Todo Progresso é Resultado de Cooperação
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline

“De
todos os bens que a sabedoria
proporciona
para produzir a felicidade por
toda a
vida, o maior, sem comparação, é a amizade.”
(Epicuro)
A amizade
é uma forma de afeto em que há um sereno respeito pela liberdade e pela
autonomia de cada um.
Livre
de apegos cegos, o sentimento de amizade não é necessariamente dirigido apenas
a este ou aquele indivíduo em especial. Os sábios são amigos de todos os seres:
a amizade pode ser incondicional. Por outro lado, cada amizade tem suas
características específicas e possui uma capacidade própria de resistir a
adversidades. “Amigos na dificuldade,
amigos de verdade”, diz o ditado popular em língua inglesa.
A
verdadeira amizade surge do eu superior, ou alma imortal. Ela corresponde ao
primeiro objetivo do movimento teosófico moderno, que busca ser um núcleo de
fraternidade sem fronteiras. A mesma ideia está presente no budismo, no
taoísmo, no hinduísmo e outras filosofias orientais e ocidentais. A prática da amizade universal é pitagórica: Thomas Stanley, um filósofo do século 17, escreveu
em sua obra sobre o ensinamento de Pitágoras:
“Há
uma amizade e uma afinidade de todos por todos: entre deuses e homens, através da
compaixão e do sentimento religioso; entre as diferentes doutrinas; entre a
alma e o corpo (a parte racional e a parte irracional do ser humano) através da
filosofia e das suas teorias; e entre os diferentes seres humanos...” [1]
A
fraternidade universal é uma verdade básica que pode ser observada por todos.
No mundo animal - assim como no reino humano - a regra geral é dada pela
cooperação e pela amizade. A competição se dá no interior do processo de
cooperação. É esta última que predomina. O escritor anarquista russo Piotr
Kropotkin, um partidário da ação não-violenta, desenvolveu um cuidadoso estudo
histórico mostrando de modo inegável que, ao contrário do que o darwinismo
pensa, não foi a competição, mas sim a ajuda mútua, que possibilitou desde o início
da vida a evolução das espécies.[2]
Tudo
o que rodeia um cidadão - mesa, computador, ônibus, roupas, ruas, prédios - é
resultado da cooperação e da ajuda mútua. A civilização materialista leva seus
cidadãos a esquecerem disso. Muitos pensam que a competição é central, e isto
os torna infelizes. A maneira natural dos seres humanos relacionarem-se é
através da amizade. Por que motivo é tão
difícil seguir essa tendência natural? O ser humano cresce na luta com os
paradoxos. Um poderoso jogo de pressões e conveniências ensina a ele desde cedo
que é preciso desenvolver a competição. Assim se limita a amizade como impulso
natural e se dificulta a plena ajuda mútua. Uma condição básica para que
possamos voltar a viver plenamente a solidariedade consciente é ser autênticos,
primeiro, com nós mesmos. Aceitar os outros como eles são, estimulando o melhor
neles, e ser grato à vida inclusive pelas suas lições dolorosas, são hábitos
realistas que nos tornam mais sábios e mais capazes de compreender a vida e de ser
amigos.
Amar
é melhor do que ser amado. Ser amigo é mais importante que ter amigos. Mas a única base sólida para
a afinidade entre os seres humanos é um respeito sagrado de cada um por si
mesmo. Este sentimento surge da percepção de que pertencemos à alma imortal
existente em nosso próprio coração. Não temos uma alma, mas a alma nos
tem. Nosso “eu superior” é nossa origem
e nosso destino, e também nossa fonte de inspiração. O respeito por si mesmo
está, pois, na origem do respeito pelos outros. Voltaire, o filósofo francês do
século 18, escreveu:
“Amizade
é um contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Sensíveis,
porque um monge, um solitário, pode não ser ruim e viver sem conhecer a
amizade. Virtuosas, porque os maus não buscam mais que cúmplices. Os sensuais
buscam companheiros de devassidão. Os interesseiros reúnem sócios. Os políticos
congregam partidários. O comum dos homens ociosos mantêm relações. Os príncipes
têm cortesãos. Só os virtuosos possuem amigos.”[3]
Assim,
a verdadeira amizade é inseparável da ética e do altruísmo. O significado
original da palavra “filosofia” é “amor pela sabedoria”, e Voltaire afirma:
“O
filósofo é um amigo da sabedoria, ou seja, da verdade. Esse duplo caráter
esteve presente em todos os filósofos. Não houve nenhum na Antiguidade que não
desse exemplo de virtude aos homens e lições de verdades morais.” [4]
Sem
dúvida, é comum encontrar gente que ignora qualquer diferença entre ser amigo e
ser cúmplice. Deste ponto de vista, dois amigos devem apoiar um ao outro “em
qualquer situação”, inclusive em ações contrárias à verdade e ao equilíbrio.
