Examinando as Bases da
Decadência Ética, e o Modo da sua Cura
Ivan A. Il’in
O equilíbrio, a justiça e o
autorrespeito são três fatores decisivos em filosofia
0000000000000000000000000000000000000
Nota Editorial de 2016
Depois de ser amplamente ignorado
Nota Editorial de 2016
Depois de ser amplamente ignorado
durante décadas, Ivan A. Il’in surgiu
no
século 21 como um dos principais filósofos
russos de todos os tempos. O seu livro “On
the
Essence of Legal Consciousness”, do
qual é
traduzido o texto a seguir, pode ser visto
como um
estudo sobre o despertar de Antahkarana, a
linha
de comunicação entre o eu superior e o eu
inferior.
O antahkarana
é um dos principais e mais
decisivos conceitos da teosofia moderna.
Acrescentamos notas de rodapé
explicativas.
(Carlos Cardoso Aveline)
00000000000000000000000000000000000000000000000
Uma pessoa que não
tem consciência do seu próprio valor espiritual, isto é, que não vivencia este
valor, leva uma vida deformada, degradada, doentia; e as doenças desta vida são
profundamente instrutivas; elas podem ser descritas como as doenças da
autoafirmação espiritual.
Na
base do respeito espiritual por si mesmo deve haver uma percepção verdadeira de si mesmo, e não uma ilusão nem tampouco
uma vaidade doentia; um autêntico valor
espiritual, e não um sinal externo e gasto de privilégios obsoletos; um ato
pessoal de autoafirmação, e não o
pronunciamento talvez equivocado ou insincero de alguma outra pessoa. Perceber
a si mesmo como uma força que está voltada para o bem não deve ser algo
acidental ou efêmero, mas sim uma percepção
autêntica e objetiva. Isso não pode e não deve ser substituído por nenhum
tipo de sucedâneo: nem por uma imaginação sonhadora sobre as supostas virtudes
do indivíduo e o seu “destino histórico”, e tampouco por um orgulho sem
substância e um cultivo de
“honra” formal, nem pelo veredito casual e mutável da “opinião social”,
nem pelas “ondas” egoístas e caprichosas
da “opinião pública”. A percepção do seu
próprio valor espiritual tem na sua base uma experiência que é independente, pessoal, e ao mesmo tempo objetivamente
valiosa. Um cidadão [1] deve ser
um processo vivo e autossuficiente de acumulação de valor espiritual; e
qualquer falha nesta experiência vivencial - uma falha em autossuficiência ou em objetividade
- torna a consciência legal [2]
pouco firme, vacilante, fraca em vitalidade, e instável.
Um
indivíduo que respeite a si mesmo só porque, ou na medida em que os outros o
respeitam, na verdade não tem respeito
por si próprio; a sua saúde espiritual depende das impressões secundárias
dos outros, isto é, da ignorância e da incompetência dos outros; na realidade
dos fatos, ele é atormentado por sentimentos de inferioridade, pela vaidade, e
pelo desejo de êxito exterior; e se este sucesso e popularidade o traem, então
ele deixa de sentir o seu próprio valor espiritual, e a sua personalidade perde
a forma. Do mesmo modo, um indivíduo que respeita a si mesmo apenas por causa
das suas qualidades supostas, ou puramente externas, ou empiricamente acidentais,
isto é, por aquilo que não constitui
a sua essência espiritual (pela
força, pela beleza, pela riqueza), na prática não respeita a si mesmo: a sua saúde espiritual depende daquilo que
pode pertencer a ele, mas que não é ele
em si mesmo, ou seja, depende do que é acidental e não essencial, do que
não tem valor próprio, de fatos casuais da sua personalidade; na realidade dos
fatos ele acumula uma suposta riqueza e multiplica o seu poder ou sua
propriedade, mas não afirma o valor interno do seu espírito.
