1 de setembro de 2014

O Caminho Experimental

 Nem Crença Cega, Nem Ceticismo

Carlos Cardoso Aveline 



Nesta primeira parte do século 21, vivemos em meio a um  ambiente cultural que promove o ceticismo em relação a valores éticos e à sabedoria. Ao mesmo tempo, surge uma nova maneira de viver que tem como base a unidade entre pensamento, sentimento e ação.   

Logo abaixo da superfície da alma humana, há uma certa quantidade de desânimo e descrença, resultado da ausência de sabedoria. As raízes da ingenuidade são relativamente profundas. Para derrotar a ilusão do pessimismo, não é suficiente fazer um esforço para “pensar em algo bom”.

A crença religiosa cega e, no outro extremo, o ceticismo que tampouco consegue enxergar coisa alguma, são os dois lados da moeda falsa da ignorância espiritual. Os extremos reforçam um ao outro. A fé sem base real, alimentada no plano consciente, funciona como mecanismo emocional para fugir do desânimo. Deste modo não pode haver um progresso sólido.

A sociedade atual é parcialmente administrada por máquinas incapazes de pensar, e aqueles que buscam a sabedoria não são excessivamente numerosos. Eles são pioneiros: questionam as rotinas e rejeitam as crenças automáticas e seus rituais. Seguindo por um caminho estreito e íngreme,  eles são autorresponsáveis. Adotam uma visão universal e fazem esforços diários buscando o autoaperfeiçoamento. Suas metas são altruístas. Eles encontram a fonte de bênçãos na associação entre o concreto e o abstrato. Cada um deles se sente literalmente responsável pelo futuro do planeta.

Os amigos da sabedoria sabem que aquilo que se planta, se colhe. Estão conscientes de que aquilo que não se planta, não se colhe -  a não ser, talvez, na aparência e sem durabilidade. As injustiças que alguém pode sofrer serão compensadas no tempo certo. Não vale a pena, portanto,  pegar artificialmente o que é dos outros, e tampouco invejá-los. É recomendável  plantar o bem, lançar sementes de fraternidade e construir uma  vida simples, sem buscar aplauso alheio. É suficiente contar com a aprovação da sua própria consciência. 

Aprendendo com as Derrotas

Desde o século dezoito, muitos movimentos sociais fracassaram por uma razão simples. Ao invés de promover uma consciência solidária e práticas de ajuda mútua, estimularam a crença em uma ideologia, um partido, ou instituição. Postergaram, assim, a construção de uma economia solidária para depois da suposta chegada ao poder político. Acharam que isso era necessário. Na prática, limitaram-se a fazer propaganda.  

Quanto às religiões dogmáticas e centralizadas, há 2.000 anos elas vêm sendo derrotadas em relação às suas metas  mais nobres. A religião convencional trilhou um caminho parecido ao do marxismo: mais do que estimular a prática da sabedoria e da fraternidade, ela estimulou a crença em palavras, imagens “sagradas” e rituais. O movimento teosófico não está acima deste problema. Devido ao fenômeno da pseudoteosofia, grande parte das associações teosóficas sofre da mesma doença.  

O fracasso moral de grande parte dos movimentos idealistas causou a expansão do materialismo consumista e  cético que vemos hoje. A herança cultural das religiões dogmáticas é multidimensional e seu efeito paralisante possui uma força significativa. Do antigo hábito de separar palavras e ações surgem os demagogos na política, os gurus profissionais, as organizações pseudoteosóficas e outras formas de autoilusão.

O conjunto de cidadãos é tratado,  então, como uma massa de consumidores. Interessa o número do cartão de crédito de cada um: os mercadores tomam conta do templo, conforme a  advertência do Novo Testamento (João 2: 14-15). 

Sacerdotes e instrutores da Nova Era vendem supremas  iniciações espirituais por uma soma razoável de dinheiro. Eles seguem a antiga tradição do Vaticano, que durante a idade média vendia indulgências, garantindo  instalações privilegiadas para os mais ricos no céu da teologia autoritária. E não é necessário discutir os níveis atuais de corrupção entre os políticos profissionais de certos países. Porém, nenhuma forma de ignorância poderá impedir o amanhecer da Ética no século atual, conforme foi previsto por Helena Blavatsky.[1]  

A principal lição das derrotas é que palavras não substituem a ação. Nenhum discurso é mais forte do que a prática diária da qual ele emerge. Por isso é indispensável prestar atenção ao que fazemos, e ao modo como fazemos, além de estar atentos ao que falamos e pensamos. 

O Amor à Verdade Cura a Alma Humana

O egoísmo é uma doença dos tempos modernos e pode ser superado. Em relação à distância entre palavras e ações, o aspecto social da cura da alma surge através de movimentos como a economia solidária, a defesa do meio ambiente, a simplicidade voluntária, a luta pela ética na política, o cooperativismo e outras formas de ajuda mútua. Tais práticas se espalham pelos mais diversos países. É compreensível que a grande imprensa comercializada tente ignorá-las.