Os
mafiosos criam os seus próprios “códigos de ética” e “compromissos de lealdade”.
O uso da amizade em jogos de conveniências gera confusão e sofrimento. O
pensador romano Cícero (106 a.C. - 43 a.C.) esclareceu esta questão há pouco
mais de dois mil anos. Em seu tratado sobre a amizade, ele escreveu:
“Uma associação de pessoas sem fé nem lei
não poderia se abrigar sob a desculpa da amizade (...). Essa é, portanto, a
primeira lei que se deve instaurar na amizade: não pedir a nossos amigos senão
coisas honestas, não prestar a nossos amigos senão serviços honestos, sem
esperar que eles nos sejam pedidos; permanecer sempre confiante, banir a hesitação,
ousar dar um conselho em total liberdade. No domínio da amizade, é preciso que
predomine a autoridade dos amigos mais bem avisados, e que esta influência se
aplique em acautelar os outros, não só com franqueza mas com suficiente
energia, se a situação o exigir, para que o conselho seja posto em prática.” [5]
Amizade
verdadeira é inseparável de sentimentos nobres, e Cícero explica:
“A
amizade nos foi dada pela natureza como auxiliar das nossas virtudes, e não
como cúmplice dos nossos vícios, para que a virtude de um, não podendo alcançar
sozinha o supremo bem, o alcance apoiada na virtude do outro”. Para o filósofo
romano, “há uma simpatia quase inevitável entre os bons entre si, que é o
princípio da amizade instaurado pela natureza.”
Em
outro trecho do seu tratado sobre a amizade, Cícero afirma:
“O
amor, de onde provém a palavra amizade, é no seu primeiro fundamento simpatia
recíproca (...). Na amizade nada é fingido, nada é simulado, tudo é verdadeiro
e espontâneo.”[6]
O
nível da franqueza existente entre amigos é um indicador da solidez do vínculo.
Quando dois amigos usam muita cautela para
não se ferirem mutuamente, a amizade pode ser superficial. Uma amizade mais
profunda produz certa ausência de cuidado com as palavras, e torna possível um
grau maior de espontaneidade. Às vezes isso só surge com o tempo: a confiança
mútua raramente se constrói em um dia.
Toda
amizade enfrenta testes, e, para Aristóteles, “somente a amizade entre pessoas
boas é imune à calúnia”. Ele explica:
“É
entre pessoas boas que encontramos a confiança, o sentimento de que uma nunca
fará mal à outra, e tudo mais que se espera em uma amizade sincera. Nas outras
espécies de amizade, todavia, nada impede o aparecimento de suspeitas”. [7]
Platão
fazia deste sentimento uma virtude social e política, elemento auxiliar importante
para a construção da sociedade ideal. Mas Epicuro, que viveu em um período de
decadência política, via a amizade como um fim em si e dava a ela importância suprema.
Considerado
um sábio por Helena Blavatsky, Epicuro tinha uma filosofia próxima à dos estoicos.
Ele fundou uma comunidade em Atenas para viver com os amigos, o Jardim, e sua
vida foi um exemplo de ética e autodisciplina. Para Epicuro, “de todos os bens
que a sabedoria proporciona para produzir a felicidade por toda a vida, o
maior, sem comparação, é a amizade”. E acrescentou: “A mesma convicção que nos
inspira a confiança de que nada existe de terrível que dure para sempre, nem
mesmo por muito tempo, também nos habilita a ver que dentro dos limites da vida
nada aumenta tanto a nossa segurança como a amizade.” [8]
Na Bíblia, o Eclesiástico parece concordar
com Epicuro. Primeiro o texto aconselha cautela (em 6: 7): “Se queres um amigo,
adquire-o pela prova e não te apresses a confiar nele”. Pouco depois, o
Eclesiástico acrescenta:
“Afasta-te de teus inimigos e acautela-te
com teus amigos. Um amigo fiel é um poderoso refúgio; quem o descobriu,
descobriu um tesouro. Um amigo fiel não tem preço, é imponderável seu valor. Um
amigo fiel é um bálsamo vital, e os que temem o Senhor o encontrarão. Aquele
que teme ao Senhor faz amigos verdadeiros, pois tal como ele é, assim é seu
amigo (6:13-17).”