Ainda
mais deplorável é o estado da pessoa completamente incapaz de respeitar a si
mesma, e tão acostumada a isso que não vivencia de modo algum o seu próprio
valor espiritual. Em alguma ocasião, talvez na infância, a alma de tal pessoa
não pôde suportar alguma provação demasiado pesada para o seu sentido de
individualidade; não pôde suportar a pressão das circunstâncias externas ou das
suas próprias inclinações instintivas, não pôde lidar com alguma tarefa e
responsabilidade de importância vital. Ela cedeu, e nesta mesma sujeição
encontrou o veneno de um certo prazer. O ato da autoafirmação espiritual não
teve êxito; a alma não resistiu na luta e aceitou sua humilhação, desanimada e
derrotada. Não conseguiu afirmar a si mesma como uma força; ao invés disso, tendo aceitado a humilhação, abandonou sua confiança em si mesma e na sua natureza benéfica. Uma vez que se submeteu às
suas paixões ou a uma vontade alheia, e tendo descoberto a doentia doçura da
subordinação e da humilhação, a alma não tem mais a força para forjar para si
mesma uma forma pessoal de espírito. Não vê o seu próprio valor e não respeita
a si mesma; e como é impossível esconder esta percepção de si mesma, os outros
se acostumam imperceptivelmente a não respeitá-la, e desta maneira fortalecem o
seu desrespeito por si mesma. A pessoa gradualmente adquire a estrutura
psíquica de um escravo, acostumado a
não respeitar a si próprio. E a tragédia da sua situação se revela com força
especial quando ele tenta libertar-se através de uma rebelião ou insurreição;
esta rebelião não o liberta, porque os seus grilhões têm uma natureza interna; a revolta apenas revela o que
uma pessoa destituída do sentimento de valor próprio é capaz de fazer, enquanto
que o peso do desrespeito por si mesmo arrasta o rebelde de volta para um
estado abjeto. Este é, por exemplo, precisamente o resultado do castigo
corporal, especialmente quando sofrido na primeira infância, e só a cegueira
espiritual poderia haver criado o ditado popular segundo o qual aquele que foi
espancado é superior a quem não o foi.
É
óbvio que a consciência legal de pessoas que não respeitam a si próprias, ou
que respeitam os seus “não-eus”, sofre de doenças profundas. É como se a
personalidade delas fosse destituída de raiz e tronco; sua personalidade tem
uma existência dependente e fantasmagórica; estritamente falando, possui apenas
uma existência aparente, figurativamente humana. É apenas um médium para as
suas paixões e as influências de outros, individuais e sociais; estas
influências, em qualquer momento dado, entram em uma combinação entre si, e
esta combinação determina o seu comportamento. Por esta razão não está em
condições de determinar a sua vida através de decisões independentes, ou de
construir o seu futuro e de lutar pelas metas que escolheu para si. Tendo
perdido o seu centro espiritual, enfraqueceu ou mesmo destruiu o centro de
volição própria, e substitui a vontade pela teimosia, o autorrespeito pelo
orgulho, o sentimento de seu próprio valor pela vanglória. A alma experimenta a
degeneração ou mesmo a corrupção espiritual.
Uma
vez que o sentido do seu próprio valor não foi afirmado e está enfraquecido, ou
foi ferido e não curou-se, isso enfraquece a fé da pessoa em si mesma e em suas capacidades. Abre-se um certo
vazio e um oco na profundidade do seu espírito pessoal, o que rouba energia da
sua atividade vital e a torna incapaz de uma resistência firme e corajosa à
força das coisas e das pessoas. Qualquer provação desperta em tal indivíduo desânimo,
dúvidas sobre si mesmo, e medo; a ansiedade e a covardia tomam conta da sua
alma e o levam pelo caminho da docilidade e da passividade destituídas de
valor. Uma tal pessoa resulta incapaz tanto de autoafirmação espiritual, porque a converte numa tempestade de
paixões, quanto de autonegação psíquica,
porque não possui uma relação viva com o valor mais elevado, o objeto sagrado.
A verdadeira autonegação não é uma negação do espírito, mas da alma, no nome do
espírito; e por esta razão pressupõe um verdadeiro respeito pelo espírito e por
si mesmo, e não leva à humilhação, mas à afirmação do valor pessoal.
