Investigando a Natureza da Compaixão
Universal
Carlos Cardoso Aveline
Em seu livro clássico “Raízes
do Brasil” [1], Sérgio Buarque de Holanda
afirma que uma chave para compreender o comportamento do povo brasileiro está
no ponto de vista emocional.
Para ele, o brasileiro é “o
homem cordial”, capaz de desculpar quase qualquer erro dos amigos, mas inclinado
a esperar que também os seus amigos
desculpem os seus próprios erros em qualquer situação.
Desse mundo de emoções
pessoais emergem o casuísmo e o favor pessoal tratado como moeda de troca. Um
exemplo prático é aquele sujeito “importante” que consegue emprego e vantagens
pessoais para os seus próximos e seus seguidores, mesmo à custa da ética e da
honestidade.
O fenômeno ocorre em todos os
países do mundo. Há gente que desenvolve
relações baseadas em troca de favores com o mundo divino. O próprio Jesus Cristo
não escapa, e nem o Deus das igrejas. Buda não é exceção. Na Índia, as
divindades hindus são abordadas do mesmo modo utilitário.
“Estou pedindo a meu santo que
me consiga um emprego novo”, diz alguém. “Tenho rezado para Nossa Senhora para conseguir
que meu bilhete de loteria seja premiado no valor mínimo de um milhão de
reais”, informa outro. “Acendi uma vela a Deus para que possa comprar um carro
importado zero quilômetro até este Natal”, admite um terceiro.
Assim tem funcionado, em
parte, a religiosidade popular, ao mesmo tempo que também encontramos exemplos
do mais autêntico altruísmo e de generosidade desinteressada. Estes últimos é
que devem ser estimulados.
O arquétipo de relacionamentos
humanos baseados na busca de benefício próprio é um desafio para o crescimento
cultural dos povos. E ele se reflete
tanto na relação com o mundo considerado divino como na relação com os líderes
políticos.
O sábio indiano Ramana
Maharshi enfrentou isso na primeira metade do século 20. Ramana vivia em permanente estado de
meditação. Ele ensinava aos que estavam ao seu redor como contemplar a realidade
suprema, o verdadeiro eu. Mas, para o povo humilde da Índia, era mais fácil
adorar e homenagear a pessoa de Ramana
Maharshi do que seguir o seu exemplo e viver o seu ensinamento. Ramana tinha
que receber presentes e oferendas quase diariamente. Porém, dava escassa
atenção a estas demonstrações de devoção pessoal. Em certa ocasião, insinuou ironicamente
que estavam “tentando suborná-lo” com presentes para “obter favores” junto ao
mundo divino.
Esta mostra de impessoalidade por
parte de Ramana pode parecer frieza para quem vê a religiosidade como algo
restrito às emoções de ordem pessoal.
Parece difícil entender a
ausência de um intenso intercâmbio de emoções pessoais entre os que trilham o
caminho espiritual.
Cabe então perguntar:
“Qual é a relação real entre impessoalidade e amor universal? Por que é
necessário desapego para aprofundar a experiência da fraternidade?”
Para examinar essa questão,
vejamos alguns exemplos práticos. Imaginemos por um momento que você deixe de
lado suas tarefas rotineiras para fazer uma visita ao canil público de uma
grande cidade.
Você entra em um pavilhão mal
iluminado e vê os cachorros, todos presos em suas celas individuais. Alguns
estão deprimidos e nem olham para você. Sequer erguem a cabeça. Outros, quando
você dá atenção a eles, ganem, gritam, fazem festa, abanam tristemente o rabo, pedem
veementemente com os olhos que você os leve consigo. Você sabe que aqueles que
não forem adotados por alguém em um prazo máximo de dez dias serão mortos com
injeções letais. O poder público não tem como abrigar a todos. O relógio está
correndo para cada um deles. O que você
sente? O que você faz?
Em uma situação como esta, você
está diante de um fato inegável: o amor pessoal anda junto com o sofrimento. Você
não pode levar todos aqueles animais, e se pudesse, não poderia salvar a próxima
leva de animais que os sucederão no canil público nos próximos dias. Um canil
público é, em parte, um matadouro. Você ama os animais. Você sabe que é irmão pessoal
de todos os animais do planeta, especialmente os mamíferos. Mas você está
diante da inevitável primeira nobre verdade do Senhor Buddha: “Dukkha”, a Dor. A
vida implica sofrimento. Você não pode salvar pessoalmente aqueles seres que,
presos atrás das grades, olham você com tanta amizade e esperança. Para ser
eficaz, você precisa amá-los impessoalmente, isto é, com um amor universal, e
não apenas individual. É preciso desapego para que o amor tenha bons frutos.
Vejamos outro exemplo. Visite,
em um domingo pela manhã, um jardim zoológico. Veja o sofrimento dos animais
presos. Observe a sua angústia. Você não tem poder para eliminar o sofrimento daqueles
animais enjaulados. Para ser eficaz, sua amizade por eles terá de ser
alimentada e traduzir-se em atos em um plano não-individual, abstrato, dentro
das suas pequenas possibilidades concretas de ação. A alternativa está em ser
humilde e aceitar que podemos fazer pouco - mas que esse “pouco” é
interiormente importante.
O que dizer dos seres humanos
que sofrem? Visite um dia uma creche de crianças pobres e abandonadas. Veja a
carência emocional, observe o jeito quase desesperado como as crianças pedem
sua atenção e, se possível, a sua atenção exclusiva!