Amigos
cometem erros. Mesmo numa amizade sincera pode ocorrer decepção. Por outro
lado, devemos respeitar nossos adversários. O texto clássico de teosofia “Luz
no Caminho” afirma o seguinte, sem meios termos:
“A
inteligência é imparcial: ninguém é teu inimigo; ninguém é teu amigo. Todos são
teus instrutores.” [9]
Carlos
Castaneda ensina que o adversário é sempre um instrumento precioso do nosso
crescimento, porque identifica as falhas que devemos corrigir e mostra como
funcionam em nós o medo e o ódio, para que, então, estes dois sentimentos sejam extirpados pela luz da
compreensão.
Outros autores, como Plutarco, destacam que
os amigos frequentemente acobertam nossas falhas, nos acostumam mal e nos levam
a ficar preguiçosos, enquanto que os adversários nos mantêm alertas, nos
obrigam a crescer e a superar a rotina que, de outro modo, nos engoliria. Tais
testemunhos reforçam a ideia de que a verdadeira amizade é um processo livre de
apego, em que o afeto não é colocado acima da sabedoria nem dos valores éticos,
mas sim a serviço deles. A verdadeira
amizade é nobre, e Khalil Gibran escreveu:
“Não
deve haver outra finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito.
Pois o amor que procura outra coisa a não ser a revelação do seu próprio
mistério não é amor, mas uma rede armada, e somente coisas inúteis são
apanhadas nela.”[10]
A
frase de Gibran pode ser dura, mas ela é realista. Quanto mais cedo
renunciarmos à autoilusão, melhor para nós. A verdadeira amizade requer
desapego. Os “Versos de Ouro” de
Pitágoras expressam a sabedoria teosófica, e neles podemos ler o seguinte sobre
a combinação de firmeza com flexibilidade:
“Escolhe
como amigo o mais sábio e virtuoso. Aproveita
seus discursos inspiradores, e aprende com os seus atos úteis e virtuosos. Mas
não afasta teu amigo por um pequeno erro, porque a força da vida é limitada
pela necessidade.” [11]
NOTAS:
[1] “Pythagoras, His Life and Teachings”, de Thomas
Stanley, Philosophical Research Society, Califórnia, EUA, 1970.
[2] “El
Apoyo Mútuo, Un Factor de la Evolución”, de Piotr Kropotkin, Ed. Proyección, Buenos Aires, 1970, 328 pp.
Há uma edição em inglês: “Mutual Aid, a factor of evolution”, Peter Kropotkin,
Dover Publications Inc., Mineola, New York, 2006, 312 pp.
[3]
“Dicionário Filosófico”, Voltaire, Ed. Martin Claret, p. 23.
[4]
“Dicionário Filosófico”, p. 232.
[5] “A
Amizade”, de Cícero, texto incluído no volume de ensaios dele intitulado “Saber
Envelhecer”, Ed. L&PM, Porto Alegre, 151 pp. Ver respectivamente as pp. 104
e 105.
[6] “A Amizade”, de
Cícero, em “Saber Envelhecer”, Ed. L&PM, Porto Alegre, 151 páginas. Ver
respectivamente as pp. 91 e 131.
[7] “Ética
a Nicômacos”, de Aristóteles, Ed. UnB, Brasília, terceira edição, 238 pp., ver
página 157.
[8] “Vidas
e Doutrinas dos Filósofos Ilustres”, Diógenes Laertios, Editora UnB, Brasília,
1977, 357 pp., ver p. 319.
[9] Veja a
análise do item 10 da segunda série de regras, em “Luz no Caminho”, M. C., The
Aquarian Theosophist, 2014, Portugal, tradução e notas de Carlos Cardoso
Aveline, 85 pp., p. 35.
[10] “O
Profeta”, Gibran Khalil Gibran, Ed. ACIGI, RJ, 89 pp., ver p. 56.
[11] A
íntegra de “Os Versos de Ouro de Pitágoras” está disponível em nossos websites
associados.
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O texto acima foi publicado inicialmente na edição de maio de 2011 de “O Teosofista”.
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