Não
respeitar a si mesmo significa vivenciar a sua própria fraqueza no que é bom. Aquele que aceita esta fraqueza e se
reconcilia com ela alimenta em si mesmo um bem-estar reduzido e permanece perpetuamente
a um passo de novas humilhações; uma vez que “lavou as mãos” em relação a si
mesmo, ele fica constantemente à beira de um novo colapso espiritual,
ultrapassando cada vez mais facilmente os limites do que é moral e legal. E
aquele que não aceita esta sua fraqueza, mas tampouco consegue afirmar-se no
que é bom, tenta afirmar o seu poder à parte do que é bom, ou contrariando-o, e
transforma a sua vida em uma mistura de desconfiança com hipocrisia.
E
se, para culminar isso tudo, existe na alma de uma pessoa uma consciência da sua própria falta de
valor ou maldade, ao mesmo tempo que o orgulho
é elevado e exacerbado, então surge o chamado caráter subterrâneo, em toda a sua miséria e deformidade. O indivíduo
começa a vivenciar a sua falta de respeito por si mesmo como se fosse um
desrespeito dos outros em relação a ele; o sentimento do seu próprio infortúnio
original não lhe dá sossego; cada vantagem de outra pessoa é para ele como um
insulto, e a sua vida se converte gradualmente em uma ofensa pessoal constante,
atormentadora e imperdoável. A sua alma é torturada por uma falta de consideração por si mesma, da
qual ela às vezes nem sequer tem consciência; o seu amor-próprio não pode
encontrar satisfação com nenhum êxito externo; não pode ser saciado por
qualquer lisonja, porque em geral não é possível que a sua redenção venha de
fora. O sentimento de segurança só vem quando a alma se volta para dentro; só
surge a partir de uma ação curativa de autoafirmação
espiritual; e esta ação não pode ser realizada por uma decisão consciente,
arbitrária, porque a alma foge da visão insuportável da sua própria vacuidade, da
sua deformidade e sua falta de valor, e esconde a sua doença e seu sofrimento
no subterrâneo profundo do inconsciente; e, expulsando a sua própria doença [3], perde acesso a ela e deixa de ter
poder sobre ela, ficando presa a uma trágica desesperança.
E em
meio a tudo isso a pessoa não encontra uma base objetiva para a sua vida e
oscila entre sofrimentos e humilhações, depravada e miserável, rejeitada por si
mesma, não-legitimada e sem sossego.
Perder
a base objetiva da vida é perder a dimensão
espiritual das coisas e das ações, e perder qualquer critério de valores
objetivos. A vida de uma tal pessoa se torna um verdadeiro reino da vulgaridade, porque a vulgaridade é uma cegueira da alma em relação à
importância objetiva das coisas. Uma alma espiritualmente cega vive com os
conteúdos desestruturados e as medidas precárias de um estilo pessoal de vida;
percebe tudo no plano das suas necessidades
e paixões, e mede a vida em termos de interesse
e poder. E precisamente por esta razão a sua vida se transforma em um
pântano de fraqueza, confusão e vício. Mas a sua principal confusão está no
não-reconhecimento do espírito, da sua objetividade e do seu valor
incondicional. A pessoa permanece tendo uma certeza ingênua e imediata de que
“a coisa mais importante na vida é ela própria”, e de que nela, o mais
importante é o “íntimo”, o empiricamente singular, o subjetivo; e isto já fica
próximo de preferir as suas próprias necessidades, optando por elas de modo
instantâneo e deixando de lado tudo o mais. É precisamente nisso que está a
fonte dos diversos tipos de corrupção.
Na
base de toda corrupção - subornos, corrupção pública, todo tipo de demagogia e
traição mercenária internacional - estão uma
cegueira espiritual e uma ausência de
valor espiritual do próprio indivíduo. A cegueira dá lugar a uma
incapacidade de ver a gradação das metas de acordo com o seu valor, e a falta
de valor espiritual cria uma vontade seriamente desequilibrada, uma disposição
sem escrúpulos de desistir do espiritual, do objetivo e do universal, em função
do interesse próprio e da posse. É por isso que um regime político incapaz de
alimentar no povo uma percepção do seu próprio valor está condenado a
desintegrar-se, finalmente, devido ao triunfo do egoísmo privado sobre o interesse público, e da vulgaridade sobre o espírito.
