11 de maio de 2016

O Respeito Espiritual por Si Mesmo

Examinando as Bases da
Decadência Ética, e o Modo da sua Cura

Ivan A. Il’in

O equilíbrio, a justiça e o autorrespeito são três fatores decisivos em filosofia



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Nota Editorial de 2016

Depois de ser amplamente ignorado
durante décadas, Ivan A. Il’in surgiu no
século 21 como um dos principais filósofos
russos de todos os tempos. O seu livro “On the
Essence of Legal Consciousness”, do qual é
traduzido o texto a seguir, pode ser visto como um
estudo sobre o despertar de Antahkarana, a linha
de comunicação entre o eu superior e o eu inferior.
O antahkarana é um dos principais e mais
decisivos conceitos da teosofia moderna.
Acrescentamos notas de rodapé explicativas.

(Carlos Cardoso Aveline)

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Uma pessoa que não tem consciência do seu próprio valor espiritual, isto é, que não vivencia este valor, leva uma vida deformada, degradada, doentia; e as doenças desta vida são profundamente instrutivas; elas podem ser descritas como as doenças da autoafirmação espiritual.

Na base do respeito espiritual por si mesmo deve haver uma percepção verdadeira de si mesmo, e não uma ilusão nem tampouco uma vaidade doentia; um autêntico valor espiritual, e não um sinal externo e gasto de privilégios obsoletos; um ato pessoal de autoafirmação, e não o pronunciamento talvez equivocado ou insincero de alguma outra pessoa. Perceber a si mesmo como uma força que está voltada para o bem não deve ser algo acidental ou efêmero, mas sim uma percepção autêntica e objetiva. Isso não pode e não deve ser substituído por nenhum tipo de sucedâneo: nem por uma imaginação sonhadora sobre as supostas virtudes do indivíduo e o seu “destino histórico”, e tampouco por um orgulho sem substância e um cultivo de “honra” formal, nem pelo veredito casual e mutável da “opinião social”, nem  pelas “ondas” egoístas e caprichosas da  “opinião pública”. A percepção do seu próprio valor espiritual tem na sua base uma experiência que é independente, pessoal, e ao mesmo tempo objetivamente valiosa. Um cidadão [1] deve ser um processo vivo e autossuficiente de acumulação de valor espiritual; e qualquer falha nesta experiência vivencial - uma falha em autossuficiência ou em objetividade - torna a consciência legal [2] pouco firme, vacilante, fraca em vitalidade, e instável.

Um indivíduo que respeite a si mesmo só porque, ou na medida em que os outros o respeitam, na verdade não tem respeito por si próprio; a sua saúde espiritual depende das impressões secundárias dos outros, isto é, da ignorância e da incompetência dos outros; na realidade dos fatos, ele é atormentado por sentimentos de inferioridade, pela vaidade, e pelo desejo de êxito exterior; e se este sucesso e popularidade o traem, então ele deixa de sentir o seu próprio valor espiritual, e a sua personalidade perde a forma. Do mesmo modo, um indivíduo que respeita a si mesmo apenas por causa das suas qualidades supostas, ou puramente externas, ou empiricamente acidentais, isto é, por aquilo que não constitui a sua essência espiritual (pela força, pela beleza, pela riqueza), na prática não respeita a si mesmo: a sua saúde espiritual depende daquilo que pode pertencer a ele, mas que não é ele em si mesmo, ou seja, depende do que é acidental e não essencial, do que não tem valor próprio, de fatos casuais da sua personalidade; na realidade dos fatos ele acumula uma suposta riqueza e multiplica o seu poder ou sua propriedade, mas não afirma o valor interno do seu espírito.

