Lenda Oriental:
Quando a Verdade
Quis Apresentar-se
Diante de um Soberano
Malba Tahan

Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta
lua de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe: Quem
és?
Allahur Akbar! Allahur Akbar! [1]
Quando Deus criou a mulher criou também a Fantasia. Um
dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio
palácio em que morava o sultão Harum Al-Raschid.
Envoltas as lindas formas num véu claro e transparente,
foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras
muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas
perguntou-lhe:
- Quem és?
- Sou a Verdade! - respondeu ela, com voz firme. - Quero
falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harum Al-Raschid, o Xeique do Islã!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se
em levar a nova ao grão-vizir:
- Senhor, - disse, inclinando-se humilde, - uma mulher
desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano, o sultão Harum Al-Raschid,
Príncipe dos Crentes.
- Como se chama?
- Chama-se a Verdade!
- A Verdade - exclamou o grão-vizir, subitamente
assaltado de grande espanto. - A verdade quer penetrar neste palácio! Não!
Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A
perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra
aqui!
Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e
disse à Verdade:
- Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender
o nosso Califa. Com esses ares impúdicos não poderás ir à presença do Príncipe
dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harum Al-Raschid. Volta, pois, pelos
caminhos de Allah!
Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou
muito triste a Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo
sultão Harum Al-Raschid, cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura!
Mas...
Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação. E
a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E
havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harum Al-Raschid…
Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os
que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que
vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.
Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com
peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
- Quem és?
- Sou a Acusação! - respondeu ela, em tom severo. - Quero
falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harum Al-Raschid, Comendador dos Crentes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio,
correu a entender-se com o grão-vizir.
- Senhor - disse, inclinando-se, humilde, - uma mulher
desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso
soberano, o sultão Harum Al-Raschid.
- Como se chama?
- A Acusação!
- A Acusação? - repetiu o grão-vizir, aterrorizado. - A
Acusação quer entrar neste palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de
todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe
que não, não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de
um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor!
Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir
e disse à Verdade:
- Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes
grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo
e senhor, o sultão Harum Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de
Allah!
Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou
ainda mais triste a Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do
poderoso Harum Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol
poente.
Mas...
Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho.
E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande
palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harum Al-Raschid.
Que fez a Verdade?
Vestiu-se com riquíssimos trajes, cobriu-se com joias e
adornos, envolveu o rosto com um manto diáfano de seda e foi bater à porta do
palácio em que vivia o glorioso senhor dos Árabes.
Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua
do mês Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
- Quem és?
- Sou a Fábula - respondeu ela, em tom meigo e mavioso. -
Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão Harum Al-Raschid, Emir dos
Árabes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio,
correu, radiante, a falar com o grão-vizir:
- Senhor, - disse, inclinando-se, humilde, - uma linda e
encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo
e senhor, o sultão Harum Al-Raschid, Emir dos Crentes.
- Como se chama?
- Chama-se a Fábula!
- A Fábula! - exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. -
A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda
seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e
perfumes! Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma
verdadeira rainha!
E abertas de par em par as portas do grande palácio de
Bagdá, a formosa peregrina entrou.
E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a Verdade
conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harum Al-Raschid,
Vigário de Allah e senhor do grande império muçulmano!
NOTA:
[1] Allahur Akbar - Deus é Grande! (Malba Tahan)
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Reproduzido do livro “Minha Vida Querida”, de
Malba Tahan, Ed. Conquista, RJ, Brasil, 1956, 205 pp., ver pp. 93-98. Uma outra
versão da fábula - essencialmente igual mas com numerosas frases diferentes e
dez notas explicativas, está publicada no volume “A Arte de Ler e de Contar
Histórias”, Malba Tahan, Ed. Conquista, RJ, Brasil, 1957, 340 pp., ver pp.
9-12. A imagem com que ilustramos o conto é uma adaptação da imagem usada no livro
“Minha Vida Querida”.
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O conto “Uma Fábula Sobre a
Fábula” foi publicado nos websites associados dia 25 de novembro de 2019.
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Clique e veja os textos “Como Cai o Reinado da Mentira”, “No Tempo Em Que Os Animais Falavam”, “As Fábulas de Esopo” e “Um Elogio à Tartaruga”.
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