Um Estudo Comparado
Sobre a Arte de Agir com Ética
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline

A
ideia de agir corretamente não está presa a uma religião ou filosofia apenas. Todas
as formas de sabedoria desembocam na
ética, isto é, na arte de agir corretamente. Para isso é necessário compreender
o que é certo e errado, e optar pelo que é justo.
Há uma mesma ética e uma sabedoria universal comuns às mais diferentes crenças
e linguagens religiosas. A percepção desse fato elimina gradualmente as causas de fenômenos sociais como
intolerância política ou religiosa, guerras, terrorismo, crime organizado e falta de ética.
Rompendo os muros da crença compartimentada e cega, o estudo comparado
das religiões faz com que a má vontade
entre os seres humanos desapareça de modo natural, como resultado prático da ampliação de horizontes.
A visão não-dogmática mostra quantas coisas a tradição cristã absorveu de
religiões e filosofias mais antigas que ela. Não há por que ficar limitado a
uma só religião. Todas elas têm algo a ensinar.
Quando vamos além do pensamento infantil segundo o qual apenas uma
religião é autêntica, nosso refúgio dogmático é abandonado e percebemos a
extensão da nossa ignorância. Colocados diante da sabedoria universal, vemos
que a nossa insignificância é grande. Assim o estudante é forçado a concluir,
como Sócrates:
“Só sei que nada sei”.
A humildade é importante: só com desapego podemos aceitar o ponto de
vista interreligioso e multidisciplinar. Há descobertas difíceis a fazer ao
longo do caminho. As religiões não têm apenas uma sabedoria universal em comum.
Elas compartilham uma ignorância, e uma intolerância recíproca.
O lado bom de reconhecer nossa falta de sabedoria é que passamos a
aprender mais do que antes. A vontade de aprender nos permite distinguir a identidade
profunda da mensagem cristã com as antigas tradições religiosas da Índia e do
Extremo Oriente. O parentesco entre o novo e o velho, o passado e o futuro, não
é casual. Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se recicla. Eclesiastes
(1: 9) ensina:
“O que foi, será; o que se
fez, se tornará a fazer; nada há de novo
sob o céu.”
O tempo é cíclico e circular, segundo ensina o budismo. Antes do
Big-Bang, a Lei Eterna existia, e Eclesiástico
(1: 2-4) confessa que há uma Sabedoria
anterior ao Universo:
“A areia do mar, os pingos da chuva,
os dias da eternidade, quem os poderá contar?
A altura do céu, a amplidão da terra,
a profundeza do abismo, quem as poderá explorar?
Antes de todas essas coisas foi criada a Sabedoria,
e a inteligência prudente existe desde sempre.”
O conceito cíclico do tempo corresponde à Roda de Samsara da filosofia
de Gautama Buda. O tempo não é só circular.
Os círculos do tempo estão em espiral. Há um “eterno retorno”, e as lições do
passado são constantemente retomadas e revalorizadas.
O estudo comparado das religiões revela que existe uma verdade suprema,
eterna e ilimitada, situada acima das palavras - e de que ela vem inspirando ao
longo do tempo as mais diferentes religiões e filosofias. Tal hipótese deve ser
discutida e demonstrada. “Será verdadeira
essa ideia?” - perguntaria um São Tomé moderno,
usando do seu direito de ver para crer.
O texto intitulado “O Evangelho
Segundo Confúcio” é um estudo comparado sobre
dez
pontos centrais da ética teosófica tal como ensinada no Novo Testamento
e na filosofia da China antiga.[1] Um dos pontos abordados no artigo é a
“regra de ouro”:
“Tudo aquilo que vocês quiserem que os homens lhes façam, façam vocês a
eles, porque essa é a Lei.” (Mt 7:12)
Outro exemplo da influência da sabedoria oriental sobre o cristianismo
está estreitamente relacionado com a ideia da reciprocidade. Trata-se da Lei do
Carma, conhecida também como Lei do Equilíbrio e da Justiça.
