceitos e
respeitados mesmo nos momentos difíceis. Pedi a um jovem de 16 anos que
apontasse três coisas que um adolescente espera de seus pais. A resposta foi
dada por escrito:
“O adolescente espera
que deem condições financeiras, como comida, escola, diversão. Espera também
conselhos, pois nem sempre um adolescente tem experiência de vida suficiente
para tomar decisões; e que sejam amigos, pois é importante que pelo menos
dentro de casa se tenha paz.”
Perguntei também o
que é mais importante no relacionamento entre pais e filhos. A resposta foi:
“O respeito”.
Em seu livro “Iron
John” [1], Robert Bly afirma que todo jovem necessita que um ou mais
adultos acompanhem seu crescimento psicológico com atenção construtiva e um
sentimento de admiração. Bly menciona especificamente que, para ganhar
segurança pessoal, o filho homem necessita da admiração encorajadora de um
homem que cumpra o papel de pai. O mesmo vale para a relação mãe-filha. Esta
atenção estimuladora é especialmente importante nos momentos decisivos da vida
dos jovens, porque é neste momento que a influência externa pode penetrar mais
fundo na personalidade em formação. O estímulo positivo nos momentos críticos
da infância e adolescência fará com que o jovem tenha autoconfiança nos
momentos difíceis ao longo da vida, enquanto o elogio que só é feito quando
tudo vai bem pode ser indício de superficialidade no compromisso dos pais com o
jovem. Na verdade, os pais precisam estar comprometidos com sua própria vida
interior para que seu compromisso com os filhos transcenda o nível
biológico-instintivo e passe a ser conscientemente espiritual, de alma para
alma.
A regeneração da
sociedade exige, é claro, a regeneração dos laços familiares. Os novos padrões
vibratórios solidários do terceiro milénio resgatam as relações humanas como
territórios livres de autoritarismo e capazes de estimular o crescimento
responsável de todos. Meus pais, meus filhos e os jovens com quem convivo são
todos reflexos parciais da minha alma. Projeto algo da minha alma sobre a
imagem construída de cada pessoa que conheço. Na medida em que a imagem é positiva,
ou que pelo menos tiro lições positivas dela, posso resgatar e reconciliar-me
com todos os aspectos exteriores do meu ser mais amplo.
Assim, tudo que é
humano me diz respeito. E isto implica responsabilidade. Neste contexto, como
ajudar nossas crianças a construir marcos referenciais saudáveis para si
mesmas? Khalil Khavari e Sue Khavari respondem:
“Primeiro, devemos
estar completamente convencidos do valor intrínseco de cada criança. É esta
convicção que faz com que todos os nossos esforços valham a pena e tenham um significado.
Em segundo lugar, devemos melhorar nossos próprios marcos referenciais para
darmos bons exemplos. O terceiro ponto é que haja harmonia e unidade entre os
pais, como casal. Se não houver harmonia, os pais não poderão dar a atenção
adequada aos filhos”. [2]
Na sociedade atual,
há outro ponto importante: a presença psicológica do pai ou da figura paterna. E
da mãe. Pesquisas recentes no Brasil e no Exterior mostram uma relação direta
entre a ausência ou fraqueza da figura paterna e os níveis de delinquência
juvenil.[3] É certo que o divórcio é
preferível à continuação indefinida de uma relação de casal desastrosa. Mas,
por outro lado, a relação positiva com uma figura paterna - seja ou não seu pai
biológico - é essencial para o jovem. Assim como a figura materna.
O estudo da história
mostra que o casal humano é a base de todas as civilizações. A crise do casal
provoca a crise da educação e da infância. Quando o homem e a mulher não são
capazes de dar amor profundo um ao outro, também não podem dar amor e atenção
às crianças, e a sociedade entra em decadência. As crianças, como os velhos,
são exteriorizações da nossa própria alma imortal: quando os maltratamos ou
ignoramos, estamos desrespeitando partes do nosso eu superior.
É certo que a família
tem mudado e feito progressos. Os laços de amor não podem mais ser
autoritários, exclusivistas e presos só à dimensão biológica e instintiva como
até algumas gerações atrás. A família atual é mais dinâmica e ampla, embora os
arquétipos básicos sejam iguais aos do passado. A dinâmica criadora da família
humana é a mesma em toda parte. Segundo a sabedoria andina e a tradição de
muitos povos orientais, todos os seres humanos são irmãos entre si, e são
filhos do Pai Sol, que gera e mantém a vida na Mãe Terra. O mundo inteiro é uma
extensão da nossa família. Todo homem suficientemente idoso é uma extensão do
meu pai. Toda a mulher idosa é, em parte, uma figura materna. Se tenho idade e
maturidade suficientes, todo o jovem é como meu filho. Por isso dizemos “meu
filho” a alguém mais jovem, e chamamos uma pessoa muito idosa de vovô ou vovó. Os indígenas estão certos: todos os membros do nosso povo são
“parentes” - e todos os seres humanos são membros do nosso povo. O mito de Adão
e Eva é mais uma confirmação da fraternidade universal da humanidade.