Ainda mais deplorável é o estado da pessoa completamente incapaz de respeitar a si mesma, e tão acostumada a isso que não vivencia de modo algum o seu próprio valor espiritual. Em alguma ocasião, talvez na infância, a alma de tal pessoa não pôde suportar alguma provação demasiado pesada para o seu sentido de individualidade; não pôde suportar a pressão das circunstâncias externas ou das suas próprias inclinações instintivas, não pôde lidar com alguma tarefa e responsabilidade de importância vital. Ela cedeu, e nesta mesma sujeição encontrou o veneno de um certo prazer. O ato da autoafirmação espiritual não teve êxito; a alma não resistiu na luta e aceitou sua humilhação, desanimada e derrotada. Não conseguiu afirmar a si mesma como uma força; ao invés disso, tendo aceitado a humilhação, abandonou sua confiança em si mesma e na sua natureza benéfica. Uma vez que se submeteu às suas paixões ou a uma vontade alheia, e tendo descoberto a doentia doçura da subordinação e da humilhação, a alma não tem mais a força para forjar para si mesma uma forma pessoal de espírito. Não vê o seu próprio valor e não respeita a si mesma; e como é impossível esconder esta percepção de si mesma, os outros se acostumam imperceptivelmente a não respeitá-la, e desta maneira fortalecem o seu desrespeito por si mesma. A pessoa gradualmente adquire a estrutura psíquica de um escravo, acostumado a não respeitar a si próprio. E a tragédia da sua situação se revela com força especial quando ele tenta libertar-se através de uma rebelião ou insurreição; esta rebelião não o liberta, porque os seus grilhões têm uma natureza interna; a revolta apenas revela o que uma pessoa destituída do sentimento de valor próprio é capaz de fazer, enquanto que o peso do desrespeito por si mesmo arrasta o rebelde de volta para um estado abjeto. Este é, por exemplo, precisamente o resultado do castigo corporal, especialmente quando sofrido na primeira infância, e só a cegueira espiritual poderia haver criado o ditado popular segundo o qual aquele que foi espancado é superior a quem não o foi.

É óbvio que a consciência legal de pessoas que não respeitam a si próprias, ou que respeitam os seus “não-eus”, sofre de doenças profundas. É como se a personalidade delas fosse destituída de raiz e tronco; sua personalidade tem uma existência dependente e fantasmagórica; estritamente falando, possui apenas uma existência aparente, figurativamente humana. É apenas um médium para as suas paixões e as influências de outros, individuais e sociais; estas influências, em qualquer momento dado, entram em uma combinação entre si, e esta combinação determina o seu comportamento. Por esta razão não está em condições de determinar a sua vida através de decisões independentes, ou de construir o seu futuro e de lutar pelas metas que escolheu para si. Tendo perdido o seu centro espiritual, enfraqueceu ou mesmo destruiu o centro de volição própria, e substitui a vontade pela teimosia, o autorrespeito pelo orgulho, o sentimento de seu próprio valor pela vanglória. A alma experimenta a degeneração ou mesmo a corrupção espiritual.  

Uma vez que o sentido do seu próprio valor não foi afirmado e está enfraquecido, ou foi ferido e não curou-se, isso enfraquece a fé da pessoa em si mesma e em suas capacidades. Abre-se um certo vazio e um oco na profundidade do seu espírito pessoal, o que rouba energia da sua atividade vital e a torna incapaz de uma resistência firme e corajosa à força das coisas e das pessoas. Qualquer provação desperta em tal indivíduo desânimo, dúvidas sobre si mesmo, e medo; a ansiedade e a covardia tomam conta da sua alma e o levam pelo caminho da docilidade e da passividade destituídas de valor. Uma tal pessoa resulta incapaz tanto de autoafirmação espiritual, porque a converte numa tempestade de paixões, quanto de autonegação psíquica, porque não possui uma relação viva com o valor mais elevado, o objeto sagrado. A verdadeira autonegação não é uma negação do espírito, mas da alma, no nome do espírito; e por esta razão pressupõe um verdadeiro respeito pelo espírito e por si mesmo, e não leva à humilhação, mas à afirmação do valor pessoal.