No plano ético e espiritual, a cura surge através da vivência direta e  individual da sabedoria, que não necessita da intermediação de burocracias religiosas ou instituições centralizadoras. A cidadania planetária emerge ao mesmo tempo que nasce uma nova espiritualidade. No século 21, um fio de coerência - inicialmente imperfeito e frágil - passa a integrar todos os aspectos da vida, econômicos, sociais, ecológicos e filosóficos.  

O caminho experimental é experiencial. Ele deve ser vivenciado, e a pesquisa direta é uma das suas prioridades.  Helena Blavatsky reproduziu em “Ísis Sem Véu” estas frases de Narada, o antigo filósofo hindu: 

“Jamais diga estas palavras: ‘Não conheço isso - portanto é falso.’ É preciso estudar para saber, saber para compreender, compreender para julgar.” [2]

O amigo da sabedoria vê uma vantagem prática em adotar um ensinamento filosófico. Se o ensinamento for verdadeiro - o que deve ser criteriosamente examinado - a crença nele  levará o estudante a viver de acordo com os seus preceitos, e isso dará bons frutos a seu devido tempo. A crença deve ser dinâmica, aberta ao desconhecido e pronta para ser  reformulada à medida que o estudante avança na luta por libertar-se de ilusões. Cada ideia deve ser examinada.

“Existem mestres de sabedoria tal como aqueles que aparecem na literatura teosófica?” - pergunta alguém.

Se eu não sei a resposta, vou estudar, pesquisar e verificar se posso viver com mais paz e sabedoria ao aplicar na minha vida prática os ensinamentos que vieram deles.

“Existe uma lei do  carma?” - pergunta outro.  

Posso acreditar nisso, se observar o funcionamento dessa lei na vida diária e perceber que o ensinamento sobre ela está presente em todas as religiões.

“Existe uma lei da reencarnação?” - questiona uma terceira pessoa.

Talvez; irei investigar.  Que indícios há disso? Será que faria sentido aprender boa parte da arte de viver  durante uma longa vida,  e então perder todas as lições adquiridas,  no momento do abandono final do corpo físico?  A ideia é absurda.

“Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma,  tudo se recicla”, diz a lei de Lavoisier.  “O que foi é o que há de ser, e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, de novo debaixo do Sol”, ensina a Bíblia em Eclesiastes (cap. 1); e esta é uma  clara alusão à Lei dos Ciclos e da Reencarnação.

O aprendizado eficaz é quase sempre gradual. O estudante deve  juntar as evidências pouco a pouco e com paciência, para perceber diretamente e não “acreditar” em alguma coisa. Isso vale tanto para a lei da reencarnação como para qualquer outra questão importante. Cabe ao aprendiz lembrar, também, que sua percepção é imperfeita e ela precisa ser constantemente questionada, testada  e melhorada.   

Em filosofia, as palavras são instrumentos sagrados porque participam da busca da verdade.  No entanto, elas não são inquestionáveis, nem constituem fetiches mágicos em que se acredita sem raciocinar. A diferença entre crença e percepção é  o grande divisor de águas.  É melhor seguir a  nossa percepção, errar com ela e corrigir o erro, do que acreditar em algo sem buscar o alicerce sólido da experiência, e assim pouco ou nada aprender.  Devemos ouvir os outros, examinar os vários pontos de vista e depois tomar a nossa própria decisão com firmeza.

Ao longo do caminho da sabedoria, a vida é vista como um laboratório de experiências alquímicas. Devemos testar passo a passo, na prática, aquilo que pensamos que possa ser verdade. No caso dos axiomas universais e abstratos, cabe usar o método do estudo, da contemplação, da analogia e da dedução. Com o tempo surgirá uma percepção intuitiva, que também deverá ser testada e alicerçada na observação dos fatos.   

O que significa, então, ser indivíduos autônomos e independentes?     

Não é deixar de ser solidário. Não significa ser egocêntrico. É pensar por si mesmo nas grandes questões da vida.  É  também seguir o que nos parece correto. É ser indiferente em relação aos falsos consensos baseados em ceticismo ou crença cega, que parecem dominar o mundo atual.  Através da experiência própria, construímos as bases do futuro. 

De que modo devo praticar aquilo em que acredito?  

Ninguém pode decidir isso por mim.

Até que ponto consigo, ou conseguirei, viver de acordo com aquilo em que acredito?  

Só eu posso responder a esta questão. Nenhuma outra pessoa é capaz de decidir qual é o limite das minhas possibilidades de progresso.   

Em qualquer caso, só uma prática diária livremente definida pelo indivíduo pode justificar o fato de ele ter um ideal nobre na vida. Não importa se nossa autodisciplina é “exigente” ou “moderada”. Ela deve ser adequada para nós: precisa ser realizável e ter um certo grau de dificuldade. Da relação viva entre ideal e prática surgem uma paz interior e um bem-estar que nada pode perturbar.

NOTAS:

[1] Veja a parte três do livro “The Fire and Light of Theosophical Literature”, Carlos Cardoso Aveline, The Aquarian Theosophist, 2013, pp.  191-255. O título da parte três é “Looking Ahead: Towards 2075 and Beyond”.

[2] “Ísis Sem Véu”, Helena P. Blavatsky, Ed. Pensamento, SP, edição em quatro volumes, ver volume II,  p. 296.

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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.


Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.

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