Segundo Van Helmont
Maine de Biran

Maine de Biran (1766-1824) e Van
Helmont (1580-1644)
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Nota Editorial de 2020
Em
seu livro “A Doutrina Secreta”, Helena P.
Blavatsky
faz várias referências a Jan Baptista
Van
Helmont (1580-1644), discípulo de Paracelso
e um
autêntico místico e pensador profundo.
Na
mesma obra Blavatsky se refere
dezenas
de vezes a Paracelso (1493-1541),
precursor
do movimento teosófico moderno.
O
texto a seguir é um dos escritos de Maine de Biran
que
mostram o seu vínculo com a tradição esotérica.
(Carlos Cardoso Aveline)
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A filosofia de Van Helmont explica melhor que a
filosofia cartesiana como se tornou tão difícil para nós esclarecer ou compreender
racionalmente as nossas concepções e fazer com que a luz brilhe em nossas
trevas. Isso é algo que conseguimos bem melhor através de ações meritórias e
com a ajuda da graça divina [1] do
que através de especulações estéreis e esforços pessoais.
A contínua mistura dos atos do espírito com as
operações e modos da alma sensível nos faz compreender como o amor, que deveria
seguir sempre o conhecimento ou a percepção da beleza, impede esse conhecimento
e impede esta percepção, na medida em que ele seja apenas uma atração por
simpatia ou uma tendência orgânica ou animal. Quanto mais essa tendência da
alma sensível domina nossos afetos, mais a mente fica enevoada e se afasta do
rumo elevado. [2]
A alma, mergulhada nas trevas exteriores,
separou-se da luz eterna e da substância dessa imagem divina perdida em si
própria. Deste modo, ela perdeu sua luz natural ao querer apropriar-se dela,
como se essa luz estivesse nela ou como se ela fosse a sua fonte verdadeira e autêntica.
É por isso que ela não ouve, não quer e não ama nada mais além de si mesma, e
só a si própria. (V. Helmont, ver nota [2])
A alma não pode perceber a si mesma nem pela
razão nem pela imaginação. O espírito (mens)
não é percebido pelas sensações; no entanto, acreditamos na sua presença
interior. A fadiga e a doença não podem influenciar o espírito. O sono, a
fúria, a intoxicação, não são sintomas de algum ferimento sofrido pela alma
imortal; são apenas paixões de uma vida inferior ou da alma sensível. (V.
Helmont, p. 708, édit. apud Elzevirium.)
As operações interiores e constantes do
espírito são insensíveis, e aquilo que é sensível em si não pode ser espiritual
nem puramente abstrato.
Em todas as operações do entendimento e da
vontade, há sempre um espírito oculto que opera por sua eficácia insensível. Os
místicos pensam que este espírito age tanto mais perfeitamente pelo fato de ele
não manifestar-se por nenhum discurso nem ato próprio, e porque, absorvido em
sua fé, deixa que a ação seja de Deus.[3]
Eu tenho o sentimento constante desta diarquia
[4] em que o equilíbrio, o repouso e
a paz são extremamente raros. Ao avançar em idade, sobretudo, parece que a alma
intelectual (mens) tende mais que
nunca a ficar em sua morada própria, no âmago desta alma sensível em que ela
busca em vão - pela pura força do hábito - uma calma, uma base fixa, que ela
não encontra em tempo algum, e ainda menos neste período da vida.
Por isso eu confio demasiado nestas
disposições da alma sensível, em relação a tudo que tenho que fazer ou
empreender no nível intelectual ou moral. Eu espero por disposições melhores
para começar ou continuar; eu trabalho conforme estiver disposto, escolhendo os
temas de trabalho mais adequados à disposição da alma sensível, enquanto ela com
frequência cochila, e se agita ou fica entorpecida por causas internas, alheias
à vontade.