Ensinada pelo hinduísmo - uma religião
que na sua fase mais recente tem 3.500 anos de idade - a lei do carma afirma que, tanto nos planos internos
como nos níveis externos da vida, a cada ação correspondem diversas reações, a curto e longo prazo.
A filosofia hindu desenvolveu toda uma ciência para a aplicação prática
dessa lei universal do plantio e da colheita: trata-se da Carma Ioga, a ioga da ação correta.
O conceito de carma é central
para a filosofia budista, que, sendo bem mais recente que o hinduísmo, surgiu
apenas 500 anos antes da Era Cristã.
Gautama Buda construiu seu ensinamento em torno do nobre óctuplo caminho, que consiste na arte de agir corretamente,
isto é, de plantar bom carma. A ideia
não é alheia ao cristianismo. A lei do carma tem um lugar de honra no Velho
Testamento. Eclesiástico, 7: 1-3, afirma:
“Não faças o mal e o mal não se apoderará de ti; afasta-te da injustiça
e ela se desviará de ti. Filho, não semeies nos sulcos da injustiça, para não
colheres sete por um.”
Poucas linhas mais adiante, o conselho é reforçado:
“Não repitas duas vezes um pecado, porque já do primeiro não sairás
impune.”
E o Jesus do Novo Testamento ensina:
“Não julguem para não serem julgados.” (Mt 7: 1)
Daí nasce a importância da regra
de ouro que vimos acima. O segredo da boa colheita está em plantar o bem. A
ideia parece simples mas raramente é fácil de colocar em prática.[2]
O Segredo da Boa Colheita
Embora a Bíblia fale em “punição” e “castigo” em relação aos erros
humanos, trata-se de uma imagem simbólica. A substância da inteligência
universal inclui uma infinita boa vontade para com todos os seres. Não existe
um deus monoteísta, e muito menos algum deus interessado em punir pessoas. Há, isso sim, a
necessária colheita das ações erradas que se fez no passado próximo ou no passado distante.
Quando se trata de entender como funciona o carma, é preciso atenção. As autojustificações, os pretextos e as racionalizações
são frequentes. Em 99 por cento dos casos, o mal procura esconder-se sob a
aparência do bem. Há numerosas tentativas erradas de fazer a coisa certa. O
erro, no início, talvez pareça uma coisa boa. O acerto inicialmente pode ser
visto como inútil. O “Dhammapada” afirma:
“Como leite tirado há pouco, uma má ação não estraga imediatamente. Ela
consome o tolo aos poucos, assim como o fogo que avança oculto sob as cinzas.
(...) Até mesmo um homem que age mal sente felicidade, enquanto sua má ação não
amadureceu. Mas quando sua má ação amadurece, o homem que fez o mal percebe o
mal. Até mesmo um homem bom talvez sofra
com o mal, enquanto suas boas ações não
amadurecerem. Mas quando suas boas ações amadurecem, ele vê o que é bom surgindo para ele. (.....) Não
pense superficialmente sobre o bem, dizendo: ‘ele não virá para mim’. Um pote de água fica cheio com a constante queda, nele, de pequenas gotas de
água. Um homem sábio fica cheio de bondade, se ele a reunir pouco a pouco.” [3]
O Jesus do Novo Testamento reforça essa ideia oriental ao contar em
Mateus a parábola do joio e do trigo. Ele diz:
“O Reino dos Céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu
campo. Enquanto todos dormiam, veio o
seu inimigo, semeou o joio no meio do
trigo e foi-se embora. Quando o trigo cresceu e começou a granar, apareceu
também o joio. Então os servos do proprietário foram procurá-lo e disseram:
‘Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Como então está cheio de
joio?’ E o Senhor respondeu: ‘Um inimigo
é que fez isto’. Os servos perguntaram:
‘Queres, então, que o arranquemos?’ E ele respondeu: ‘Não, para não acontecer
que, ao arrancar o joio, com ele vocês arranquem também o trigo. Deixem que
eles cresçam juntos até a hora da colheita.” (Mt 13: 24-30.)
