A Pedagogia do Caminho Espiritual
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline
Respirar é como aprender. Com o ar
puro, entram energias e conhecimentos novos. Com a saída do ar velho, morre o
passado e abre-se espaço para a vida nova.
O grande
desafio da vida é aprender o que vale a pena ser aprendido e usar bem o que
sabemos, ou pensamos que sabemos. A lei
da evolução impõe que cada um seja o tempo todo aluno e professor. Os trilhões
de seres vivos do nosso planeta formam uma grande comunidade de aprendizado.
Tudo que
há no universo evolui, e toda evolução, grande ou pequena, é um aprendizado. Há
uma inteligência do universo, segundo constatou Albert Einstein. Ela ganha
força com a evolução das galáxias. E cada pequeno pássaro individual recolhe
experiências específicas que contribuem para a sabedoria da sua espécie.
Na
humanidade, não há ninguém que não tenha algo a aprender. O sábio é alguém que
aprendeu a aprender. As pedras, o vento e a chuva ensinam lições. Pitágoras,
por exemplo, lia o futuro observando o voo dos pássaros. A mente humana amplia
a cada instante os limites do conhecido.
É
verdade que, para aprender mais rapidamente, é necessário libertar-se da prisão
dos conhecimentos acumulados. A diferença entre o cidadão que busca a sabedoria
e o sábio que atingiu a perfeição é que este último não olha o futuro com base
apenas na memória. Como Sócrates, ele sabe que nada sabe. Livre das acumulações
do passado, ele mora no vazio que é plenitude e usa apenas o conhecimento que é
necessário para cada momento. O cidadão comum, por sua vez, tem uma visão
relativamente estreita, o que dificulta o aprendizado. Aquele que possui
opiniões fixas ou tem medo de parecer ignorante não é capaz de olhar a
realidade de frente.
Platão escreveu
que aprender é lembrar algo que nossa alma imortal, de algum modo, já sabia. A
palavra técnica é anamnese. Segundo a
tradição esotérica, há algo em nós (atma) que é onisciente e pode saber todas
as coisas. A nossa curiosidade por aprender é o impulso natural por trazer para
a consciência cerebral o que está presente na alma.
Temos à
nossa disposição o conjunto dos conhecimentos e experiências acumulados pela
humanidade. O acesso a este oceano de sabedoria, no entanto, depende do grau de
evolução de cada indivíduo e da comunidade em que vive. Como a humanidade está
longe da perfeição, também há erros acumulados e, às vezes, buscando o oceano,
cai-se num pântano.
Cada
indivíduo tem acesso direto ao conhecimento acumulado da sua espécie. O mesmo
acontece no mundo animal. Uma cadela sabe cuidar do parto dos seus próprios
filhotes. Há uma onisciência latente nos
animais. A cadela rompe a placenta e liberta dela o corpo do filhote usando os
dentes e a língua com uma decisão e uma eficiência capazes de causar inveja a
qualquer médico. Ela lava, limpa e massageia com a língua cada filhote até
fazê-lo respirar, e depois atende imediatamente o próximo da ninhada.
Esse é
um exemplo entre milhares. Todos os animais, racionais ou não, possuem essa
onisciência latente. No caso humano, porém, o acesso à sabedoria comum da
espécie depende de processos culturais e psicológicos mais complexos, que às
vezes causam bloqueios.
Há alguns séculos, a espécie humana está
vivendo uma etapa individualista que, embora necessária à evolução, tem causado
grande dor. Essa experiência serve para fortalecer o indivíduo da espécie, mas
vem com uma carga de ignorância egoísta bastante expressiva. Assim, acabamos
esquecendo algo que todo pássaro, golfinho ou gato sabe: o conhecimento usado
pelo indivíduo não pertence a ele, mas a toda espécie. Mesmo sendo racionais,
podemos relembrar esse fato. Ele está inscrito em nossa alma. Toda comunidade
envolve aprendizado e uma partilha de conhecimento. Assim como o ar que
respiramos, o saber pertence a todos, e a cada um.
Quando
rompemos a ilusão da separatividade, passamos a olhar a vida com um olhar
renovado. Um dos fatores do envelhecimento mental é a perda da curiosidade. Neste
sentido o ato de envelhecer não tem
relação direta com a idade física. Um velho de 25 anos de idade pode não ter
interesse ou paciência para colocar-se como aprendiz diante da vida: um jovem
de 80 anos aprende lições momento a momento.