Isso
já deixa claro que uma pessoa destituída do sentimento do seu próprio valor só
pode manter a aparência de humanidade sob a pressão de um poder externo - donos de terra, poder estatal - e da vantagem pessoal; com o colapso dos dois
fatores, o indivíduo facilmente perde a aparência de humanidade, e os
sentimentos exacerbados o arrastam para a queda e o caos. A disfunção
espiritual sempre pode mergulhá-lo em uma situação de fraqueza de vontade,
irresponsabilidade e debilidade mental. No sentido político, ele não é um ser
legalmente competente. Não estão ao seu alcance uma consciência legal saudável,
uma verdadeira lealdade, e tampouco patriotismo ou uma forma política de
pensamento: porque tudo isso possui uma natureza espiritual para a qual ele é
cego e indiferente. Portanto ele não pode exercer inteligentemente autoridade
pública ou construir uma organização social. Não respeitando a si mesmo, ele
também não respeita o cidadão em si;
não compreendendo o seu próprio valor
espiritual, ele deixa de ver valor espiritual em outros cidadãos, assim como no Estado,
ou no poder do Estado. Ele percebe o valor dos outros como um poder alheio, e vê nele apenas um instrumento para si próprio ou um perigo para si próprio. Colocado frente
a frente com o poder do Estado, ou pelo menos com os seus representantes, ele
não sente respeito em sua alma, nem confiança, nem um sentimento de unidade
vital, mas adota uma submissão disfarçada
que se manifesta, conforme as circunstâncias, seja na forma de uma lisonja astuciosa, ou uma audaciosa ameaça. Uma tal pessoa não defende o seu
valor nem diante de seus superiores, nem diante de pessoas sobre as quais tenha
poder. Com os seus superiores ele é agradável, obsequioso e servil; na melhor
das hipóteses ele os serve como um verdadeiro criado; nos casos mais graves ele
esconde sob a atitude servil uma inclinação cheia de desprezo a humilhar o seu
chefe do mesmo modo como ele foi humilhado diante do seu chefe. Em relação aos
que lhe são inferiores na escala social ele mostra desprezo, insensibilidade e
despotismo. Na melhor das hipóteses ele os usa como instrumentos; na pior das
situações, ele lança sobre eles todos os insultos que fluem da sua falta de
autorrespeito e projeta para cima deles o peso inteiro da sua própria
escravidão. Os extremos das suas alternâncias psíquicas vão desde a
auto-humilhação de um Calibã até a audácia de um Cam [4], e do desrespeito de um Térsites e à ferocidade de um Pugachev.[5] E se uma tal estrutura psíquica se
torna típica das pessoas de uma determinada época, ou mesmo dominante, então a
vida das pessoas passa a ser um espetáculo de verdadeira degradação: a ansiedade
dos ignorantes é substituída pela rebelião dos ignorantes; “absurda e sem
compaixão”, e ali onde reinavam “o laço e o chicote” surge uma profanação das
coisas sagradas, e a destruição do inviolável.
Pessoas
e povos incapazes de respeitar o seu próprio valor espiritual criam um poder governante doentio, e produzem um sentido de eu e uma ideologia igualmente doentes.
