19 de outubro de 2014

O Poder da Amizade

Todo Progresso é Resultado de Cooperação

Carlos Cardoso Aveline




 “De todos os bens que a sabedoria
proporciona para produzir a felicidade por
toda a vida, o maior, sem comparação, é a amizade.”

(Epicuro)



A amizade é uma forma de afeto em que há um sereno respeito pela liberdade e pela autonomia de cada um.

Livre de apegos cegos, o sentimento de amizade não é necessariamente dirigido apenas a este ou aquele indivíduo em especial. Os sábios são amigos de todos os seres: a amizade pode ser incondicional. Por outro lado, cada amizade tem suas características específicas e possui uma capacidade própria de resistir a adversidades.  “Amigos na dificuldade, amigos de verdade”, diz o ditado popular em língua inglesa.

A verdadeira amizade surge do eu superior, ou alma imortal. Ela corresponde ao primeiro objetivo do movimento teosófico moderno, que busca ser um núcleo de fraternidade sem fronteiras. A mesma ideia está presente no budismo, no taoísmo, no hinduísmo e outras filosofias orientais e ocidentais. A prática da  amizade universal é pitagórica: Thomas Stanley, um filósofo do século 17, escreveu em sua obra sobre o ensinamento de Pitágoras:

“Há uma amizade e uma afinidade de todos por todos: entre deuses e homens, através da compaixão e do sentimento religioso; entre as diferentes doutrinas; entre a alma e o corpo (a parte racional e a parte irracional do ser humano) através da filosofia e das suas teorias; e entre os diferentes seres humanos...” [1]

A fraternidade universal é uma verdade básica que pode ser observada por todos. No mundo animal - assim como no reino humano - a regra geral é dada pela cooperação e pela amizade. A competição se dá no interior do processo de cooperação. É esta última que predomina. O escritor anarquista russo Piotr Kropotkin, um partidário da ação não-violenta, desenvolveu um cuidadoso estudo histórico mostrando de modo inegável que, ao contrário do que o darwinismo pensa, não foi a competição, mas sim a ajuda mútua, que possibilitou desde o início da vida a evolução das espécies.[2]  

Tudo o que rodeia um cidadão - mesa, computador, ônibus, roupas, ruas, prédios - é resultado da cooperação e da ajuda mútua. A civilização materialista leva seus cidadãos a esquecerem disso. Muitos pensam que a competição é central, e isto os torna infelizes. A maneira natural dos seres humanos relacionarem-se é através da amizade.  Por que motivo é tão difícil seguir essa tendência natural? O ser humano cresce na luta com os paradoxos. Um poderoso jogo de pressões e conveniências ensina a ele desde cedo que é preciso desenvolver a competição. Assim se limita a amizade como impulso natural e se dificulta a plena ajuda mútua. Uma condição básica para que possamos voltar a viver plenamente a solidariedade consciente é ser autênticos, primeiro, com nós mesmos. Aceitar os outros como eles são, estimulando o melhor neles, e ser grato à vida inclusive pelas suas lições dolorosas, são hábitos realistas que nos tornam mais sábios e mais capazes de compreender a vida e de ser amigos.

Amar é melhor do que ser amado.  Ser amigo é mais importante que ter amigos. Mas a única base sólida para a afinidade entre os seres humanos é um respeito sagrado de cada um por si mesmo. Este sentimento surge da percepção de que pertencemos à alma imortal existente em nosso próprio coração. Não temos uma alma, mas a alma nos tem.  Nosso “eu superior” é nossa origem e nosso destino, e também nossa fonte de inspiração. O respeito por si mesmo está, pois, na origem do respeito pelos outros. Voltaire, o filósofo francês do século 18, escreveu:  

“Amizade é um contrato tácito entre duas pessoas sensíveis e virtuosas. Sensíveis, porque um monge, um solitário, pode não ser ruim e viver sem conhecer a amizade. Virtuosas, porque os maus não buscam mais que cúmplices. Os sensuais buscam companheiros de devassidão. Os interesseiros reúnem sócios. Os políticos congregam partidários. O comum dos homens ociosos mantêm relações. Os príncipes têm cortesãos. Só os virtuosos possuem amigos.”[3]  

Assim, a verdadeira amizade é inseparável da ética e do altruísmo. O significado original da palavra “filosofia” é “amor pela sabedoria”, e Voltaire afirma:

“O filósofo é um amigo da sabedoria, ou seja, da verdade. Esse duplo caráter esteve presente em todos os filósofos. Não houve nenhum na Antiguidade que não desse exemplo de virtude aos homens e lições de verdades morais.” [4]            

Sem dúvida, é comum encontrar gente que ignora qualquer diferença entre ser amigo e ser cúmplice. Deste ponto de vista, dois amigos devem apoiar um ao outro “em qualquer situação”, inclusive em ações contrárias à verdade e ao equilíbrio.

