Nem Crença Cega, Nem Ceticismo
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
Nesta
primeira parte do século 21, vivemos em meio a um ambiente cultural que promove o ceticismo em
relação a valores éticos e à sabedoria. Ao mesmo tempo, surge uma nova maneira
de viver que tem como base a unidade entre pensamento, sentimento e ação.
Logo abaixo da superfície da alma humana, há uma certa quantidade de desânimo
e descrença, resultado da ausência de sabedoria. As raízes da ingenuidade são
relativamente profundas. Para derrotar a ilusão do pessimismo, não é suficiente
fazer um esforço para “pensar em algo bom”.
A crença religiosa
cega e, no outro extremo, o ceticismo que tampouco consegue enxergar coisa
alguma, são os dois lados da moeda falsa da ignorância espiritual. Os extremos
reforçam um ao outro. A fé sem base real, alimentada no plano consciente, funciona
como mecanismo emocional para fugir do desânimo. Deste modo não pode haver um
progresso sólido.
A sociedade atual é parcialmente administrada por máquinas incapazes de
pensar, e aqueles que buscam a sabedoria não são excessivamente numerosos. Eles
são pioneiros: questionam as rotinas e rejeitam as crenças automáticas e seus
rituais. Seguindo por um caminho estreito e íngreme, eles são autorresponsáveis. Adotam uma visão
universal e fazem esforços diários buscando o autoaperfeiçoamento. Suas metas são
altruístas. Eles encontram a fonte de bênçãos na associação entre o concreto e
o abstrato. Cada um deles se sente literalmente responsável pelo futuro do
planeta.
Os amigos da sabedoria sabem que aquilo que se planta, se colhe. Estão
conscientes de que aquilo que não se
planta, não se colhe - a não ser, talvez, na aparência e sem
durabilidade. As injustiças que alguém pode sofrer serão compensadas no tempo
certo. Não vale a pena, portanto, pegar
artificialmente o que é dos outros, e tampouco invejá-los. É recomendável plantar o bem, lançar sementes de fraternidade
e construir uma vida simples, sem buscar
aplauso alheio. É suficiente contar com a aprovação da sua própria consciência.
Aprendendo com as Derrotas
Desde o século dezoito, muitos movimentos sociais fracassaram por uma
razão simples. Ao invés de promover uma consciência solidária e práticas de
ajuda mútua, estimularam a crença em uma ideologia, um partido, ou instituição.
Postergaram, assim, a construção de uma economia solidária para depois da suposta
chegada ao poder político. Acharam que isso era necessário. Na prática, limitaram-se
a fazer propaganda.
Quanto às religiões dogmáticas e centralizadas, há 2.000 anos elas vêm
sendo derrotadas em relação às suas metas
mais nobres. A religião convencional trilhou um caminho parecido ao do
marxismo: mais do que estimular a prática da sabedoria e da fraternidade, ela
estimulou a crença em palavras, imagens “sagradas” e rituais. O movimento
teosófico não está acima deste problema. Devido ao fenômeno da pseudoteosofia,
grande parte das associações teosóficas sofre da mesma doença.
O fracasso moral de grande parte dos movimentos idealistas causou a
expansão do materialismo consumista e
cético que vemos hoje. A herança cultural das religiões dogmáticas é
multidimensional e seu efeito paralisante possui uma força significativa. Do antigo
hábito de separar palavras e ações surgem os demagogos na política, os gurus
profissionais, as organizações pseudoteosóficas e outras formas de autoilusão.
O conjunto de cidadãos é tratado,
então, como uma massa de consumidores. Interessa o número do cartão de
crédito de cada um: os mercadores tomam conta do templo, conforme a advertência do Novo Testamento (João 2:
14-15).
Sacerdotes e instrutores da Nova Era vendem supremas iniciações espirituais por uma soma razoável
de dinheiro. Eles seguem a antiga tradição do Vaticano, que durante a idade
média vendia indulgências, garantindo instalações privilegiadas para os mais ricos
no céu da teologia autoritária. E não é necessário discutir os níveis atuais de
corrupção entre os políticos profissionais de certos países. Porém, nenhuma
forma de ignorância poderá impedir o amanhecer da Ética no século atual, conforme
foi previsto por Helena Blavatsky.[1]
A principal lição das derrotas é que palavras não substituem a ação.
Nenhum discurso é mais forte do que a prática diária da qual ele emerge. Por
isso é indispensável prestar atenção ao que fazemos, e ao modo como fazemos,
além de estar atentos ao que falamos e pensamos.
O Amor à Verdade Cura a Alma
Humana
O egoísmo é uma doença dos tempos modernos e pode ser superado. Em
relação à distância entre palavras e ações, o aspecto social da cura da alma surge
através de movimentos como a economia solidária, a defesa do meio ambiente, a
simplicidade voluntária, a luta pela ética na política, o cooperativismo e
outras formas de ajuda mútua. Tais práticas se espalham pelos mais diversos
países. É compreensível que a grande imprensa comercializada tente ignorá-las.
No plano ético e espiritual, a cura surge através da vivência direta e individual da sabedoria, que não necessita da
intermediação de burocracias religiosas ou instituições centralizadoras. A
cidadania planetária emerge ao mesmo tempo que nasce uma nova espiritualidade.