Ao
criar o seu poder governante, tais pessoas são incapazes de transmitir a ele um
sentimento de valor pessoal ou de respeito por si mesmo. Isso estabelece um
poder governante que não acredita na missão espiritual do Estado, não vê as
suas próprias tarefas espirituais, e não observa as formas de vida necessárias
para uma cultura espiritual; um poder governante que não entende em que consiste
a essência da ideia do Estado e para quê é necessária uma consciência legal
ativa; que não respeita o seu próprio povo e não o alimenta; que se deleita com
o seu próprio absolutismo despótico e perverte a ideia do Estado através de
formas vazias de submissão e ordem. Não entende que a dominação sobre um
escravo reduz e corrompe o próprio senhor, e não percebe que a doença da
consciência legal escravizada corrompe a sua vontade e a sua criatividade
política. Um tal poder governante interpreta a aparência de uma submissão
política, e a lisonja política, como se fossem manifestações verdadeiras e
suficientes do seu próprio valor, e sob esta aparência promove a venalidade
pública, a corrupção da moral, e uma política dirigida contra o Estado. Ele olha
para a lisonja e a humilhação como se fossem respeito, para a disciplina formal
como se fosse obediência à lei, para uma submissão atemorizada como se fosse consciência
legal, para uma ausência de vontade como se fosse lealdade, e para a ausência
de um sentido político no povo como se fosse uma garantia de ordem legal. Mas,
acima de tudo, ele mostra a sua insolvência quando a insatisfação do povo
ameaça a sua existência. Então, destituído de respeito por si mesmo, ele coloca
a sua autopreservação acima do seu valor e prefere destruir completamente a
consciência legal do povo, degradar o seu propósito e sua situação, desfazer os
alicerces do Estado, os seus poderes e a sua posição internacional,
simplesmente para preservar a sua estrutura, sua forma e o direcionamento da
sua vontade. Seguindo a fórmula “dividir para dominar”, que é fatal em
política, ele começa a despertar e intensificar a discórdia entre os cidadãos,
estimulando diferenciações artificiais e atirando uma nação contra outra, uma
classe social contra a outra, os filhos contra os pais. A mentira e a opressão,
as investigações e provocações políticas, a fraude e o terror que ele espalha
por todo o país, minam o que é mais importante na população, a vontade de estar politicamente unida.
Tudo isso é claro e bem conhecido: um tal poder governante não respeita nem a
si mesmo nem a sua missão; e na luta por sua existência ele trai aquilo que é
incapaz de valorizar, o vínculo mais profundo com o Estado, e desperdiça esta
conquista espiritual extremamente valiosa com explosões de despotismo pessoal e
de grupo, ou interesses partidários.
É
natural que tais povos e pessoas, ao comporem o seu sentido nacional de
identidade e o seu destino político, escolham caminhos falsos e preparem para
si mesmos uma pesada provação histórica. É precisamente deste processo que
surgem todas as tiranias, e
especialmente a pior delas, a tirania do Estado
totalitário.
O
Estado totalitário, mesmo na sua forma menos severa (o fascismo italiano) não
tem a tendência de atribuir qualquer significado especial ao sentimento de
valor espiritual pessoal. Onde quer que o indivíduo respeite este sentimento
como uma condição fundamental de vida, um regime totalitário não surge. É
necessário que este sentimento tenha ficado fraco, e que um povo o tenha
perdido ou danificado, para que surja um regime totalitário. É precisamente
isso que aconteceu com os italianos, no final da Primeira Guerra Mundial (na
batalha de Caporetto), com os alemães (depois da derrota e desmoralização de
1918), na Rússia, depois da derrota de 1915 e durante a revolução, e
finalmente, na China depois da longa revolução e interminável guerra civil e
guerra externa. Um agudo sentimento de que se está indefeso e a vergonha
pública que este sentimento provoca, assim como a desconfiança nas suas
próprias forças voltadas para o bem e uma sensação súbita de haver uma
catástrofe iminente, a humilhação e, muito importante, a ausência de sentimento
religioso vivo e profundo - tudo isso prepara, no povo, aquele sentimento específico de desonra sobre o
qual todos os tiranos e demagogos constroem o seu êxito. Esta desonra leva à
degeneração da consciência legal. Surge então uma desilusão com a disciplina, a
lealdade, e a responsabilidade, na alma das pessoas: uma disposição para
qualquer tipo de deslealdade, para um desprezo pelas proibições, para a traição
e a violência. As pessoas buscam uma autoridade que lhes dê permissão para uma
conduta desonrada, e dão poder a tal autoridade. Vale a pena registrar que
Mussolini no começo conseguiu criar um novo poder autoritário que não só não
autorizava conduta desonrada, mas propunha um ideal de uma nova honra fascista.