Não respeitar a si mesmo significa vivenciar a sua própria fraqueza no que é bom. Aquele que aceita esta fraqueza e se reconcilia com ela alimenta em si mesmo um bem-estar reduzido e permanece perpetuamente a um passo de novas humilhações; uma vez que “lavou as mãos” em relação a si mesmo, ele fica constantemente à beira de um novo colapso espiritual, ultrapassando cada vez mais facilmente os limites do que é moral e legal. E aquele que não aceita esta sua fraqueza, mas tampouco consegue afirmar-se no que é bom, tenta afirmar o seu poder à parte do que é bom, ou contrariando-o, e transforma a sua vida em uma mistura de desconfiança com hipocrisia.

E se, para culminar isso tudo, existe na alma de uma pessoa uma consciência da sua própria falta de valor ou maldade, ao mesmo tempo que o orgulho é elevado e exacerbado, então surge o chamado caráter subterrâneo, em toda a sua miséria e deformidade. O indivíduo começa a vivenciar a sua falta de respeito por si mesmo como se fosse um desrespeito dos outros em relação a ele; o sentimento do seu próprio infortúnio original não lhe dá sossego; cada vantagem de outra pessoa é para ele como um insulto, e a sua vida se converte gradualmente em uma ofensa pessoal constante, atormentadora e imperdoável. A sua alma é torturada por uma falta de consideração por si mesma, da qual ela às vezes nem sequer tem consciência; o seu amor-próprio não pode encontrar satisfação com nenhum êxito externo; não pode ser saciado por qualquer lisonja, porque em geral não é possível que a sua redenção venha de fora. O sentimento de segurança só vem quando a alma se volta para dentro; só surge a partir de uma ação curativa de autoafirmação espiritual; e esta ação não pode ser realizada por uma decisão consciente, arbitrária, porque a alma foge da visão insuportável da sua própria vacuidade, da sua deformidade e sua falta de valor, e esconde a sua doença e seu sofrimento no subterrâneo profundo do inconsciente; e, expulsando a sua própria doença [3], perde acesso a ela e deixa de ter poder sobre ela, ficando presa a uma trágica desesperança.

E em meio a tudo isso a pessoa não encontra uma base objetiva para a sua vida e oscila entre sofrimentos e humilhações, depravada e miserável, rejeitada por si mesma, não-legitimada e sem sossego. 

Perder a base objetiva da vida é perder a dimensão espiritual das coisas e das ações, e perder qualquer critério de valores objetivos. A vida de uma tal pessoa se torna um verdadeiro reino da vulgaridade, porque a vulgaridade é uma cegueira da alma em relação à importância objetiva das coisas. Uma alma espiritualmente cega vive com os conteúdos desestruturados e as medidas precárias de um estilo pessoal de vida; percebe tudo no plano das suas necessidades e paixões, e mede a vida em termos de interesse e poder. E precisamente por esta razão a sua vida se transforma em um pântano de fraqueza, confusão e vício. Mas a sua principal confusão está no não-reconhecimento do espírito, da sua objetividade e do seu valor incondicional. A pessoa permanece tendo uma certeza ingênua e imediata de que “a coisa mais importante na vida é ela própria”, e de que nela, o mais importante é o “íntimo”, o empiricamente singular, o subjetivo; e isto já fica próximo de preferir as suas próprias necessidades, optando por elas de modo instantâneo e deixando de lado tudo o mais. É precisamente nisso que está a fonte dos diversos tipos de corrupção

Na base de toda corrupção - subornos, corrupção pública, todo tipo de demagogia e traição mercenária internacional - estão uma cegueira espiritual e uma ausência de valor espiritual do próprio indivíduo. A cegueira dá lugar a uma incapacidade de ver a gradação das metas de acordo com o seu valor, e a falta de valor espiritual cria uma vontade seriamente desequilibrada, uma disposição sem escrúpulos de desistir do espiritual, do objetivo e do universal, em função do interesse próprio e da posse. É por isso que um regime político incapaz de alimentar no povo uma percepção do seu próprio valor está condenado a desintegrar-se, finalmente, devido ao triunfo do egoísmo privado sobre o interesse público, e da vulgaridade sobre o espírito.

