A Escada Platônica Que Une
Céu e Terra
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
O amor é a mais simples e natural das
energias, mas também é um mistério.
Ele é a lei do
equilíbrio que guia internamente a evolução do universo. Não há vida sem ele.
Cada ser humano é concebido por um ato de amor, nasce imerso na lei da harmonia
e é embalado desde o berço até o túmulo por mecanismos de ajuda mútua.
A afinidade entre
duas ou mais almas humanas sempre foi considerada um processo sagrado, e
Epicuro ensinava: “De todos os bens que a sabedoria nos proporciona para a
felicidade da nossa vida, o da amizade é, de longe, o maior.”
A amizade é uma
forma suave de afeto, e se apoia na paz de espírito do ser humano
equilibrado. Para Epicuro, “o homem
justo goza de uma perfeita tranquilidade da alma; mas o injusto está cheio de
perturbação.” [1] De fato, os afetos
desordenados provocam sofrimento, enquanto a moderação dá durabilidade aos
laços afetivos.
O amor é a prática
da unidade entre formas diferentes de vida e de existência. Para a filosofia
clássica, essa integração dinâmica de todos os seres é uma forma mais ampla de
amizade. “Há um parentesco fundamental entre todas as coisas do universo”,
afirmavam os pitagóricos.
O amor surge
espontaneamente na alma de quem percebe algo que é bom, belo ou verdadeiro. Mas
é recomendável ter cuidado: as aparências enganam e as armadilhas são
numerosas. O amor, separado da sabedoria, produz ilusão e sofrimento. Há
maldades e venenos que se revestem de açúcar, e existem prazeres que só
provocam dor. Aquilo que é agradável
pode não ser bom, nem belo, nem verdadeiro. Por outro lado, o trabalho e o
sacrifício são aparentemente desagradáveis, mas podem ser parte de algo maior
que traz consigo graus supremos de verdade, beleza e bondade.
É verdade que nem
tudo é feito de amor. Também há ódio no mundo, e o ódio pode matar. Ele destrói
principalmente aquele que odeia, e só secundariamente prejudica a quem é
odiado. Mas todos os rancores e frustrações humanos não passam de formas de
amor que não deram certo. “A mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer”,
escreveu Mário Quintana. A maldade é uma bondade que fracassou. O ódio é apenas
o amor, virado do avesso.
Desde o início dos
tempos, o imenso poder do amor - a essência da força vital - foi um enigma
difícil de decifrar. Não é fácil usar adequadamente essa energia ilimitada. A
humanidade vem tentando compreender o desafio do amor há milhares de anos, e
ele tem sido um tema absolutamente central nas principais religiões e
filosofias. Mas foi na década de 1950 que o pensador russo Pitirim Sorokin fez
um dos anúncios mais surpreendentes a esse respeito. Ele começou lembrando que
a ciência já havia descoberto o mundo subatômico. Havia iniciado o
aproveitamento da energia nuclear. Havia avançado na exploração espacial. E
afirmou que estava chegando, afinal, o momento de conhecer cientificamente o misterioso reino do amor
altruísta.
“Embora esse
estudo científico esteja agora no início”, acrescentava Sorokin, “é provável
que ele se torne uma área da maior importância para futuras pesquisas: o tópico
do amor inegoísta já foi colocado na agenda de hoje da história, e está para
transformar-se no seu assunto principal”. [2]
Poucas décadas
depois dessa profecia, descobertas revolucionárias sobre o funcionamento do
cérebro humano levaram ao desenvolvimento dos conceitos de inteligência emocional e inteligência
múltipla, envolvendo os dois hemisférios cerebrais superiores e também
cérebros mais primitivos que o neocórtex. A psicologia abriu portas e janelas
para uma nova disciplina que ensina a amar nossos semelhantes. Na área de
administração de empresas, por exemplo, ficou claro que a arte de relacionar-se
com as pessoas é decisiva para o desempenho profissional. Os médicos
reconheceram que a pureza e a qualidade das emoções são instrumentos essenciais
para evitar todos os tipos de doença.