Da
sua parte, o poder totalitário constrói o conjunto do seu regime sobre a
supressão e a perversão do sentimento de valor espiritual pessoal. Ele exige
uma obediência cega e humilhante, incluindo a espionagem política voluntária e
obrigatória dos cidadãos entre si. Exige uma adulação ilimitada e confissões
públicas humilhantes por parte dos que são insuficientemente leais. Ele tenta
envolver nos seus crimes políticos o maior número possível de cidadãos, para
forçar a todos a se humilharem e quebrar a sua dignidade espiritual. Nascido
ele mesmo da desonestidade e da desonra, ele cria um novo regime de
desonestidade e desonra, sem precedentes na história, e produz cenas chocantes
de degeneração ética. Depois da experiência política da primeira metade do
século 20, dificilmente alguém poderia questionar a importância do primeiro
axioma da consciência legal. [6]
É
impossível fazer com que o sentimento que um povo possui de fazer parte de uma
ordem nacional e política permaneça numa condição confusa, imatura e sem perspectivas
de melhorar; que um povo não vivencie a sua unidade, que não a busque, que não
a deseje, e seja incapaz de criá-la. O seu instinto de autopreservação deve não
só manter uma forma pessoal, mas
também adquirir uma forma nacional.
Assim o povo aprenderá a lutar por sua própria existência política, a ver os
perigos que a ameaçam, e nunca abandonará a causa do bem público em troca do
desejo pessoal e dos lucros. Ao
vivenciar a si mesmo como espiritualmente unificado, verá o seu valor
espiritual, respeitará a si mesmo, e se tornará capaz de uma autoafirmação ativa
e empreendedora; será capaz então de manter a sua unidade política não só na
forma de instituições, evitando
dispersar-se na transição para uma ordem corporativa. Uma grande guerra não se
apresentará como uma provação acima das suas forças, e não serão necessárias
grandes humilhações históricas para estimular e fortalecer no povo a capacidade
de autoafirmar-se no plano espiritual e no plano político.
É
claro que estas doenças e outras semelhantes inevitavelmente se expressam na criatividade espiritual, e, em especial,
na ideologia de um povo.
Estar
separado do seu valor espiritual próprio significa perder a forma
autossuficiente do espírito, ou o seu conteúdo incondicional, ou as duas coisas
ao mesmo tempo. Um povo que ainda não tenha compreendido e realizado a sua
autoafirmação espiritual não respeita o espírito nem em si mesmo nem no objeto ou
ideia do Estado; e, portanto, desenvolve formas mórbidas de vida espiritual,
produzindo fenômenos doentios de cultura espiritual. Estas formas e fenômenos
podem estar aparentemente desconectados entre si, mas em sua substância elas
revelam uma só doença espiritual orgânica.
Não
sendo capaz de encontrar um equilíbrio adequado entre a auto-humilhação e a
arrogância, um tal povo oscila sempre entre estes dois extremos, e com
frequência os combina da forma mais
bizarra. A sua religiosidade funciona a partir de um sentimento de
insignificância pessoal, e por isso se alimenta de medo e superstição, ou de um
sentimento de total permissividade sedutora, e em seguida proclama a santidade do pecado e assume a forma de
uma perversão coletiva (Khlysty)[7],
ou de um sentimento da fraqueza do espírito, e prega o pecado da carne, transformando seres humanos em monstros (Skoptsy).