Isso já deixa claro que uma pessoa destituída do sentimento do seu próprio valor só pode manter a aparência de humanidade sob a pressão de um poder externo - donos de terra, poder estatal - e da vantagem pessoal; com o colapso dos dois fatores, o indivíduo facilmente perde a aparência de humanidade, e os sentimentos exacerbados o arrastam para a queda e o caos. A disfunção espiritual sempre pode mergulhá-lo em uma situação de fraqueza de vontade, irresponsabilidade e debilidade mental. No sentido político, ele não é um ser legalmente competente. Não estão ao seu alcance uma consciência legal saudável, uma verdadeira lealdade, e tampouco patriotismo ou uma forma política de pensamento: porque tudo isso possui uma natureza espiritual para a qual ele é cego e indiferente. Portanto ele não pode exercer inteligentemente autoridade pública ou construir uma organização social. Não respeitando a si mesmo, ele também não respeita o cidadão em si; não compreendendo o seu próprio valor espiritual, ele deixa de ver valor espiritual em outros cidadãos, assim como no Estado, ou no poder do Estado. Ele percebe o valor dos outros como um poder alheio, e vê nele apenas um instrumento para si próprio ou um perigo para si próprio. Colocado frente a frente com o poder do Estado, ou pelo menos com os seus representantes, ele não sente respeito em sua alma, nem confiança, nem um sentimento de unidade vital, mas adota uma submissão disfarçada que se manifesta, conforme as circunstâncias, seja na forma de uma lisonja astuciosa, ou uma audaciosa ameaça. Uma tal pessoa não defende o seu valor nem diante de seus superiores, nem diante de pessoas sobre as quais tenha poder. Com os seus superiores ele é agradável, obsequioso e servil; na melhor das hipóteses ele os serve como um verdadeiro criado; nos casos mais graves ele esconde sob a atitude servil uma inclinação cheia de desprezo a humilhar o seu chefe do mesmo modo como ele foi humilhado diante do seu chefe. Em relação aos que lhe são inferiores na escala social ele mostra desprezo, insensibilidade e despotismo. Na melhor das hipóteses ele os usa como instrumentos; na pior das situações, ele lança sobre eles todos os insultos que fluem da sua falta de autorrespeito e projeta para cima deles o peso inteiro da sua própria escravidão. Os extremos das suas alternâncias psíquicas vão desde a auto-humilhação de um Calibã até a audácia de um Cam [4], e do desrespeito de um Térsites e à ferocidade de um Pugachev.[5] E se uma tal estrutura psíquica se torna típica das pessoas de uma determinada época, ou mesmo dominante, então a vida das pessoas passa a ser um espetáculo de verdadeira degradação: a ansiedade dos ignorantes é substituída pela rebelião dos ignorantes; “absurda e sem compaixão”, e ali onde reinavam “o laço e o chicote” surge uma profanação das coisas sagradas, e a destruição do inviolável.  

Pessoas e povos incapazes de respeitar o seu próprio valor espiritual criam um poder governante doentio, e produzem um sentido de eu e uma ideologia igualmente doentes.