O que essa parábola ensina?
Quando “todos dormem” - isto é,
quando faltam vigilância e atenção - o
inimigo, a nossa ignorância, planta o “joio” da ilusão e do erro.
Esse mau carma, o joio, não pode ser cortado enquanto não estiver
maduro. O bom carma, o “trigo”, também deve esperar a hora da colheita.
Essencialmente, temos aqui o mesmo princípio ensinado pelo “Dhammapada” budista. É preciso agir corretamente, evitar o erro, e
esperar que o bom carma amadureça, enquanto se mantém a ação correta.
Madre Teresa de Calcutá, uma cristã que vivia na Índia, tinha uma clara
compreensão da lei do plantio. Ela escreveu:
“Nós recebemos muitos visitantes (.....). Quando me encontro com eles,
costumo entregar-lhes meu ‘cartão comercial’, que contém as seguintes palavras:
‘O fruto da prece é a fé; o fruto do amor é o serviço; o fruto do serviço é a
paz’.” [4]
O Novo Testamento e o
Dhammapada
Há muitos trechos em que a sabedoria cristã se encontra com a antiga
tradição oriental.
Jesus fala
das bem-aventuranças no Sermão da Montanha. Ao ler esta passagem, devemos levar
em conta que a expressão “Reino dos Céus” designa a mente superior ou inteligência
espiritual na consciência humana:
“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados os humildes, porque eles herdarão a terra.
Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão
saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão a misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque
deles é o Reino dos Céus.” (Mt 5: 3-10)
Essas palavras devem ser comparadas com o ensinamento de Gautama Buda, meio milênio antes de Jesus. O “Dhammapada” ensina:
“Devemos viver, pois, livres do ódio e felizes entre os que odeiam. Entre
os homens que odeiam, que nós vivamos livres do ódio. Devemos viver, pois, livres da doença da cobiça e felizes entre os
que sofrem desta doença. Entre os homens que têm a doença da cobiça, que
vivamos livres desta doença. Devemos viver, pois, livres da ansiedade e felizes
entre os que estão consumidos pela
preocupação. Entre os ansiosos, que nós vivamos livres da ansiedade. Devemos
viver com felicidade, pois, nós que nada possuímos. Vivamos como os Seres Iluminados,
alimentados pelo contentamento.” (“Dhammapada”, capítulo 15, aforismos 1 a 4)
É
interessante comparar estes quatro versículos budistas com a bem conhecida “Oração
de São Francisco”. A oração diz:
“Onde houver
ódio, que eu leve o amor; onde houver ofensa, que eu leve o perdão; onde houver
discórdia, que eu leve a união...”.[5]
Jesus Traz a Espada do
Discernimento
O Jesus Cristo do Novo Testamento foi um sábio, mas foi também um
guerreiro que combateu grande quantidade de rotinas culturais e psicológicas. Em
uma passagem bem conhecida do Evangelho de Mateus (Mt 10: 34-39), este judeu herege da Palestina afirmou:
“Não pensem que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada.
Com efeito, vim contrapor o homem ao seu
pai, a filha à sua mãe e a nora à sua
sogra. Em suma: os inimigos do homem serão seus próprios familiares.”
E ainda:
“Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim. Aquele
que ama filho ou filha mais do que a mim
não é digno de mim. Aquele que não toma a sua cruz e me segue não é digno de
mim. Aquele que acha sua vida, vai perdê-la, mas quem perde a sua vida por causa de mim, vai achá-la.”
Vejamos o que diz a esse respeito a Índia milenar.
No capítulo inicial do clássico hindu “Bhagavad Gita”, Arjuna, discípulo
de Krishna, está por começar uma batalha quando decide parar seu carro de
guerra.