Isso explica a persistência e o retorno obstinado
das imagens relativas ao objeto de uma paixão [5] dominante. [6]
O Espírito Puro e a Alma Sensível
No início de um sentimento forte qualquer,
enquanto ele não chega ao ponto de absorver o eu, o indivíduo o sente
interiormente como uma força estranha a si, que se infiltra gradualmente e
tende a dominá-lo ou a colocar-se em seu lugar. É assim que, em ataques de
loucura ou de raiva, o infeliz, ainda dispondo de bom senso, pode prever o acesso;
sente que ele está chegando, e até define as precauções a serem tomadas, não
contra ele mesmo, tal como ele é neste momento, mas contra um outro ser que o substituirá.
Ele não tem meios de evitar este fato, que prevê; e o sente como algo
necessário.
Van Helmont tratou de descrever os efeitos
dessa alma sensível, que ele vê como intermediária entre o espírito (mens) e o corpo. Mas ele considera que o
espírito, embora fique retirado em si mesmo e nunca se misture com a alma
sensível, jamais pode tampouco estar totalmente separado dela (a menos que isso
ocorra por uma graça específica ou talvez em êxtase). Van Helmont considera que
o espírito preside todos os atos da alma, na medida em que ele a ajuda ou que se
faz presente; e que ele é inteiramente inerente a ela e, portanto, sempre trabalha
com ela de uma maneira implícita. Este tem sido o caso desde a queda do ser humano. [7]
Até aquele momento, o espírito (mens) vivificava diretamente o corpo, e
não havia alma sensível, ou seja, não existia uma vida intermediária entre os atos
intelectuais puros e os movimentos materiais.
Consequentemente, sem qualquer paixão ou afeto
sensível, o amor se limitava ao conhecimento do belo e do bom, e não diferia
deles. Assim, pode-se acreditar que, de acordo com essa hipótese, não havia
atração sensorial no amor dos sexos; Adão sabia o que estava fazendo ao
conceber vida; e ele tinha em vista apenas cumprir os decretos de Deus, que o
havia encarregado de multiplicar as expressões da beleza que estava impressa em
si mesmo.
A filosofia cartesiana, ao ignorar a alma
sensível e a vida intermediária, reduzindo o ser humano ao puro espírito e à matéria
sensível, nos aproxima do berço da raça humana e desconhece os primeiros
efeitos do pecado original. [8]
NOTAS:
[1] Graça divina: a energia do eu superior, da
lei divina e da alma universal, a que se tem acesso através da expansão do
carma positivo. (CCA)
[2] Quamdiu in carne
degimus, vix substantiali ac pure intellectuali intellectu utimur: sed potius
potestate phantastica, qualitate scilicet ejus vicaria. In extasi enim sœpe
obdormiunt intellectus, voluntas et memoria, solo superstite amoris actu.
(Van Helmont, “Imago Dei”, pag. 714, edit.
apud Elzevirium.) (Nota de M. de Biran)
[3] Deus, ou melhor, a lei universal (CCA)
[4] Diarquia: governo compartilhado por dois
elementos: “duumvirat”, em itálico no original em francês.
(CCA)
[5] Paixão: em filosofia clássica, sentimento.
(CCA)
[6] Fortis
perturbatio nostrœ imaginationis imaginem cudit, eamque
imprimit in sordes aliquas, ………. in
ipsum alimentum vel etiam in partem solidam et nostri constitutivam. (id) (Nota de M. de Biran)
[7] A queda do ser humano: a diferenciação dos
sexos, ocorrida na terceira raça-raiz, segundo a teosofia. Veja a obra “A
Doutrina Secreta”, de H. P. Blavatsky: “The Secret Doctrine”, volume II, p. 777. (CCA)
[8] Pecado original: a “queda do ser humano”, a
diferenciação dos sexos, a materialização completa da espécie humana, que antes
disso era mais espiritual do que física segundo Helena Blavatsky. (CCA)
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O artigo acima foi publicado nos websites associados no
dia 22 de junho de 2020. Tradução do francês: CCA. Fonte: “Oeuvres Philosophiques de Maine
de Biran”, publiée par V. Cousin,
Tome Troisième, Paris, Libraire de Ladrange, 1841, 345 pp., pp. 342-343. Título
e link do texto original: “Distinction de L’Âme Sensitive et de L’Esprit”.
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