Ao criar o seu poder governante, tais pessoas são incapazes de transmitir a ele um sentimento de valor pessoal ou de respeito por si mesmo. Isso estabelece um poder governante que não acredita na missão espiritual do Estado, não vê as suas próprias tarefas espirituais, e não observa as formas de vida necessárias para uma cultura espiritual; um poder governante que não entende em que consiste a essência da ideia do Estado e para quê é necessária uma consciência legal ativa; que não respeita o seu próprio povo e não o alimenta; que se deleita com o seu próprio absolutismo despótico e perverte a ideia do Estado através de formas vazias de submissão e ordem. Não entende que a dominação sobre um escravo reduz e corrompe o próprio senhor, e não percebe que a doença da consciência legal escravizada corrompe a sua vontade e a sua criatividade política. Um tal poder governante interpreta a aparência de uma submissão política, e a lisonja política, como se fossem manifestações verdadeiras e suficientes do seu próprio valor, e sob esta aparência promove a venalidade pública, a corrupção da moral, e uma política dirigida contra o Estado. Ele olha para a lisonja e a humilhação como se fossem respeito, para a disciplina formal como se fosse obediência à lei, para uma submissão atemorizada como se fosse consciência legal, para uma ausência de vontade como se fosse lealdade, e para a ausência de um sentido político no povo como se fosse uma garantia de ordem legal. Mas, acima de tudo, ele mostra a sua insolvência quando a insatisfação do povo ameaça a sua existência. Então, destituído de respeito por si mesmo, ele coloca a sua autopreservação acima do seu valor e prefere destruir completamente a consciência legal do povo, degradar o seu propósito e sua situação, desfazer os alicerces do Estado, os seus poderes e a sua posição internacional, simplesmente para preservar a sua estrutura, sua forma e o direcionamento da sua vontade. Seguindo a fórmula “dividir para dominar”, que é fatal em política, ele começa a despertar e intensificar a discórdia entre os cidadãos, estimulando diferenciações artificiais e atirando uma nação contra outra, uma classe social contra a outra, os filhos contra os pais. A mentira e a opressão, as investigações e provocações políticas, a fraude e o terror que ele espalha por todo o país, minam o que é mais importante na população, a vontade de estar politicamente unida. Tudo isso é claro e bem conhecido: um tal poder governante não respeita nem a si mesmo nem a sua missão; e na luta por sua existência ele trai aquilo que é incapaz de valorizar, o vínculo mais profundo com o Estado, e desperdiça esta conquista espiritual extremamente valiosa com explosões de despotismo pessoal e de grupo, ou interesses partidários.

É natural que tais povos e pessoas, ao comporem o seu sentido nacional de identidade e o seu destino político, escolham caminhos falsos e preparem para si mesmos uma pesada provação histórica. É precisamente deste processo que surgem todas as tiranias, e especialmente a pior delas, a tirania do Estado totalitário.

O Estado totalitário, mesmo na sua forma menos severa (o fascismo italiano) não tem a tendência de atribuir qualquer significado especial ao sentimento de valor espiritual pessoal. Onde quer que o indivíduo respeite este sentimento como uma condição fundamental de vida, um regime totalitário não surge. É necessário que este sentimento tenha ficado fraco, e que um povo o tenha perdido ou danificado, para que surja um regime totalitário. É precisamente isso que aconteceu com os italianos, no final da Primeira Guerra Mundial (na batalha de Caporetto), com os alemães (depois da derrota e desmoralização de 1918), na Rússia, depois da derrota de 1915 e durante a revolução, e finalmente, na China depois da longa revolução e interminável guerra civil e guerra externa. Um agudo sentimento de que se está indefeso e a vergonha pública que este sentimento provoca, assim como a desconfiança nas suas próprias forças voltadas para o bem e uma sensação súbita de haver uma catástrofe iminente, a humilhação e, muito importante, a ausência de sentimento religioso vivo e profundo - tudo isso prepara, no povo, aquele sentimento específico de desonra sobre o qual todos os tiranos e demagogos constroem o seu êxito. Esta desonra leva à degeneração da consciência legal. Surge então uma desilusão com a disciplina, a lealdade, e a responsabilidade, na alma das pessoas: uma disposição para qualquer tipo de deslealdade, para um desprezo pelas proibições, para a traição e a violência. As pessoas buscam uma autoridade que lhes dê permissão para uma conduta desonrada, e dão poder a tal autoridade. Vale a pena registrar que Mussolini no começo conseguiu criar um novo poder autoritário que não só não autorizava conduta desonrada, mas propunha um ideal de uma nova honra fascista.