Ele observa os dois grandes grupos de guerreiros prontos para o combate,
e constata que pais e filhos, irmãos, cunhados, avós e netos irão lutar entre si. Tomado pela tristeza, ele desabafa
diante do mestre:
“Ó senhor, vendo eu as faces e os vultos dos parentes que querem lutar
uns contra os outros, sinto exaustos de forças meus membros e sem sangue meu
coração. As minhas pernas tremem, os meus braços não me obedecem...”
E Arjuna dá um testemunho
emocionado sobre sua incapacidade de lutar contra aqueles a quem mais ama.
No capítulo dois do “Bhagavad Gita”,
o mestre Krishna dá sua resposta a Arjuna.[6] Krishna fala do bom combate, do desapego a todas as condições
externas e a todas as comodidades do mundo.
Ele diz:
“Deves estar atento a teu dever. O dever de um soldado é combater, e
combater bem. O combate justo honra o guerreiro e abre-lhe a porta do céu. Se
desistires da legítima luta pela verdade e pelo direito, cometerás um crime
contra a tua honra, contra o teu dever e contra o teu povo.” (aforismos 31 a
33)
Para a filosofia esotérica, os “parentes” que o estudante deve combater
são sobretudo os seus hábitos emocionais e mentais, os skandhas, a rotina.
A espada do guerreiro é a força do seu pensamento próprio, e o fio da
espada é a lucidez da sua visão. Não se trata de combater pessoas, mas de
romper os padrões vibratórios cegos que impedem nossa evolução. Nosso apego a pais,
irmãos e filhos pode ser um forte fator de acomodação e rotina em nossas vidas. Daí a necessidade do
bom combate contra a rotina familiar cega, segundo Cristo e Krishna.
Há outros pontos em comum nas lendas e nos ensinamentos destes dois instrutores
da humanidade.
Um deles está no fato de que a própria raiz da palavra “Cristo” é a
mesma da palavra “Krishna”. Não se trata de uma casualidade. “Cristo” não é o
sobrenome daquele sábio judeu. O termo significa “o ungido”, ou “aquele que foi
ungido com óleos sagrados”, aquele que foi abençoado. E a raiz da palavra “Krishna”, Kri, significa derramar, cobrir,
conforme Helena Blavatsky. [7] Os dois termos significam “o ungido”. Estudos etimológicos mostram que a palavra
sânscrita “Krishna” chegou da Índia ao Ocidente passando pelo idioma
grego.
A Ioga de João da Cruz
O religioso espanhol São João da Cruz viveu no século 16 e nos traz outros
exemplos da unidade cultural essencial entre Oriente e Ocidente.
João da Cruz é um dos maiores
místicos cristãos de todos os tempos e pode ser comparado sem desvantagem aos iogues
indianos. Seu enfoque tem pontos em comum com o ensinamento do sábio hindu
Ramana Maharshi, que viveu no século 20. Mas também pode ser comparado a outros
místicos orientais.
Segundo os “Sutras” de Patañjali - o tratado clássico sobre Raja Ioga -
a meta dos iogues é a paralisação das atividades mentais através da expansão da
consciência. E não há muita diferença prática entre a expansão e a retração da
consciência, no sentido místico.
Quando a consciência compreende todas as coisas (expansão) ou quando
desiste de pensar em qualquer uma delas (retração), o resultado é o mesmo.
Nos dois casos, o pensamento pára e o coração desperta. Essa meta da
Ioga é também a meta de João da Cruz, que usa a imagem da “noite escura da
alma” para descrever o abandono completo dos cinco sentidos e da imaginação ao
longo do caminho que leva ao êxtase.
Os grandes místicos cristãos combinam as qualidades dos jnana iogues indianos, que trilham o caminho
da contemplação, com as qualidades dos bhakti
iogues, que seguem o caminho da devoção e do amor universal. A combinação
de Contemplação com Devoção é extremamente feliz, porque torna doce e suave o
caminho da austeridade, em cujo início há
sempre uma boa dose de sofrimentos externos.