[8] A sua arte repudia a homenagem independente à beleza, e se torna um
instrumento de luta e militância sociopolítica; ou cai subitamente numa
cegueira espiritual, celebrando de modo lírico as trivialidades insignificantes
da vida, ou idealizando o colapso espiritual e a vulgaridade; ou se transforma
em um culto de paixões doentias, supondo que todas as formas estéticas podem
estar confortáveis com qualquer tipo de conteúdo; e então destrói toda forma de
beleza e o valor da arte, convertendo-a num prazer para as almas cegas ou
doentias (“modernismo”). [9]
Estas
doenças também pervertem a ideologia nacional de um povo. De um lado, a
autoafirmação espiritual fracassada ou ainda não vitoriosa torna difícil a
confiança do povo em sua própria capacidade e viola a integridade do seu
autorrespeito. Isso o impede de enfrentar os seus erros e defeitos com uma
compreensão do seu próprio valor: ele os vê de uma forma exagerada,
caricaturesca e às vezes como se fossem um pesadelo. Percebe-os como algo
excepcional e incurável, e como uma espécie de maldição nacional. E assim a sua
ideologia nacional fica cheia de um sentimento de insignificância nacional e de
catástrofe que pode ocorrer a qualquer momento; o povo se entrega a uma
autoflagelação excessiva e portanto infrutífera, implantando nas almas
individuais um estado de espírito desanimado e depressivo. Desta sensação de
que “somos destituídos de valor” surge uma avaliação exagerada de outras
nações, historicamente mais avançadas; surge uma confiança no professor
estrangeiro, nos “Varângios” [10], e
esta confiança fortalece a falta de confiança em seus próprios poderes, alimenta
a passividade, a falta de vontade, uma disposição para submeter-se a outros
povos e a servi-los. No entanto, a presença deste sentimento e desta ideologia
não o impede de cometer os erros que ele próprio condena, caindo em uma
frivolidade e uma vaidosa adoção de poses.
Por
outro lado, a fraqueza da autoestima e do autorrespeito estimulam na consciência
nacional, que está criando a ideologia do país, uma extraordinária certeza de
si mesmo e autossatisfação. Como a necessidade saudável de autorrespeito não é
atendida de modo adequado, surge uma tendência irresistível à autoidealização,
a isolar no caráter nacional apenas as qualidades luminosas, e além disso uma
tendência de exaltar os fracassos nacionais. A
consciência descobre uma ternura sentimental no sentimento ferido de
autoidentidade, e recompensa a si mesma emocionalmente com o incenso da
reverência. Assim surge a doutrina segundo a qual um povo “é o melhor do mundo”,
a ideia de nação-messias e de um líder divino. Aparece uma ideologia avançada
de autoglorificação, que intoxica as mentes e enfraquece as vontades; surge uma
ideologia de doenças nacionais, demonstrando a vantagem moral do atraso
espiritual e da ignorância (Tolstoísmo) [11];
ideólogos que veem na imaturidade e na deformação da consciência legal pública
a chave para a solução do problema social (anarquistas). Surge um nacionalismo
cego e desastroso, estimulando o desprezo pelos estrangeiros, amortecendo a
consciência ética nacional [12], e
corrompendo as bases do verdadeiro patriotismo. A autoconsciência objetiva fica
muda, e os ideólogos passam a ser cegos que lideram cegos.
Estas
são as doenças espirituais que resultam da violação da primeira base axiomática
do espírito e da consciência legal. Perder de vista o valor espiritual próprio
significa perder em si mesmo aquele centro vital de onde é criada a vida
espiritual; um centro que necessita da lei natural, que a formula e estabelece
uma ordem legal. Significa ficar privado da raiz vital de onde cresce a consciência legal [13], isto é, a vontade de que haja lei, a vontade voltada para o objetivo da
lei, e a capacidade de motivar as nossas ações de modo autônomo através do
reconhecimento deste objetivo.
NOTAS:
[1] No original em inglês, “legal subject”: um
cidadão. (CCA)
[2] “Consciência legal”: a consciência
da Lei da Vida, que inclui a consciência das leis humanas e de nosso dever
ético individual. (CCA)
[3] Neste ponto do original em inglês
os editores do livro “On the Essence of Legal Consciousness” informam em nota
de rodapé: “Il’in estava totalmente familiarizado com as obras de Freud e teve
sessões diárias de psicanálise com Freud em Viena durante seis semanas, durante
a primavera e começo do verão de 1914. As sessões de psicanálise foram
interrompidas pelo início da Primeira Guerra Mundial, porque Il’in foi
declarado inimigo e forçado a sair da Áustria.”(CCA)
[4] Calibã; personagem da peça “A
Tempestade”, de Shakespeare, um escravo selvagem e disforme. Cam: personagem
bíblico, filho de Noé. (CCA)
[5] Na mitologia grega, Térsites foi um soldado do
exército grego durante a Guerra de Troia. Ver
a Ilíada. Yemelyan Ivanovich Pugachev dirigiu uma grande insurreição
cossaca na Rússia
durante o reinado de Catarina II. (CCA)
[6] O primeiro axioma da consciência
legal é a “lei do valor espiritual”.