Por outro lado, somos
jovens e velhos simultaneamente. Estamos o tempo todo sendo pais e filhos uns
dos outros. A corrente de pensamento psicológico chamado de análise
transacional trabalha corretamente esta realidade básica, ensinando que o “eu”
humano tem três posturas ou atitudes fundamentais: o estado de pai, o estado de adulto e o estado de criança.
Somos pais, mas também irmãos e até filhos das pessoas com quem convivemos. Em
minha relação de casal, devo estar pronto a viver com prazer o papel de pai, de
filho e de irmão, sem deixar de ser amante. Minha mulher deve ter a liberdade
de colocar-se como filha, irmã e conselheira à hora que lhe parecer correto. Devemos,
também, ser suficientemente crianças
para aprender com os jovens, enquanto ensinamos coisas novas aos nossos velhos.
Neste processo,
podemos descobrir que a longo prazo somos nossos próprios pais. Somos os
maiores responsáveis por nossa própria educação e também pelo crescimento da
nossa alma imortal, que busca alcançar níveis cada vez mais altos de perfeição.
Na velha cultura oriental, a saudação namastê
significa “o princípio divino em mim saúda o princípio divino em você”. Na
nova cultura global solidária, a ideia de namastê
renascerá como um sol capaz de iluminar todas as relações humanas. A
consciência divina do marido se relacionará com a consciência divina da esposa,
e a energia divina nos pais se relacionará com a energia divina nos filhos.
Perceberemos conscientemente, então, que a solidariedade incondicional é tão
necessária à vida quanto a luz do Sol. E esqueceremos a dor que nos acompanhou de
perto durante milhares de anos.
Fazendo um Inventário Pessoal
Pegue papel e caneta,
sente-se retirado e afaste preocupações de curto prazo. Traga para perto de si
todo seu passado e seu futuro. Respire profundamente. Com a coluna ereta e mãos
sobre os joelhos, relaxe os músculos dos pés, pernas, braços, mãos e rosto.
Visualize o centro de paz eterna em seu coração. Sinta a presença
silenciosamente inspiradora deste centro. Pergunte-se, então, anotando as
palavras-chave das respostas que surgirem:
• Que lições
espirituais positivas posso extrair do que conheço da vida de meus pais, avós e
demais figuras paternas/maternas? Coragem? Desapego? Integridade? Que lições e
virtudes? Que atitudes práticas dos mais velhos inspiram meu aprendizado interior?
• Que lições práticas
a vida dos mais velhos me dá sobre o que não
devo fazer em minha vida? Que falhas não devo repetir?
• Que lições
positivas da minha vida estou passando, pelo exemplo concreto, para meus
filhos, sobrinhos, irmãos mais novos, alunos e todos os jovens com quem
convivo? Que tipo de erros não devo
transmitir a eles?
• Em que posso
aprender com os mais jovens? O que tenho aprendido com as crianças? Como posso
ampliar meu aprendizado com elas?
Para encerrar, deseje
por um instante paz a todos os seres, sejam eles crianças, jovens, adultos ou
velhos, e pertençam ou não ao reino humano.
NOTAS:
[1] “Iron John”, de Robert Bly,
Vintage Books, Nova York, EUA, 268 pp.
[2] “Creating a Successful Family”,
de Khalil Khavari e Sue W. Khavari, Ed. Oneworld, Grã-Bretanha, 1990, 269 pp.;
ver pp. 43-44.
[3] “Folha de S. Paulo”, 1º de novembro
de 1998, 3º caderno, pp. 1 a 4. Nos EUA e no Brasil, pesquisas constataram
relação direta entre delinquência juvenil e ausência da figura paterna na vida
familiar.
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O texto acima foi publicado inicialmente de modo anônimo.
Ele apareceu durante o final da década de 1990 na Coleção Planeta,
“Inteligência Emocional”, número 4, Ed. Três, pp. 20-27. Foi revisado e
atualizado pelo autor para a presente edição online, em fevereiro de 2013.
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Em setembro de 2016, depois de
cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de
estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como
uma das suas prioridades a construção
de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
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