Perseguido por seus próprios companheiros de ordem religiosa, o
reformador ético João da Cruz sabia bem
que a austeridade ou o desapego em relação a confortos é um fator essencial no
caminho. Em 1577, ele foi sequestrado,
preso e espancado por outros sacerdotes durante oito meses e meio enquanto Teresa
D’Ávila, sua amiga espiritual, lutava
por sua libertação através de meios políticos e institucionais. João se
atrevera a derramar uma autêntica luz espiritual em tempos marcados pelo
autoritarismo e pela hipocrisia. Sua vida foi
dura, externamente, e morreu com menos de 50 anos de idade. Sem qualquer
medo de sofrimento pessoal - mas repetindo os sábios de todas as religiões -
João da Cruz ensinava que o êxtase espiritual é interno e não exterior. Para
ele, a serenidade diante da dor abre as portas da felicidade incondicional.
Conta-se que certa vez, no convento de Beas, uma irmã carmelita descalça
recitou diante de João da Cruz os seguintes versos:
“Quem não provou amarguras,
No vale humano da dor,
Nada entende de doçuras,
E desconhece o que é o amor:
Amarguras são o manto
dos que amam com ardor.”
Ao ouvir essas palavras, João entrou em êxtase e ficou durante algum
tempo naquele estado de consciência que os iogues chamam de samadhi. Tinha o corpo imobilizado, como
se estivesse interiormente ausente. Ao voltar a si, comentou:
“As dificuldades e sofrimentos abraçados em função de Deus são como
pérolas preciosas cujo valor aumenta na proporção do tamanho. Quanto maiores,
maior é o amor para com o doador que nasce em quem as recebe.” [8]
A lição de João da Cruz inclui amar ou respeitar aqueles que nos
maltratam. Essa atitude não significa aceitar passivamente a injustiça, se
pudermos reduzi-la ou eliminá-la.
O ato de fazer uma injustiça é péssimo para quem a comete e sempre
ocasiona colheitas desagradáveis no futuro. Se queremos sinceramente o bem das
pessoas cujo comportamento não é ético, devemos tomar providências para que
elas deixem de fazer injustiças.
Ter respeito pelos nossos adversários é fundamental para que sejamos
felizes. Combater injustiças com ódio é algo que não faz sentido. A primeira
coisa que o rancor faz é distorcer a visão de quem o aceita em si. Ele impede a
pessoa de perceber a realidade com clareza.
É o sentimento de respeito por
todos os seres que nos dá clareza ao enxergar a
realidade.
Há outro motivo para reforçar nosso cuidado nessa questão. Muitas vezes, a fronteira entre amigos e
inimigos é tênue. “Com amigos como esses, não preciso de inimigos”, diz um ditado
brasileiro. Nossos amigos frequentemente
nos acostumam mal, enquanto nossos inimigos nos impedem de cair na rotina e nos
ensinam lições duras, mas úteis. “Luz no
Caminho”, o tratado clássico de
sabedoria oculta, afirma no comentário ao item 10 da segunda série de regras:
“A inteligência é imparcial: ninguém é teu
inimigo; ninguém é teu amigo. Todos são teus instrutores.”
Devemos lembrar ainda essas palavras do escritor inglês George Bernard
Shaw:
“Trata teu amigo como se um dia ele pudesse tornar-se teu inimigo, e teu
inimigo como se pudesse um dia ser teu amigo.” [9]
Cada Povo Tem o Governo que
Merece
A sabedoria cristã fala da identidade profunda que há entre o povo e os
seus governantes. A sabedoria popular brasileira confirma essa tendência com um
ditado que talvez pareça injusto, mas
destaca o princípio da sintonia interior entre líderes e liderados:
“Cada povo tem o governo que merece.”
O conhecimento universal destaca a extraordinária responsabilidade do
dirigente público e a importância
do seu exemplo ético. No Velho
Testamento, o livro “Eclesiástico” (10: 1-3), afirma:
“Qual o governante do povo, tais os seus ministros; qual o que governa a
cidade, tais todos os seus habitantes. Um rei sem instrução arruinará seu povo,
uma [boa] cidade será
construída graças à inteligência dos seus chefes.”