Da sua parte, o poder totalitário constrói o conjunto do seu regime sobre a supressão e a perversão do sentimento de valor espiritual pessoal. Ele exige uma obediência cega e humilhante, incluindo a espionagem política voluntária e obrigatória dos cidadãos entre si. Exige uma adulação ilimitada e confissões públicas humilhantes por parte dos que são insuficientemente leais. Ele tenta envolver nos seus crimes políticos o maior número possível de cidadãos, para forçar a todos a se humilharem e quebrar a sua dignidade espiritual. Nascido ele mesmo da desonestidade e da desonra, ele cria um novo regime de desonestidade e desonra, sem precedentes na história, e produz cenas chocantes de degeneração ética. Depois da experiência política da primeira metade do século 20, dificilmente alguém poderia questionar a importância do primeiro axioma da consciência legal. [6]

É impossível fazer com que o sentimento que um povo possui de fazer parte de uma ordem nacional e política permaneça numa condição confusa, imatura e sem perspectivas de melhorar; que um povo não vivencie a sua unidade, que não a busque, que não a deseje, e seja incapaz de criá-la. O seu instinto de autopreservação deve não só manter uma forma pessoal, mas também adquirir uma forma nacional. Assim o povo aprenderá a lutar por sua própria existência política, a ver os perigos que a ameaçam, e nunca abandonará a causa do bem público em troca do desejo pessoal e dos lucros.  Ao vivenciar a si mesmo como espiritualmente unificado, verá o seu valor espiritual, respeitará a si mesmo, e se tornará capaz de uma autoafirmação ativa e empreendedora; será capaz então de manter a sua unidade política não só na forma de instituições, evitando dispersar-se na transição para uma ordem corporativa. Uma grande guerra não se apresentará como uma provação acima das suas forças, e não serão necessárias grandes humilhações históricas para estimular e fortalecer no povo a capacidade de autoafirmar-se no plano espiritual e no plano político.

É claro que estas doenças e outras semelhantes inevitavelmente se expressam na criatividade espiritual, e, em especial, na ideologia de um povo. 

Estar separado do seu valor espiritual próprio significa perder a forma autossuficiente do espírito, ou o seu conteúdo incondicional, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Um povo que ainda não tenha compreendido e realizado a sua autoafirmação espiritual não respeita o espírito nem em si mesmo nem no objeto ou ideia do Estado; e, portanto, desenvolve formas mórbidas de vida espiritual, produzindo fenômenos doentios de cultura espiritual. Estas formas e fenômenos podem estar aparentemente desconectados entre si, mas em sua substância elas revelam uma só doença espiritual orgânica.

Não sendo capaz de encontrar um equilíbrio adequado entre a auto-humilhação e a arrogância, um tal povo oscila sempre entre estes dois extremos, e com frequência os combina da forma mais bizarra. A sua religiosidade funciona a partir de um sentimento de insignificância pessoal, e por isso se alimenta de medo e superstição, ou de um sentimento de total permissividade sedutora, e em seguida proclama a santidade do pecado e assume a forma de uma perversão coletiva (Khlysty)[7], ou de um sentimento da fraqueza do espírito, e prega o pecado da carne, transformando seres humanos em monstros (Skoptsy). [8] A sua arte repudia a homenagem independente à beleza, e se torna um instrumento de luta e militância sociopolítica; ou cai subitamente numa cegueira espiritual, celebrando de modo lírico as trivialidades insignificantes da vida, ou idealizando o colapso espiritual e a vulgaridade; ou se transforma em um culto de paixões doentias, supondo que todas as formas estéticas podem estar confortáveis com qualquer tipo de conteúdo; e então destrói toda forma de beleza e o valor da arte, convertendo-a num prazer para as almas cegas ou doentias (“modernismo”). [9]