Ele é mencionado de várias formas por Il’in. Na p. 255 do seu
livro, ele diz: “O sentimento que o indivíduo tem do seu próprio valor é a
manifestação essencial e autêntica da vida espiritual; é um sinal daquela autoafirmação espiritual sem a qual nem
a luta pela lei, nem a autonomia política ou a independência nacional são
concebíveis. Um cidadão que não tenha este sentimento é politicamente incapaz
de funcionar; um povo que não seja motivado por este sentimento estará
condenado a uma humilhação histórica terrível.” E, na página 256: “A autoafirmação da alma no objeto absolutamente-precioso
sempre foi e sempre será a única fonte do sentimento do indivíduo em relação ao
seu próprio valor espiritual.” (CCA)
[7] Khlysty (flagelantes), uma seita
russa dos séculos 19 e 20. (CCA)
[8] Skoptsy
(castrados),
outra seita radical russa do século 19 e começo do século 20. (CCA)
[9] De fato, o modernismo deu destaque
à mera aparência, no Brasil tanto como em Portugal e outros países. Os modernistas
procuraram renovar a cena cultural através da superficialidade e afastando-se de
modo infantil das questões fundamentais da vida. Estreitamente relacionado com
o modernismo, houve o doentio e antievolutivo “Futurismo”, que exaltava guerras
e violência. Na pintura, o cubismo modernista abandona a beleza para pintar
figuras sem vida, quadradas, fora de proporção e antinaturais. (CCA)
[10] “Varangians”, no original em inglês.
Os editores de língua inglesa informam que esta é uma alusão à teoria de alguns
historiadores russos segundo a qual a Rússia teria sido fundada na verdade por
um grupo de cidadãos da Escandinávia. (CCA)
[11] Ao idealizar os camponeses russos
como se eles fossem santos, Leon Tolstoi seguiu os passos de Jean-Jacques Rousseau. O filósofo francês
estava certo ao denunciar o mau uso do conhecimento, mas errou ao sugerir que a
ausência de conhecimento seria a melhor alternativa para este problema. Tolstoi
fez o mesmo erro. A alternativa correta para o mau uso do conhecimento é a combinação
de conhecimento com ética, e está na compreensão de que para cada parcela de
conhecimento existe uma parcela correspondente de dever ético; de outro modo, o
conhecimento se voltará contra o conhecedor. (CCA)
[12] Consciência ética nacional: este conceito tem importância decisiva
quando se trata de plantar bom carma, e corresponde a um “antahkarana
coletivo”. Veja em nossos websites os artigos “O Muro Que Protege a Humanidade”
e “Os Sete Princípios do Movimento”. (CCA)
[13] A frase equivale, na nomenclatura
teosófica, a “ficar privado de um Antahkarana ativo, ou ponte para o eu
superior, onde cresce a consciência ética.”
(CCA)
000
O texto acima é
traduzido do livro “On the Essence of Legal Consciousness”, do
filósofo russo Ivan A. Il’in, publicado por Wildy, Simmonds & Hill
Publishing, Reino Unido, 391 pp., 2014. Veja o capítulo dezesseis, “Diseases of Self-Affirmation”, pp.
266-274.
“On the
Essence of Legal Consciousness” está disponível em www.Amazon.com. Ivan A. Il’in viveu entre 1883 e 1954. O seu sobrenome também é grafado como Ilyin nos idiomas ocidentais. O livro “The Singing Heart”, por exemplo, foi
publicado no Reino Unido em 2016 sob o nome “Ivan Ilyin”, e pode ser comprado em Amazon.com. Veja também a obra em dois volumes “The Philosophy of Hegel as a Doctrine of
the Concreteness of God and Humanity”, de Ivan A. Il’in. Um artigo de N.
Lossky sobre este filósofo foi publicado na edição de fevereiro de 2016 de “The Aquarian Theosophist”, pp. 7-9.
000
Para conhecer um
diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500
anos, leia o livro “Conversas na
Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 28 capítulos e
170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de
Blumenau, Edifurb.
000