No Oriente, o antigo “Tao-Te King” -
obra taoista atribuída a Lao-tzu - ensina:
“Quando o governante é tranquilo e discreto,
O povo é leal e honesto.
Quando o governante é perspicaz e rude,
O povo é desleal e não confiável.” [10]
Outro clássico chinês do taoismo filosófico, a obra “Wen-tzu, a Compreensão dos Mistérios”,
traz uma reflexão que enriquece o ensinamento de Eclesiástico, 10: 1-3.
O “Wen-tzu” afirma:
“Os líderes iluminados dos tempos antigos limitavam o que retiravam dos
seus súditos e eram moderados em sua própria vida. Eles sempre avaliavam a
produção anual antes de tomar qualquer
coisa para si: calculando os estoques das pessoas, eles só cobravam impostos
depois de saber se havia lucros ou prejuízos. (...) A compaixão deles pelas
pessoas era tamanha que não tomavam comida para si mesmos se havia qualquer fome
no país, e não usavam roupas grossas de
couro se as pessoas passavam frio. Eles compartilhavam as mesmas dores e
prazeres do povo, de modo que em toda a terra não havia pessoas
marginalizadas.” [11]
Pouco mais adiante, o “Wen-tzu” acrescenta:
“Portanto, o Caminho dos sábios é ser magnânimo porém severo, rigoroso
mas solidário, amável porém correto, agressivo mas humanitário. O que é muito
duro quebra, e o que é excessivamente brando se dobra: o Caminho [ e o Tao ] está exatamente no meio
entre a dureza e a suavidade. A
benevolência, levada longe demais, se torna fraqueza, que não tem dignidade. A
severidade levada longe demais se torna ferocidade, que é desarmoniosa. O amor
levado longe demais se torna indulgência, que é ineficiente. A punição levada
longe demais se transforma em calamidade, o que significa perda de familiares.
É por isso que se dá valor à harmonia.” (p. 165)
Basta ler os jornais para perceber
que no século 21 o “Wen-tzu” ainda não é a Bíblia dos administradores e servidores públicos.
Talvez seja nosso dever reforçar nos países modernos a influência da sabedoria
chinesa e dos ensinamentos superiores presentes no Velho Testamento.
Anthony de Mello e a Teosofia
A vida pessoal e prática dos místicos torna clara a existência de uma harmonia
profunda entre a sabedoria cristã e a filosofia oriental. Um exemplo disso, no
século 20, foi dado por Madre Teresa de Calcutá. Seu trabalho assistencial era
ecumênico e ela não fazia distinção entre cristãos, hindus e muçulmanos.
Outro exemplo é o sacerdote cristão indiano Anthony de Mello
(1931-1987). Autor de vários livros de sucesso, Mello escrevia pequenas
histórias e parábolas em uma perspectiva universal, interreligiosa. Em uma das
suas obras, ele avisou:
“O Mestre que aparece nessas histórias não é uma pessoa só. Ele é o guru
indiano, o místico zen, o sábio taoista, o rabino judeu, o monge cristão: ele é
Lao-tzu e Sócrates, Zaratustra e Maomé. Sua sabedoria pertence ao Ocidente e ao
Oriente.”[12]
Os livros de Anthony de Mello têm uma sabedoria luminosa que está além
das palavras e transcendem essa ou aquela tradição religiosa. Em “La Oración de
la Rana”, por exemplo, ele conta que certa vez um discípulo perguntou:
“Qual é a diferença entre o conhecimento e a iluminação?”
E o Mestre respondeu:
“Quando tu tens o conhecimento, tu acendes uma luz para iluminar o
caminho. Quanto tu tens a iluminação, tu apenas te transformas na luz.” [13]
Uma ideia parecida é colocada em “Luz no Caminho”, obra teosófica clássica
que vem da tradição oriental:
“... Dentro de ti está a luz do mundo - a única luz que pode
iluminar o Caminho. Se fores incapaz de percebê-la dentro de ti, será inútil
procurar fora. Ela está além de ti; porque quando a tocares terás perdido a ti
mesmo. Ela é inalcançável, porque sempre recua. Tu entrarás na luz, mas nunca
tocarás a chama.” [14]
Esse é o desafio que está diante de nós. É preciso ir além das aparências
e dos meros símbolos para conhecer diretamente o oceano da sabedoria universal.