Os mafiosos criam os seus próprios “códigos de ética” e “compromissos de lealdade”. O uso da amizade em jogos de conveniências gera confusão e sofrimento. O pensador romano Cícero (106 a.C. - 43 a.C.) esclareceu esta questão há pouco mais de dois mil anos. Em seu tratado sobre a amizade, ele escreveu:

“Uma associação de pessoas sem fé nem lei não poderia se abrigar sob a desculpa da amizade (...). Essa é, portanto, a primeira lei que se deve instaurar na amizade: não pedir a nossos amigos senão coisas honestas, não prestar a nossos amigos senão serviços honestos, sem esperar que eles nos sejam pedidos; permanecer sempre confiante, banir a hesitação, ousar dar um conselho em total liberdade. No domínio da amizade, é preciso que predomine a autoridade dos amigos mais bem avisados, e que esta influência se aplique em acautelar os outros, não só com franqueza mas com suficiente energia, se a situação o exigir, para que o conselho seja posto em prática.” [5]

Amizade verdadeira é inseparável de sentimentos nobres, e Cícero explica:

“A amizade nos foi dada pela natureza como auxiliar das nossas virtudes, e não como cúmplice dos nossos vícios, para que a virtude de um, não podendo alcançar sozinha o supremo bem, o alcance apoiada na virtude do outro”. Para o filósofo romano, “há uma simpatia quase inevitável entre os bons entre si, que é o princípio da amizade instaurado pela natureza.”

Em outro trecho do seu tratado sobre a amizade, Cícero afirma:

“O amor, de onde provém a palavra amizade, é no seu primeiro fundamento simpatia recíproca (...). Na amizade nada é fingido, nada é simulado, tudo é verdadeiro e espontâneo.”[6]   

O nível da franqueza existente entre amigos é um indicador da solidez do vínculo. Quando  dois amigos usam muita cautela para não se ferirem mutuamente, a amizade pode ser superficial. Uma amizade mais profunda produz certa ausência de cuidado com as palavras, e torna possível um grau maior de espontaneidade. Às vezes isso só surge com o tempo: a confiança mútua raramente se constrói em um dia.

Toda amizade enfrenta testes, e, para Aristóteles, “somente a amizade entre pessoas boas é imune à calúnia”. Ele explica:

“É entre pessoas boas que encontramos a confiança, o sentimento de que uma nunca fará mal à outra, e tudo mais que se espera em uma amizade sincera. Nas outras espécies de amizade, todavia, nada impede o aparecimento de suspeitas”. [7]

Platão fazia deste sentimento uma virtude social e política, elemento auxiliar importante para a construção da sociedade ideal. Mas Epicuro, que viveu em um período de decadência política, via a amizade como um fim em si e dava a ela importância suprema.

Considerado um sábio por Helena Blavatsky, Epicuro tinha uma filosofia próxima à dos estoicos. Ele fundou uma comunidade em Atenas para viver com os amigos, o Jardim, e sua vida foi um exemplo de ética e autodisciplina. Para Epicuro, “de todos os bens que a sabedoria proporciona para produzir a felicidade por toda a vida, o maior, sem comparação, é a amizade”. E acrescentou: “A mesma convicção que nos inspira a confiança de que nada existe de terrível que dure para sempre, nem mesmo por muito tempo, também nos habilita a ver que dentro dos limites da vida nada aumenta tanto a nossa segurança como a amizade.” [8]

Na Bíblia, o Eclesiástico parece concordar com Epicuro. Primeiro o texto aconselha cautela (em 6: 7): “Se queres um amigo, adquire-o pela prova e não te apresses a confiar nele”. Pouco depois, o Eclesiástico acrescenta:

“Afasta-te de teus inimigos e acautela-te com teus amigos. Um amigo fiel é um poderoso refúgio; quem o descobriu, descobriu um tesouro. Um amigo fiel não tem preço, é imponderável seu valor. Um amigo fiel é um bálsamo vital, e os que temem o Senhor o encontrarão. Aquele que teme ao Senhor faz amigos verdadeiros, pois tal como ele é, assim é seu amigo (6:13-17).”