Estas doenças também pervertem a ideologia nacional de um povo. De um lado, a autoafirmação espiritual fracassada ou ainda não vitoriosa torna difícil a confiança do povo em sua própria capacidade e viola a integridade do seu autorrespeito. Isso o impede de enfrentar os seus erros e defeitos com uma compreensão do seu próprio valor: ele os vê de uma forma exagerada, caricaturesca e às vezes como se fossem um pesadelo. Percebe-os como algo excepcional e incurável, e como uma espécie de maldição nacional. E assim a sua ideologia nacional fica cheia de um sentimento de insignificância nacional e de catástrofe que pode ocorrer a qualquer momento; o povo se entrega a uma autoflagelação excessiva e portanto infrutífera, implantando nas almas individuais um estado de espírito desanimado e depressivo. Desta sensação de que “somos destituídos de valor” surge uma avaliação exagerada de outras nações, historicamente mais avançadas; surge uma confiança no professor estrangeiro, nos “Varângios” [10], e esta confiança fortalece a falta de confiança em seus próprios poderes, alimenta a passividade, a falta de vontade, uma disposição para submeter-se a outros povos e a servi-los. No entanto, a presença deste sentimento e desta ideologia não o impede de cometer os erros que ele próprio condena, caindo em uma frivolidade e uma vaidosa adoção de poses.

Por outro lado, a fraqueza da autoestima e do autorrespeito estimulam na consciência nacional, que está criando a ideologia do país, uma extraordinária certeza de si mesmo e autossatisfação. Como a necessidade saudável de autorrespeito não é atendida de modo adequado, surge uma tendência irresistível à autoidealização, a isolar no caráter nacional apenas as qualidades luminosas, e além disso uma tendência de exaltar os fracassos nacionais. A consciência descobre uma ternura sentimental no sentimento ferido de autoidentidade, e recompensa a si mesma emocionalmente com o incenso da reverência. Assim surge a doutrina segundo a qual um povo “é o melhor do mundo”, a ideia de nação-messias e de um líder divino. Aparece uma ideologia avançada de autoglorificação, que intoxica as mentes e enfraquece as vontades; surge uma ideologia de doenças nacionais, demonstrando a vantagem moral do atraso espiritual e da ignorância (Tolstoísmo) [11]; ideólogos que veem na imaturidade e na deformação da consciência legal pública a chave para a solução do problema social (anarquistas). Surge um nacionalismo cego e desastroso, estimulando o desprezo pelos estrangeiros, amortecendo a consciência ética nacional [12], e corrompendo as bases do verdadeiro patriotismo. A autoconsciência objetiva fica muda, e os ideólogos passam a ser cegos que lideram cegos.

Estas são as doenças espirituais que resultam da violação da primeira base axiomática do espírito e da consciência legal. Perder de vista o valor espiritual próprio significa perder em si mesmo aquele centro vital de onde é criada a vida espiritual; um centro que necessita da lei natural, que a formula e estabelece uma ordem legal. Significa ficar privado da raiz vital de onde cresce a consciência legal [13], isto é, a vontade de que haja lei, a vontade voltada para o objetivo da lei, e a capacidade de motivar as nossas ações de modo autônomo através do reconhecimento deste objetivo

NOTAS:

[1] No original em inglês, “legal subject”: um cidadão. (CCA)

[2] “Consciência legal”: a consciência da Lei da Vida, que inclui a consciência das leis humanas e de nosso dever ético individual. (CCA)

[3] Neste ponto do original em inglês os editores do livro “On the Essence of Legal Consciousness” informam em nota de rodapé: “Il’in estava totalmente familiarizado com as obras de Freud e teve sessões diárias de psicanálise com Freud em Viena durante seis semanas, durante a primavera e começo do verão de 1914. As sessões de psicanálise foram interrompidas pelo início da Primeira Guerra Mundial, porque Il’in foi declarado inimigo e forçado a sair da Áustria.”(CCA)

[4] Calibã; personagem da peça “A Tempestade”, de Shakespeare, um escravo selvagem e disforme. Cam: personagem bíblico, filho de Noé. (CCA)

[5] Na mitologia grega, Térsites foi um soldado do exército grego durante a Guerra de Troia. Ver a Ilíada. Yemelyan Ivanovich Pugachev dirigiu uma grande insurreição cossaca na Rússia durante o reinado de Catarina II. (CCA)