Enquanto percorremos o Caminho, nossas ações espontâneas vão se tornando éticas
e passam a iluminar, em pequena escala,
o mundo ao nosso redor. E não é preciso mais do que isso.
NOTAS:
[1] “O Evangelho Segundo Confúcio”, texto de
Carlos Cardoso Aveline disponível em nossos websites associados. Sobre o tema
da ética comparada, veja ainda, do mesmo autor e nos mesmos websites, o artigo
“O Dilema Ético de S. Paulo”.
[2] As filosofias orientais distinguem três
tipos de carma. O primeiro é Prarabdha
Carma, o carma maduro, que estamos colhendo ou a ponto de colher. O segundo
tipo é Samchita Carma, o carma que
já plantamos, mas que ainda não amadureceu. O terceiro tipo é Kriyamana Carma, o carma novo que
estamos plantando a cada momento presente. Desses três tipos de carma o mais
importante é Kriyamana, o carma que
depende de nós aqui e agora. Mas Kriyamana
é abrangente. Em alguns casos, como quando colocamos a mão no fogo, ele
amadurece imediatamente. Kriyamana Carma inclui também o modo como decidimos colher a cada instante da vida o carma maduro. Daí a importância de saber fazer do limão uma limonada e reconhecer que as dificuldades trazem
oportunidades.
[3] “O Dhammapada”, tradução de C.C.A.; edição online disponível
em nossos websites associados. Veja o aforismo 12 do capítulo cinco, e os aforismos 4, 5, e 7 do
capítulo nove.
[4] “Tudo Começa Com a Prece”, Madre Teresa de
Calcutá, comp. de Anthony Stern, Ed. Teosófica, Brasília, 144 pp., ver p. 122.
[5] “A Oração de São Francisco”, Leonardo
Boff, Ed. Sextante, 1999, 144 pp.
[6] “Bhagavad Gita, a mensagem do Mestre”, Ed.
Pensamento, SP, trad. Francisco Valdomiro Lorenz, 1993, 178 pp.
[7] “Collected
Writings”, H.P. Blavatsky, TPH Wheaton,
EUA, volume VIII, impressão de 1990, pp. 200-201. Texto: “The Esoteric
Character of the Gospels”.
[8] “São João da Cruz,
Obras Completas”, Ed. Vozes, RJ, 1149
pp., ver p. 78.
[9] “Socialismo para Milionários”, George
Bernard Shaw, Ediouro, RJ, p. 111.
[10] “Tao-Te King”, Lao-tzu, versão de Richard
Wilhelm, Ed. Pensamento, 206 pp., ver
capítulo LVIII, p. 97.
[11] “Wen-tzu, a Compreensão dos Mistérios”,
Ensinamentos de Lao-tzu, tradução do Chinês, Thomas Cleary, tradução do inglês,
Carlos Cardoso Aveline, Ed. Teosófica, Brasília, 2002, 198 pp., ver p.
164.
[12] “Sabedoria de Um
Minuto”, de Anthony de Mello,
Edições Loyola, SP, terceira edição,
1997, 225 pp. Ver p. 07.
[13] “La Oración de la Rana”,
Anthony de Mello, Ed. Sal Terrae,
Cantabria, Espanha, 276 pp., ver p. 87.
[14] “Luz no Caminho”,
de M. C., com tradução de Carlos Cardoso Aveline. Veja a regra 12 da primeira
série de regras.
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Leia também, em nossos websites
associados, os artigos “O Evangelho Segundo Confúcio” e “O Dilema Ético de S.
Paulo”.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da
situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu
formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas
prioridades a construção de um futuro
melhor nas diversas dimensões da vida.
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