Amigos cometem erros. Mesmo numa amizade sincera pode ocorrer decepção. Por outro lado, devemos respeitar nossos adversários. O texto clássico de teosofia “Luz no Caminho” afirma o seguinte, sem meios termos:

“A inteligência é imparcial: ninguém é teu inimigo; ninguém é teu amigo. Todos são teus instrutores.” [9]

Carlos Castaneda ensina que o adversário é sempre um instrumento precioso do nosso crescimento, porque identifica as falhas que devemos corrigir e mostra como funcionam em nós o medo e o ódio, para que, então, estes  dois sentimentos sejam extirpados pela luz da compreensão.

Outros autores, como Plutarco, destacam que os amigos frequentemente acobertam nossas falhas, nos acostumam mal e nos levam a ficar preguiçosos, enquanto que os adversários nos mantêm alertas, nos obrigam a crescer e a superar a rotina que, de outro modo, nos engoliria. Tais testemunhos reforçam a ideia de que a verdadeira amizade é um processo livre de apego, em que o afeto não é colocado acima da sabedoria nem dos valores éticos, mas sim a serviço deles.  A verdadeira amizade é nobre, e Khalil Gibran escreveu:

“Não deve haver outra finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito. Pois o amor que procura outra coisa a não ser a revelação do seu próprio mistério não é amor, mas uma rede armada, e somente coisas inúteis são apanhadas nela.”[10]

A frase de Gibran pode ser dura, mas ela é realista. Quanto mais cedo renunciarmos à autoilusão, melhor para nós. A verdadeira amizade requer desapego.  Os “Versos de Ouro” de Pitágoras expressam a sabedoria teosófica, e neles podemos ler o seguinte sobre a combinação de firmeza com flexibilidade:

“Escolhe como amigo o mais sábio e virtuoso. Aproveita seus discursos inspiradores, e aprende com os seus atos úteis e virtuosos. Mas não afasta teu amigo por um pequeno erro, porque a força da vida é limitada pela necessidade.” [11]

NOTAS:

[1] “Pythagoras, His Life and Teachings”, de Thomas Stanley, Philosophical Research Society, Califórnia, EUA, 1970.

[2] “El Apoyo Mútuo, Un Factor de la Evolución”, de Piotr Kropotkin,  Ed. Proyección, Buenos Aires, 1970, 328 pp. Há uma edição em inglês: “Mutual Aid, a factor of evolution”, Peter Kropotkin, Dover Publications Inc., Mineola, New York, 2006, 312 pp. 

[3] “Dicionário Filosófico”, Voltaire, Ed. Martin Claret, p. 23.

[4] “Dicionário Filosófico”, p. 232.

[5] “A Amizade”, de Cícero, texto incluído no volume de ensaios dele intitulado “Saber Envelhecer”, Ed. L&PM, Porto Alegre, 151 pp. Ver respectivamente as pp. 104 e 105.

[6] “A Amizade”, de Cícero, em “Saber Envelhecer”, Ed. L&PM, Porto Alegre, 151 páginas. Ver respectivamente as  pp. 91 e 131.

[7] “Ética a Nicômacos”, de Aristóteles, Ed. UnB, Brasília, terceira edição, 238 pp., ver página 157.

[8] “Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres”, Diógenes Laertios, Editora UnB, Brasília, 1977, 357 pp., ver p. 319.

[9] Veja a análise do item 10 da segunda série de regras, em “Luz no Caminho”, M. C., The Aquarian Theosophist, 2014, Portugal, tradução e notas de Carlos Cardoso Aveline, 85 pp., p. 35.

[10] “O Profeta”, Gibran Khalil Gibran, Ed. ACIGI, RJ, 89 pp., ver p. 56.

[11] A íntegra de Os Versos de Ouro de Pitágoras está disponível online.   

000

O texto acima foi está disponível  nos websites da Loja Independente de Teosofistas desde outubro de 2014. Foi publicado inicialmente na edição de maio de 2011 de “O Teosofista”.

000

Leia mais:








* Poema Acróstico - Fraternidade Universal, de Aracy Medeiros Clemente.

000



Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 

000