O mais
importante no processo de produção de conhecimento não é ensinar. É aprender e,
sobretudo, aprender a aprender.
O ato de
ensinar é inseparável da ação de aprender. Os pais eficientes aprendem enquanto
educam. O bom professor aprende enquanto ensina. O aluno atento ensina ao
participar ativamente do processo de produção e transmissão do conhecimento. Os
processos interativos emergem hoje em todas as relações sociais e não apenas
nos estabelecimentos de ensino formal. Cada vez mais, quem tem conhecimento
real se coloca como um amigo cuja função é apoiar e estimular a aprendizagem autônoma
dos grupos e indivíduos.
Paulo
Freire, o educador, propõe a pedagogia da autonomia:
“O
professor que desrespeita a curiosidade do aluno, seu gosto estético, sua
inquietude, sua linguagem (...), o professor que ironiza o aluno, que manda que
ele ‘se ponha no seu lugar’ ao mais leve sinal de rebeldia legítima (...)
transgride princípios éticos fundamentais.” Para Freire, por outro lado, o
professor que é incapaz de impor limites à liberdade do aluno comete o erro
oposto. O equilíbrio está no caminho do meio. O certo é ter autoridade e, ao
mesmo tempo, respeitar a autonomia interior do estudante. [1]
O
enfoque de Paulo Freire coincide com o ponto de vista da filosofia esotérica
clássica e com os escritos de Helena Blavatsky.
No texto “A Comunidade Planetária em 2070”, suponho que na segunda
metade do século 21 poderá reinar no sistema de educação o princípio do livre
pensamento:
“A formação pessoal será orientada pela busca do
conhecimento e não por alguma verdade estabelecida e oficial. A busca do
conhecimento será ditada pela curiosidade e pelo impulso que surge do interior
do estudante. Será reconhecida, em todos os casos, a interrelação imediata
entre os diferentes campos de conhecimento. Em todos os níveis escolares,
gradualmente, os alunos serão colocados na função de gerentes executivos de seu
próprio aprendizado, enquanto os professores assumirão o papel de assessores e
facilitadores da busca de conhecimentos, ensinando, sobretudo, a pensar e
criar.” [2]
Independentemente
da escola, a intensificação dos processos de aprendizagem autônoma já ocorre em
todas as áreas da sociedade. Nas estantes das livrarias, proliferam os manuais
do tipo “faça você mesmo”, abordando temas que vão desde a criação de animais
até a educação de filhos. O cidadão atual tem sede de conhecimento e quer
aprender por si mesmo sobre os vários aspectos da vida. Cursos de final de
semana ou por correspondência, redes de contato na Internet, associações
comunitárias e grupos espiritualistas surgem como novos âmbitos e processos de
ensino e aprendizagem. A informatização ajuda a democratizar o conhecimento,
enquanto as escolas e universidades administram a crise dos velhos métodos
convencionais.
No
século 20, Maria Montessori foi uma das primeiras vozes a erguer-se a favor de
uma nova aprendizagem. “Até aqui”, escreveu ela, “o único objetivo do educador
(...) era preparar o aluno para aquela vida social na qual mais tarde ele seria
forçado a viver. Portanto, como o objetivo principal era que ele soubesse
imitar o adulto, ele era forçado a sufocar as forças criativas do espírito sob
o manto do instinto de imitação.(...) Mas a mais humana de todas as
necessidades da criança era desprezada - a exigência do seu espírito, da sua
alma.” [3]
Desde a
primeira infância até a terceira idade, o cidadão era obrigado a agir como
membro obediente de um rebanho. Podia escolher entre um time de futebol e
outro, ou entre partidos políticos de esquerda ou direita. Nem sempre era
possível escolher entre uma igreja cristã e outra: optar entre diversas religiões
era quase sempre impossível.
Esse
tipo de liberdade não é mais suficiente. A sociedade multidimensional em que
estamos desembocando multiplica as escolhas possíveis - e as responsabilidades.
Há uma expansão incalculável do conhecimento disponível. Por que ficar com uma
só religião, se todas elas têm algo da sabedoria universal em seu interior?
A
verdade não pode mais ser institucionalizada, vendida ou controlada como antes.
A Internet provoca uma relação nas relações sociais. Uma nova rede de interações cria processos
participativos de produção e distribuição de conhecimento. As pequenas empresas
se multiplicam. As pessoas seguem cada vez mais seu coração e obedecem menos aos
jogos de aparências. Isso transforma também a vida econômica.
