Dois Mestres Que Partilhavam da
Divindade
Eça de Queiroz
Eça de Queiroz

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Nota Editorial:
O texto a seguir é reproduzido
do volume “A Correspondência de
Fradique Mendes”, de Eça de Queiroz,
L& PM Pocket, 2001, 206 pp.,
pp. 196-198.
Trata-se de um fragmento do capítulo
XVI.
Na década de 1970, seu conteúdo
causou escândalo e
divisão na cúpula do movimento
teosófico brasileiro.[1]
(Carlos Cardoso Aveline)
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Muito aprovo, minha estudiosa Clara, que andes lendo a [história] do divino Buda. Dizes,
desconsoladamente, que ele te parece apenas um Jesus muito complicado. Mas, meu
amor, é necessário desentulhar esse pobre Buda da densa aluvião de Lendas e Maravilhas
que sobre ele tem acarretado, durante séculos, a imaginação da Ásia.
Tal como ela foi, desprendida da sua mitologia, e na sua
nudez histórica, - nunca alma melhor visitou a terra, e nada iguala, como
virtude heroica, a “Noite do Renunciamento”.
Jesus foi um proletário, um mendigo sem vinha ou leira,
sem amor nenhum terrestre, que errava pelos campos da Galileia, aconselhando
aos homens a que abandonassem como ele os seus lares e bens, descessem à
solidão e à mendicidade, para penetrarem um dia num Reino venturoso, abstrato,
que está nos Céus. Nada sacrificava em si e instigava os outros ao sacrifício -
chamando todas as grandezas ao nível da sua humildade.
O Buda, pelo contrário, era um Príncipe, e como eles
costumam ser na Ásia, de ilimitado poder, de ilimitada riqueza: casara por um
imenso amor, e daí lhe viera um filho, em quem esse amor mais se sublimara: - e
este príncipe, este esposo, este pai, um dia, por dedicação aos homens, deixa o
seu palácio, o seu reino, a esposada do seu coração, o filhinho adormecido no
berço de nácar, e, sob a rude estamenha [2]
de um mendicante, vai através do mundo esmolando e pregando a renúncia aos
deleites, o aniquilamento de todo o desejo, o ilimitado amor pelos seres, o
incessante aperfeiçoamento na caridade, o desdém forte do ascetismo que se
tortura, a cultura perene da misericórdia que resgata, e a confiança na
morte...
Incontestavelmente, a meu ver (tanto quanto estas
excelsas coisas se podem discernir duma casa de Paris, no século XIX e com
defluxo) a vida do Buda é mais meritória. E depois considera a diferença do
ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus, diz:
“Eu sou filho de Deus, e insto com cada um de vós, homens
mortais, em que pratiqueis o bem durante os poucos anos que passais na Terra,
para que eu depois, em prêmio, vos dê a cada um, individualmente, uma
existência superior, infinita em anos e infinita em delícias, num palácio que
está para além das nuvens e que é de meu Pai!”
O Buda, esse, diz simplesmente:
“Eu sou um pobre frade mendicante, e peço-vos que sejais
bons durante a vida, porque de vós, em recompensa, nascerão outros melhores, e
desses outros ainda mais perfeitos, e assim, pela prática crescente da virtude
em cada geração, se estabelecerá pouco a pouco na Terra a virtude universal!”
A justiça do justo, portanto, segundo Jesus, só aproveita
egoistamente ao justo. E a justiça do justo, segundo o Buda, aproveita ao ser
que o substituir na existência, e depois ao outro que desse nascer, sempre
durante a passagem na Terra, para lucro eterno da Terra. Jesus cria uma
aristocracia de santos, que arrebata para o Céu onde ele é Rei, e que
constituem a corte do Céu para deleite da sua divindade; - e não vem dela
proveito direto para o Mundo, que continua a sofrer da sua porção de Mal, sempre
indiminuída. O Buda, esse, cria, pela soma das virtudes individuais, santamente
acumuladas, uma Humanidade que em cada ciclo nasce progressivamente melhor, que
por fim se torna perfeita, e que se estende a toda a Terra donde o Mal
desaparece, e onde o Buda é sempre, à beira do caminho rude, o mesmo frade
mendicante.
Eu, minha flor, sou pelo Buda. Em todo caso, esses dois
Mestres possuíram, para bem dos homens, a maior porção de Divindade que até
hoje tem sido dado à alma humana conter.
De resto, tudo isto é muito complicado; e tu sabiamente
procederias em deixar o Buda no seu Budismo, e, uma vez que esses teus bosques
são tão admiráveis, em te retemperar na sua força e nos seus aromas salutares.
O Buda pertence à cidade e ao colégio de França: no campo a verdadeira Ciência
deve cair das árvores, como nos tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina
mais que todas as folhas dos livros. Sobretudo do que eu - que aqui estou
pontificando, e fazendo pedantescamente, ante os teus lindos olhos, tão finos e
meigos, um curso escandaloso de Religiões Comparadas.
NOTAS:
[1] O presente fragmento de Eça provocou uma crise de poder na Sociedade
Teosófica de Adyar no Brasil. Publicado sob o título “Comparação Pouco Conhecida” na revista “O Teosofista”, em sua edição número um de 1977, pp. 30-31, o texto causou
profunda revolta na cúpula ritualística daquela sociedade, formada por seguidores
de Annie Besant. Em correspondência datada de 28 de abril de 1977 e dirigida ao
então presidente da seção nacional, Murillo Nunes de Azevedo, alguns dos
principais líderes do movimento teosófico adyarista expressaram a sua
“estranheza e preocupação”. Eles não podiam aceitar a publicação do texto de
Eça. O motivo da indignação era que o fragmento incluía referências a Jesus que
eles consideravam como “depreciativas, impróprias e inverídicas”. Para eles era
um absurdo inadmissível insinuar que Buda fosse mais sábio que Jesus, ou que seus
ensinamentos eram mais completos que os ensinamentos cristãos. A carta - cujo
texto revela desinformação e intolerância - ameaçava com uma cisão na
Sociedade. Entre os que a assinavam estavam dirigentes bem conhecidos como Cora
Salles, Cinira R. Figueiredo, J. Gervasio Figueiredo, Carmen Piza e Olinda
Pugliesi. Expressando a revolta da ortodoxia dos rituais besantianos, José
Hermógenes de Andrade Filho renunciou ao cargo de vice-presidente nacional em
carta datada de 29 de abril de 1977. Desde então, e até o final do seu mandato,
Murillo teve pouca influência e participação nos rumos da Sociedade no Brasil. A
história ocorre em ciclos, porém, e obedece a marés cármicas. Muitos anos mais
tarde, Murillo seria nomeado pela presidente internacional Radha Burnier para
ser responsável pela Escola Esotérica de Adyar no Brasil, tendo como seu
principal auxiliar a Sra. Olinda Pugliesi - que havia assinado a carta de 1977.
Monge budista, Murillo Nunes de Azevedo (1920-2007) foi autor de vários livros.
Cópia dos documentos relativos aos fatos narrados acima fazem parte da
biblioteca da Loja Independente de Teosofistas. Reprodução fotostática deles está
à disposição de pesquisadores que desejem estudar este notável episódio
histórico. (CCA)
[2] Estamenha - veste religiosa. (CCA)
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Em setembro de 2016, depois de
cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de
estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como
uma das suas prioridades a construção
de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
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