Pesquisas
científicas comprovaram que o amor a Deus produz efeitos terapêuticos
perceptíveis. O médico norte-americano Larry Dossey escreveu que as orações têm
poder real de curar e de prevenir doenças. “O corpo parece gostar da prece, e
ele responde de modo saudável nos seus sistemas cardiovascular, imunológico e
outros”, disse Dossey. “Mas mais interessantes são os estudos que mostram que
preces de intercessão ou à distância também surtem efeito, ainda que o
indivíduo não saiba que a prece está sendo feita para ele, e se encontre longe
do local onde está a pessoa que reza.” [3]
Na Grécia antiga,
Platão ensinava que a ligação entre o mundo dos homens e o mundo dos deuses é
feita de amor. No Velho Testamento - Gênesis, 28 - a escada de Jacó liga céu e
terra graças ao amor dos anjos que sobem e descem por ela. Larry Dossey reforça
essa imagem ao afirmar que a oração é uma “ponte entre o nível humano e o nível
do absoluto”. Diferentes tradições culturais afirmam há milhares de anos que os
seres humanos se elevam até os deuses pelos sentimentos de fraternidade,
devoção e sinceridade - que são várias expressões de afeto -, enquanto os deuses
descem até o reino humano através da compaixão, outra variante do mesmo
sentimento de unidade interior.
Em qualquer
situação, o verdadeiro amor implica um processo espontâneo de autossacrifício.
Ele surge do fato de que a satisfação de dar felicidade a outrem é maior que a
satisfação de ter felicidade para si mesmo.
Há maneiras
incontáveis de expressar afeto. Amamos as pessoas mais próximas a nós e a
humanidade em seu conjunto. Amamos a
terra, as árvores e os animais. Admiramos o vento e o pôr do sol. O amor também
pode tomar a forma de uma violenta paixão romântica por uma pessoa cuja beleza
nos parece sem limites. Ele pode ser canalizado para a dedicação a uma causa
nobre, como um ideal social, e pode mostrar-se pela devoção a uma causa nobre, como
o bem da humanidade.
É verdade que o
amor queima as asas com que a nossa alma mortal anda pelo mundo da rotina
estabelecida. Ele nos empurra para
caminhos perigosos, rompe estruturas, destrói refúgios cômodos e nos coloca
diante do desafio do desconhecido. É assim que ele eleva nossa alma em direção
ao mundo divino.
Quando falta amor,
a vida parece uma comida sem sal ou pimenta, embolorada e com prazo de validade
longamente vencido. O amor é um fogo que aquece os corações. Ele mostra a
infinita beleza da vida ao nosso redor, e nos dá, pelo menos, três elementos
essenciais: coragem para enfrentar as situações de perigo, ânimo para vencer
toda e qualquer dificuldade, e paciência para suportar os sofrimentos que são
inevitáveis.
O amor é tão puro
quanto o olhar de uma criança. Ele pode iluminar o coração de alguém em apenas
um décimo de segundo, e tomar o controle da nossa consciência como um relâmpago
e um trovão - fazendo com que a vida nunca mais seja a mesma.
O amor pode ser
tão duradouro quanto a eternidade. Mas ele também é capaz de desaparecer sem
que sejamos capazes sequer de perceber o fato. Depois de muitos anos, ele pode
revelar-se, gradual ou repentinamente, como uma coisa amarga e falsa. Mas
cuidado: mesmo quando você pensa que o afeto morreu, ele ainda pode voltar de
repente - e com mais força do que nunca.
Na vida tudo flui
e nada pode ser imobilizado. Por isso nem sempre dão certo as tentativas de
institucionalizar o processo vivo do amor. Heráclito de Éfeso ensinou que “não
é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio”.
O rio muda a cada instante, assim como nós. Da mesma forma, por mais bela que seja uma
mulher, homem algum pode abraçá-la duas vezes. Entre um abraço e outro, o fluxo
da vida causou mudanças, e elas podem ser fundamentais.
Por esse motivo os
afetos devem saber morrer e renascer a cada dia. Um amor de longo prazo é um
equilíbrio permanente entre renovação e estabilidade. O amor dura quando
anda junto com o desapego e o respeito,
e quando está aberto ao movimento do novo e à evolução interior da alma. Mas
para isso é recomendável que o centro de gravidade do sentimento de união
esteja instalado nos níveis superiores da nossa consciência, porque é ali que
ficam as realidades permanentes.