[6] O primeiro axioma da consciência legal é a “lei do valor espiritual”. Ele é mencionado de várias formas por Il’in. Na p. 255 do seu livro, ele diz: “O sentimento que o indivíduo tem do seu próprio valor é a manifestação essencial e autêntica da vida espiritual; é um sinal daquela autoafirmação espiritual sem a qual nem a luta pela lei, nem a autonomia política ou a independência nacional são concebíveis. Um cidadão que não tenha este sentimento é politicamente incapaz de funcionar; um povo que não seja motivado por este sentimento estará condenado a uma humilhação histórica terrível.” E, na página 256: “A autoafirmação da alma no objeto absolutamente-precioso sempre foi e sempre será a única fonte do sentimento do indivíduo em relação ao seu próprio valor espiritual.” (CCA)

[7] Khlysty (flagelantes), uma seita russa dos séculos 19 e 20. (CCA)

[8] Skoptsy (castrados), outra seita radical russa do século 19 e começo do século 20. (CCA)

[9] De fato, o modernismo deu destaque à mera aparência, no Brasil tanto como em Portugal e outros países. Os modernistas procuraram renovar a cena cultural através da superficialidade e afastando-se de modo infantil das questões fundamentais da vida. Estreitamente relacionado com o modernismo, houve o doentio e antievolutivo “Futurismo”, que exaltava guerras e violência. Na pintura, o cubismo modernista abandona a beleza para pintar figuras sem vida, quadradas, fora de proporção e antinaturais. (CCA)

[10] “Varangians”, no original em inglês. Os editores de língua inglesa informam que esta é uma alusão à teoria de alguns historiadores russos segundo a qual a Rússia teria sido fundada na verdade por um grupo de cidadãos da Escandinávia. (CCA)

[11] Ao idealizar os camponeses russos como se eles fossem santos, Leon Tolstoi seguiu os passos de  Jean-Jacques Rousseau. O filósofo francês estava certo ao denunciar o mau uso do conhecimento, mas errou ao sugerir que a ausência de conhecimento seria a melhor alternativa para este problema. Tolstoi fez o mesmo erro. A alternativa correta para o mau uso do conhecimento é a combinação de conhecimento com ética, e está na compreensão de que para cada parcela de conhecimento existe uma parcela correspondente de dever ético; de outro modo, o conhecimento se voltará contra o conhecedor. (CCA)

[12] Consciência ética nacional: este conceito tem importância decisiva quando se trata de plantar bom carma, e corresponde a um “antahkarana coletivo”. Veja em nossos websites os artigos “O Muro Que Protege a Humanidade” e “Os Sete Princípios do Movimento”. (CCA)

[13] A frase equivale, na nomenclatura teosófica, a “ficar privado de um Antahkarana ativo, ou ponte para o eu superior, onde cresce a consciência ética.” (CCA)

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O texto acima é traduzido do livro “On the Essence of Legal Consciousness”, do filósofo russo Ivan A. Il’in, publicado por Wildy, Simmonds & Hill Publishing, Reino Unido, 391 pp., 2014. Veja o capítulo dezesseis, “Diseases of Self-Affirmation”, pp. 266-274. 

On the Essence of Legal Consciousness” está disponível em www.Amazon.com. Ivan A. Il’in viveu entre 1883 e 1954. O seu sobrenome também é grafado como Ilyin nos idiomas ocidentais. O livro “The Singing Heart”, por exemplo, foi publicado no Reino Unido em 2016 sob o nome “Ivan Ilyin”, e pode ser comprado em Amazon.com. Veja também a obra em dois volumes “The Philosophy of Hegel as a Doctrine of the Concreteness of God and Humanity”, de Ivan A. Il’in. Um artigo de N. Lossky sobre este filósofo foi publicado na edição de fevereiro de 2016 de “The Aquarian Theosophist”, pp. 7-9.

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Para conhecer um diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500 anos, leia o livro “Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.


Com 28 capítulos e 170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de Blumenau, Edifurb.  

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