Examinando o Processo da Autoilusão
John Garrigues
John Garrigues
Imagem do Buddha esculpida na montanha Mengshan, na China
“Também é meu amado servidor (….) aquele
para quem o elogio e a acusação são mesma coisa.”
Bhagavad-Gita [1]
O que são o
elogio e a acusação, exceto um par de opostos que podemos encontrar por todo
lado? Estas são duas maneiras pelas
quais os eus inferiores das outras pessoas reagem diante das nossas
personalidades e das nossas ações, quer elas sejam espontâneas ou resultem de
uma decisão interna.
Desejar que os nossos esforços recebam louvor e não
sejam criticados é o mesmo que esperar resultados. E isso não deve ocorrer, se estivermos
tentando viver à altura daquilo que conhecemos de mais nobre. Quem teme a censura
alheia pode descobrir que age como um covarde moral em tempos de crise. Aquele
que corre atrás de elogios pode estar disposto a trair a confiança depositada
nele, para justificar as suas ações ou para vangloriar-se de boas ações que
deveriam permanecer em silêncio.
Alguém pode pensar que só uma pessoa extremamente
egoísta, fechada em sua admiração por si mesma e indiferente à opinião de todos
os outros, poderia enxergar o elogio e a crítica com completa equanimidade.
Mas frequentemente a pessoa mais satisfeita consigo
mesma é a mais suscetível à lisonja. Convencido do seu próprio valor, este tipo
de indivíduo considera automaticamente verdadeiro todo testemunho que confirme sua opinião. Ele se
expande com elogios, e em geral aumenta generosamente a esfera da sua estima
para que fique incluído nela o lisonjeador.
Até gente cuja aparência é de grande humildade pode
ter uma ânsia por louvores. Com frequência, é praticado um excesso de desprezo
verbal por si mesmo, com o objetivo subconsciente de que alguém contrarie as
autocríticas. Os elogios são então recebidos com uma “discordância” aparente e
uma satisfação interior.
O elogio é uma substância tóxica sutil, e preservá-lo
na consciência é abrir espaço para a autoilusão. Os sábios denunciam o sistema
competitivo em que vivemos e no qual as disputas,
declaradas ou não, marcam nossa trajetória desde a infância até a velhice. A
objeção que eles fazem à disputa não se deve principalmente à humilhação
daqueles que “participaram da competição” e perderam, mas à tensão acumulada
sobre os vencedores.
Já se disse, com razão, que para cada mil pessoas que
conseguem suportar a adversidade, uma, apenas, é capaz de administrar
corretamente a prosperidade. Com facilidade a cabeça perde o bom senso e o
vencedor aceita como sua melhor avaliação de si mesmo a opinião momentânea da
multidão volúvel. “Nunca houve, nem haverá, nem existe agora alguém que seja
totalmente elogiado ou inteiramente condenado.” [2]
Cedo ou tarde os aplausos da multidão silenciam ou se transformam
em ondas de ridículo e crítica; mas a autoestima de um indivíduo, uma vez
inflada, não desinfla facilmente.
É o eu inferior que as pessoas elogiam, em noventa por
cento dos casos; a beleza do rosto e da aparência e alguma proeza física; ou o “temperamento”,
isto é, o fato de controlar os sentimentos; ou as emoções amigáveis, ou um
intelecto capaz de vencer os desafios que ameaçam o ser humano no plano físico.
O que é que o verdadeiro ser tem a ver com estas coisas, exceto como
ferramentas cuja utilidade depende de elas estarem a serviço do que é
verdadeiro? Enquanto o domínio das
coisas inferiores não for completo, o elogio fortalecerá a resistência
enfrentada pela vontade do verdadeiro ser humano e tornará a sua tarefa mais
difícil, e mais longa. E o que dizer da
crítica?