Na sua obra “O
Banquete”, Platão afirma que o amor
movimenta todos os níveis da consciência humana, desde o mais inferior até o
mais divino. E ele ensina que há uma “escada do amor” por onde nossa capacidade
afetiva pode elevar-se, gradualmente, do mundo material para o mundo divino. Essa escada possui sete grandes degraus:
1) O primeiro
deles é o amor por uma pessoa fisicamente bela. Esse processo vai além da mera
atração física e inclui os sentimentos da alma.
2) O segundo
degrau da escada é o amor por toda e qualquer beleza física, onde quer que ela
esteja. É o amor pelas pessoas belas em
geral, pelos animais, pela natureza, pelas árvores, pelas estrelas no céu
noturno e assim sucessivamente.
3) O terceiro
estágio é o amor pela beleza mental e moral, que é independente das formas
físicas. Aqui amamos ou admiramos alguém pela beleza da sua alma e das suas ideias.
4) Depois vem o
amor pelas ações belas - a ética. Admiramos os gestos de solidariedade e a
prática da compaixão. Temos vontade de seguir o exemplo dos santos, dos sábios
e dos líderes sociais altruístas.
5) Em quinto lugar
há o compromisso com as instituições coletivas belas. Esse é o amor pela
democracia participativa, por um ideal humanitário, pelos movimentos sociais
que defendem os direitos humanos e a preservação ambiental.
6) Há então o amor
pela ciência e pelo conhecimento universal. Esse é o amor do aprendiz por
aquilo que está estudando e aprendendo. Cada área de conhecimento humano, sem
exceção, visa produzir coisas boas, belas e verdadeiras. Para Platão, a
medicina é uma forma de amor, porque trata de promover harmonia entre as
diferentes partes e energias do corpo humano. A música é a arte de produzir
sons harmoniosos que despertam na alma um sentimento de beleza. A agricultura
tem como meta promover vida e harmonia no espaço rural.
7) Em sétimo lugar
vem o amor pela beleza absoluta, a bondade abstrata em si mesma, que está presente ao mesmo tempo
na alma do universo e no coração de cada ser humano. Segundo Platão, esse é o amor que não está sujeito às
oscilações da vida. Ele paira acima das “ninharias mortais” e das incertezas do
afeto físico. Esse é o amor real. É o
tesouro que está nos céus e que o tempo não pode corroer.
Buscando o alto da
escada, os aprendizes da sabedoria amam sem apegar-se excessivamente a nada.
Eles meditam na lição de Heráclito sobre o fluxo universal das coisas. Abordando a vida dos filósofos, Platão
escreveu: “A perda do seu patrimônio e a pobreza não provocam medo, como ocorre
com a multidão dos amigos das riquezas materiais. Da mesma forma, uma vida sem
honrarias e sem glória, provocada pelo infortúnio, não é capaz de
atemorizá-los, como faz com os que amam o poder e as honras. Por isso os
filósofos permanecem afastados desse tipo de
desejos”.[4]
Como qualquer
energia divina, o amor é uma bênção onipresente e está disponível em toda
parte. Sempre é possível sintonizar nossa existência individual com a vibração
da harmonia.
Em certos momentos
o amor nos ilumina à maneira precária de um relâmpago passageiro no meio da
noite, ou como a luz frágil de um fósforo na escuridão. Em outras situações ele
brilha como uma luz eterna. Mas nem tudo que a luz do amor revela é lindo. Suas
lições podem ser amargas, ou doces, mas são sempre valiosas - e é melhor manter
os olhos bem abertos, para garantir que o tempo não passará em vão.
NOTAS:
[1]
“Epicuro, as Luzes da Ética”, de João Quartim de Moraes, Ed. Moderna, SP, 110
pp., ver pp. 96 e 95, respectivamente.
[2]
“A Visão Espiritual da Relação Homem & Mulher”, obra compilada por Scott
Miners, Ed. Teosófica, Brasília, 1992, ver p. 89 e seguintes.
[3]
Introdução de Larry Dossey à obra “Tudo Começa Com a Prece”, de Madre Teresa de
Calcutá, Ed. Teosófica, Brasília, ver p. VIII.
[4]
“Platão, Vida e Obra”, Diálogo “Fédon”, coleção “Os Pensadores”, Ed. Nova
Cultural, SP, 1991, 261 pp., ver p. 87.
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O texto acima foi inicialmente publicado na
revista “Planeta”, de São Paulo, na edição de dezembro de 2003.
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Sobre o mistério do despertar individual
para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos
Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014
por “The Aquarian Theosophist”.
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