Talvez você já esteja contribuindo
para a creche com dinheiro e trabalho voluntário prático. Mas você não poderá
dar a cada uma das crianças, durante sua visita, sequer cinco por cento da atenção
que elas esperam e necessitam. Você poderá parecer frio e sem sentimentos, do
ponto de vista da experiência concreta de algumas delas, embora esteja, talvez,
fazendo o que pode por elas e por outras crianças.
Lembre das florestas ainda
hoje sendo destruídas. Você, individualmente, não poderá deter o processo de
desmatamento.
Pense nas crianças doentes nos
hospitais de cidades pobres, que funcionam sem médicos, sem enfermeiros e sem
recursos suficientes. Pense nas mulheres que fazem aborto por absoluto
desespero. Lembre dos jovens que, por completa
falta de alternativas na vida, aderem ao tráfico de drogas e à violência
urbana. Lembre das pessoas de classe média alta que lutam contra a depressão
psicológica, ou contra o uso de drogas, ou se debatem na prisão do egocentrismo
arrogante, ou ainda caem no seu oposto, o desânimo interior.
O que você pode fazer a
respeito?
É preciso constatar um fato
central: o amor pessoal é limitado e nem sempre rompe com o circuito da
ignorância e do sofrimento. O amor universal é maior. O amor universal, que é
impessoal, transcende o mundo da dor, do
desespero, e da esperança ilusória de curto prazo. Talvez valha a pena
investigar como ele nasce, e como funciona.
Vista do ponto de vista da
filosofia esotérica, a impessoalidade não é necessariamente frieza. Ao
contrário, é sabedoria. É compaixão universal. Só a devoção impessoal a um
ideal nobre permite que nossos esforços concretos em defesa dos animais, das
crianças, dos pobres, das florestas e de todos os seres exerçam uma influência
serena, duradoura e eficaz. Graças a esta visão ampla das coisas, não conhecemos
desânimo nem desespero. Para isso, porém, é recomendável buscar o caminho da
sabedoria em nosso próprio interior.
Vejamos outro exemplo positivo
vindo da vida diária. Cada vez que um administrador público ou parlamentar deixa de fazer “favores” a seus “amigos” e
parentes, ele desenvolve e preserva seu sentimento de justiça e de respeito
pelo povo como um todo. Sua boa vontade é impessoal e se traduz em termos de
dever ético. Porém, o desempregado que bate à porta do seu gabinete, no
parlamento ou na prefeitura, pode pensar erradamente que ele não tem compaixão,
é “frio” ou não é solidário.
E o que dizer da religião? Quando
Gautama Buddha viveu, ele não se dedicou a fazer favores pessoais a esta ou
aquela pessoa. Buddha mergulhou na
verdade universal e passou a dar elementos para que cada um produza
gradualmente a sua própria libertação, enquanto aprende a ajudar os outros
seres a eliminarem as causas do seu próprio sofrimento.
Suponhamos que você seja
cristão. O que diz o Jesus do Novo Testamento a alguém que lhe pede favores e
vantagens pessoais? A resposta é clara:
“Não juntem tesouros na terra, onde a traça e o caruncho
os destroem (...) mas juntem tesouros nos céus, onde nem a traça, nem o
caruncho, destroem, pois onde está o seu tesouro aí também estarão os seus
corações”. (Mateus, 6: 19-21) Os céus simbolizam os níveis superiores de
consciência, que são impessoais e por isso sagrados. É ali que está a
felicidade.
Os Mestres de Sabedoria seguem
o mesmo caminho do desapego. Queiramos ou não, este é o nosso caminho também. E
é o caminho dos povos de língua portuguesa, que são essencialmente solidários e
abertos à fraternidade universal.
O conhecimento espiritual não
pode ser comprado ou vendido, e isso por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque ele não
pertence a ninguém, assim como o ar, o
oceano, o planeta Terra ou o espaço infinito entre os astros no céu. Em segundo
lugar, o conhecimento espiritual não pode ser comprado ou vendido porque ele é inseparável
da solidariedade incondicional. No momento em que for apropriado por alguém,
deixa de ser conhecimento, e deixa de ser espiritual.
O que nós podemos fazer é
estudar o exemplo dos grandes seres e aprender com eles. Os verdadeiros sábios se
colocam a serviço de ideais nobres. Alguns deles fazem, perante a sua própria
consciência, um voto de renúncia ao egoísmo que pode ser formal ou informal, e
consciente ou inconsciente. Sob o nome de “Compromisso de Kwan Yin”, este voto
ou compromisso foi colocado pela tradição budista chinesa nas seguintes palavras:
“Nunca
irei buscar nem receber uma salvação privada individual. Jamais entrarei sozinho na paz final; mas
sempre, e em todo lugar, viverei e me
esforçarei pela libertação de cada criatura em todo o mundo.” [2]
Diz a tradição esotérica que
não há coisa melhor do que tal caminho de renúncia. É possível que isso seja
verdade, mas a hipótese deve ser examinada com calma e atenção. Será que os
sábios de todos os tempos e de todas as religiões e filosofias espirituais têm
mesmo razão ao transmitir esse ensinamento? A resposta virá naturalmente, passo
a passo.
NOTAS:
[1] “Raízes do
Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda, Companhia das Letras, edição comemorativa
70 anos, 2006, 448 pp.
[2] “Notes on the
Bhagavad-Gita”, the first seven chapters by William Q. Judge, the remaining
chapters by a student taught by him, The Theosophy Company, Los Angeles, 1986,
238 pp., ver p. 152.
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