Só alguém de uma retidão consciente, que vê a si
próprio como uma gota no vasto oceano da vida e que se considera tão importante
quanto o mais humilde dos seres humanos, é capaz de suportar as críticas sem
sentir-se perturbado. O Buddha perguntou:
“Haverá neste mundo algum homem suficientemente
modesto, suficientemente humilde, para não dar importância ao fato de ser
criticado, assim como um cavalo bem treinado não perde o controle quando
atingido pelo açoite?” [3]
Uma variedade de hipocrisia consiste em tentar
esconder dos outros as falhas que ainda nos distanciam do ser humano que
queremos ser. Todos nós admitimos, em momentos de calma, que estamos longe da
perfeição buscada; mas não gostamos que os outros percebam isso. Gostaríamos de impressionar aqueles a quem
conhecemos com as nossas boas qualidades, e enfrentar sem testemunhas, se é que
realmente enfrentamos, os inimigos situados dentro da nossa casa.
Sábio é o homem que examina imparcialmente a acusação
feita contra si. Ele busca nela alguma possível porção de verdade, mesmo
pequena, e, tendo-a encontrado, faz um esforço mais intenso por corrigir-se.
Enquanto isso, ele afasta dos seus pensamentos a crítica e todo sentimento de rancor. Quando damos demasiada
importância à acusação, ficamos sem iniciativa ou desenvolvemos um sentimento
de inferioridade que corresponde ao “complexo de pecador miserável” estimulado
pela teologia cristã.
Considerar que o elogio e a crítica têm a mesma
substância não significa, portanto, ignorá-los. Como qualquer outra
experiência, o louvor e a acusação oferecem lições úteis para o homem sábio.
Ambos exigem uma avaliação crítica e uma análise isenta, com as quais podemos
aprender muitas coisas sobre a natureza humana, sobre o caráter do crítico, e
sobre nós próprios. O elogio vindo de
uma fonte ilegítima pode ser um sinal de perigo e será percebido como tal pelos
sábios. Por outro lado, críticas podem ser feitas contra uma conduta nobre, cujo
valor é impossível de apreciar do ponto de vista do iludido e daquele que
possui uma mente inferior.
Cabe lembrar que,
quando damos demasiada importância ao elogio ou à acusação, situamos nossas
ideias no plano da personalidade, estimulando as tendências que devemos
eliminar.
Aquele que esquece de si mesmo no trabalho dos Mestres
pela humanidade não tem tempo a perder
com as avaliações positivas ou negativas daqueles que o rodeiam. “A rocha sólida não se abala por causa de um
vento forte. O sábio não se abala por causa de elogios ou acusações.” [4]
NOTAS:
[1] Veja o capítulo XII de “Bhagavad-Gita”, versão de William
Q. Judge, Theosophy Co., Los Angeles, 1986, 133 pp., ver pp. 91-92. Traduzida,
a frase completa diz: “Também é meu amado servidor aquele que tem a mesma
atitude diante de amigo e inimigo, diante da homenagem e da desonra, diante do
frio e do calor, na dor e no prazer; aquele para quem o elogio e a acusação são
a mesma coisa, aquele que fala pouco, que permanece contente com quaisquer
acontecimentos, que não possui moradia fixa e cujo coração, cheio de devoção, é
firmemente estável.” (CCA)
[2] Capítulo 17 de “O Dhammapada”,
edição online de nossos websites
associados. Ver parágrafo 228.
(CCA)
[3] “O Dhammapada”, Capítulo 10, edição de nossos websites associados, parágrafo 143.(CCA)
[4] “O Dhammapada”, Capítulo 6, edição
de nossos websites, parágrafo 81. (CCA)
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O artigo “O Elogio e a Crítica” foi traduzido da
edição de maio de 2015 de “The Aquarian Theosophist”. Título em inglês: “On Praise and Blame”. O texto foi
publicado pela primeira vez em março de 1932 na revista “Theosophy”, em Los Angeles (pp. 206-207), sob o título “Praise and
Blame”.
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Sobre o mistério do despertar individual
para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos
Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014
por “The Aquarian Theosophist”.
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