No século 21, um fio de coerência - inicialmente imperfeito e frágil - passa a
integrar todos os aspectos da vida, econômicos, sociais, ecológicos e filosóficos.
O caminho experimental é experiencial. Ele deve ser vivenciado, e a
pesquisa direta é uma das suas prioridades. Helena Blavatsky reproduziu em “Ísis Sem Véu” estas
frases de Narada, o antigo filósofo hindu:
“Jamais diga estas palavras: ‘Não conheço isso - portanto é falso.’ É
preciso estudar para saber, saber para compreender, compreender para julgar.” [2]
O amigo da sabedoria vê uma vantagem prática
em adotar um ensinamento filosófico. Se o ensinamento for verdadeiro - o que deve
ser criteriosamente examinado - a crença nele levará o estudante a viver de acordo com os
seus preceitos, e isso dará bons frutos a seu devido tempo. A crença deve ser dinâmica,
aberta ao desconhecido e pronta para ser
reformulada à medida que o estudante avança na luta por libertar-se de
ilusões. Cada ideia deve ser examinada.
“Existem mestres de sabedoria tal como aqueles que aparecem na
literatura teosófica?” - pergunta alguém.
Se eu não sei a resposta, vou estudar, pesquisar e verificar se posso
viver com mais paz e sabedoria ao aplicar na minha vida prática os ensinamentos
que vieram deles.
“Existe uma lei do carma?” -
pergunta outro.
Posso acreditar nisso, se observar o funcionamento dessa lei na vida
diária e perceber que o ensinamento sobre ela está presente em todas as
religiões.
“Existe uma lei da reencarnação?” - questiona uma terceira pessoa.
Talvez; irei investigar. Que
indícios há disso? Será que faria sentido aprender boa parte da arte de
viver durante uma longa vida, e então perder todas as lições adquiridas, no momento do abandono final do corpo físico? A ideia é absurda.
“Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, tudo se recicla”, diz a lei de
Lavoisier. “O que foi é o que há de ser,
e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, de novo debaixo do Sol”,
ensina a Bíblia em Eclesiastes (cap. 1); e esta é uma clara alusão à Lei dos Ciclos e da Reencarnação.
O aprendizado eficaz é quase sempre gradual. O estudante deve juntar as evidências pouco a pouco e com
paciência, para perceber diretamente e não “acreditar” em alguma coisa. Isso
vale tanto para a lei da reencarnação como para qualquer outra questão
importante. Cabe ao aprendiz lembrar, também, que sua percepção é imperfeita e
ela precisa ser constantemente questionada, testada e melhorada.
Em filosofia, as palavras são instrumentos sagrados porque participam da
busca da verdade. No entanto, elas não
são inquestionáveis, nem constituem fetiches mágicos em que se acredita sem
raciocinar. A diferença entre crença e percepção é o grande divisor de águas. É melhor seguir a nossa percepção, errar com ela e corrigir o
erro, do que acreditar em algo sem buscar o alicerce sólido da experiência, e assim
pouco ou nada aprender. Devemos ouvir os
outros, examinar os vários pontos de vista e depois tomar a nossa própria
decisão com firmeza.
Ao longo do caminho da sabedoria, a vida é vista como um laboratório de
experiências alquímicas. Devemos testar passo a passo, na prática, aquilo que
pensamos que possa ser verdade. No caso dos axiomas universais e abstratos, cabe
usar o método do estudo, da contemplação, da analogia e da dedução. Com o tempo
surgirá uma percepção intuitiva, que também deverá ser testada e alicerçada na
observação dos fatos.
O que significa, então, ser indivíduos autônomos e independentes?
Não é deixar de ser solidário. Não significa ser egocêntrico. É pensar
por si mesmo nas grandes questões da vida.
É também seguir o que nos parece
correto. É ser indiferente em relação aos falsos consensos baseados em ceticismo
ou crença cega, que parecem dominar o mundo atual. Através da experiência própria, construímos as
bases do futuro.
De que modo devo praticar
aquilo em que acredito?
Ninguém pode decidir isso por mim.
Até que ponto consigo, ou
conseguirei, viver de acordo com aquilo em que acredito?
Só eu posso responder a esta questão. Nenhuma outra pessoa é capaz de decidir
qual é o limite das minhas possibilidades de progresso.
Em qualquer caso, só uma prática diária livremente definida pelo
indivíduo pode justificar o fato de ele ter um ideal nobre na vida. Não importa
se nossa autodisciplina é “exigente” ou “moderada”. Ela deve ser adequada para
nós: precisa ser realizável e ter um certo grau de dificuldade. Da relação viva
entre ideal e prática surgem uma paz interior e um bem-estar que nada pode
perturbar.
NOTAS:
[1] Veja a parte três
do livro “The Fire and Light
of Theosophical Literature”, Carlos Cardoso
Aveline, The Aquarian Theosophist, 2013, pp.
191-255. O título da parte três é “Looking Ahead:
Towards 2075 and Beyond”.
[2] “Ísis Sem Véu”,
Helena P. Blavatsky, Ed. Pensamento, SP, edição em quatro volumes, ver volume
II, p. 296.
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Sobre
o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição
luso-brasileira de “Luz no Caminho”,
de M. C.
Com
tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos,
85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The
Aquarian Theosophist”.
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