Para
Susan Campbell, os grupos humanos passam hoje por uma grande transição. Até
aqui, eles giravam em torno das ideias de segurança e controle. Obediência era
fundamental. A partir de agora, os grupos e instituições precisam organizar-se
como comunidades de aprendizagem. A ideia básica terá de ser a descoberta do
novo. A confiança recíproca e a autonomia são fatores decisivos.[4]
No
enfoque antigo das atividades humanas, os dirigentes resistem às mudanças
porque as veem como perturbações da ordem. Apegam-se ao que havia sido ou que
deveria ter ocorrido. Uma empresa ou instituição em decadência também valoriza
mais a aparência do que a essência. O poder dos tempos antigos é concentrado em
poucas pessoas que não sabem em quem confiar. Em compensação, na abordagem do
aprendizado-e-descoberta, proposta por Susan Campbell, os líderes da empresa ou
instituição consideram as mudanças naturais e participam delas. Não giram em
torno do passado, e valorizam mais a essência do que as aparências. Buscam a interdependência,
formam parcerias com base na geração de confiança recíproca, e compartilham a
responsabilidade e o poder.
A opção
entre luta pelo controle e a busca do aprendizado está presente
em cada relação humana. No casal, na família e no grupo comunitário ou teosófico,
pode haver abertura para o novo e para os processos de aprendizagem, ou pode
predominar a postura autossuficiente de quem pensa que não tem mais nada a
aprender e busca controlar todas as situações.
Seria um
erro, portanto, pensar que o enfoque teosófico e filosófico de Paulo Freire e
Maria Montessori é válido apenas para os processos escolares. Todas as relações
humanas estão baseadas em processos de pesquisa, ensino e aprendizagem. A produção
solidária do conhecimento e a sua utilização eticamente correta são fatores essenciais
para a construção de uma sociedade justa.
A estrutura
sutil básica da relação entre professor e aluno está presente de um modo ou de
outro em todas as relações sociais. As autoridades de um país e os empresários
que contratam trabalhadores são figuras paternais que aparecem no imaginário
coletivo como detentoras de conhecimento coletivo, isto é, como professores. Uma
relação adequada entre os cidadãos nos processos de pesquisa e uso do
conhecimento permite um sentido profundo de comunidade.
Desde o
século 20, um grande número de pensadores sociais tem afirmado que estamos em
transição para uma sociedade transparente e solidária. Entre eles estão Hazel
Henderson, Fritjof Capra, Alvin Toffler e Pitirim Sorokin, além de diversos líderes
políticos e empresariais. Nenhum deles promete uma transição suave e isenta de
traumas, porque a aprendizagem humana ainda é em grande parte involuntária e
impulsionada pelo sofrimento. Em muitas situações, só aprendemos à força: é
comum buscar satisfação pessoal e não sabedoria. Fugimos da dor, e não da
ignorância.
Pouco a
pouco, percebemos que deste modo funciona a reprodução do sofrimento e da
derrota. Na hora certa surge a luz da
compreensão e nasce a coragem para desafiar a rotina. Uma nova inteligência reconstrói
as relações sociais colocando o conhecimento a serviço da sabedoria que é
altruísta.
Essa
transição não começou ontem e não terminará amanhã.
Cada um
vê as coisas conforme o ritmo do seu próprio despertar. O processo é longo e
ocorre através de milhares de anos. Os ciclos da vida individual, assim como da
história humana, envolvem inúmeros começos, finais e recomeços. Graças à lei da
reencarnação, nada do que aprendemos em uma existência se perde. Por outro
lado, a cada momento podemos aprender mais. A prática da plena atenção muda para melhor, aqui
e agora, a relação que temos com a nossa alma imortal e com a vida como um todo.
NOTAS:
[1] “Pedagogia da Autonomia”, de Paulo Freire,
Ed. Paz e Terra, nona edição, 1998, 165 pp., ver pp. 66 e 117-118.
[2] O texto “A Comunidade Planetária em 2070”
está disponível em nossos websites associados.
[3] “The Child”, Maria Montessori, Theosophical Publishing House, Adyar,
Índia, 20 pp., ver p. 01.
[4] “Sobrevivendo ao Caos”, Susan M. Campbell,
Ed. Futura, SP, 257 pp., ver p. 39.
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O artigo acima foi publicado pela primeira vez na revista “Planeta”, de São Paulo, edição de
dezembro de 1999, pp. 29 a 35.
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Sobre o mistério do despertar individual
para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos
Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014
por “The Aquarian Theosophist”.
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