Os Paradoxos da
Sabedoria Suprema
Carlos Cardoso Aveline
Carlos Cardoso Aveline

É no
mínimo misterioso o texto do pequeno livro “Luz no Caminho”, o clássico da
filosofia esotérica oriental que foi publicado pela primeira vez no Ocidente durante
o século 19.
A obra tem poucas páginas e só pode ser compreendida com o uso da intuição,
porque aponta para uma sabedoria que está além das palavras.
Seu texto, parcialmente ditado a Mabel Collins por um instrutor de
filosofia esotérica, foi publicado em Londres em 1885, mas é anterior a aquele
momento. A estrutura central da obra é usada há muitos séculos pelas
escolas esotéricas orientais. Sua divulgação na Europa foi parte do
esforço teosófico por aproximar as tradições espirituais do oriente e do
ocidente, preparando e antecipando o trabalho espiritual dos séculos 20 e
21.
O ensinamento também foi em boa parte distorcido pela própria Mabel Collins,
conforme o alerta feito por Helena Blavatsky. Os erros da obra estão
assinalados pela primeira vez desde 1885 na edição luso-brasileira de 2014.
Esta é a primeira edição, em qualquer idioma, a fazer isso.
As Palavras e o
Silêncio
Todo bom livro das tradições místicas parece colocar-nos diante de algumas
perguntas básicas:
1) Qual é a importância das palavras na evolução espiritual?
2) Até que ponto elas são indispensáveis?
3) Será que o homem surgiu com a linguagem verbal e estará sempre preso a
ela?
Para a teosofia, a humanidade surgiu há longas eras em níveis de
consciência superiores aos que conhecemos. A vida e o planeta eram quase
imateriais, do ponto de vista do ser humano de hoje. Na época, a comunhão entre
as almas era tão imediata que não havia necessidade de linguagem verbal.
Bastava a percepção direta. A linguagem falada apareceu mais tarde,
inicialmente através de monossílabos que visavam dar apoio à comunicação
intuitiva.
Pouco a pouco, à medida que nossa mente se tornava afiada e que perdíamos a
percepção espiritual das coisas, surgiu uma linguagem mais complexa.
Ganhávamos a lógica dos detalhes em troca da intuição perdida. Hoje temos
uma linguagem dependente das palavras, e ela frequentemente se divorcia do
mundo espiritual, negando e ocultando a verdade interior.
A sabedoria oriental ensina que um dia nós voltaremos a aquele estado
inicial de comunhão interior que tornava as palavras desnecessárias. Mesmo na
atualidade há momentos em que alcançamos o nível intuitivo de consciência,
enxergando as coisas com o coração e não só através do cérebro. O pequeno livro
“Luz no Caminho” é um instrumento para o despertar desta percepção.
O Mistério dos
Paradoxos
Filosoficamente, um paradoxo é uma afirmação que parece dizer duas coisas
diferentes ao mesmo tempo, e requer um salto de consciência para ser
compreendida por completo, porque não vê um lado só da verdade. “Luz no
Caminho” [1] tem um estilo paradoxal, e fala mais à alma que à
consciência física. Contém palavras, mas está livre delas. Leva o leitor a um
plano da realidade em que a compreensão está além da linguagem verbal e
transcende as suas limitações. A obra fala aos dois hemisférios do cérebro
humano, o lógico e o intuitivo. Dá conselhos aparentemente contraditórios, mas
isto se deve ao fato de que a natureza do ser humano é, realmente, dual.
Vejamos
as duas primeiras regras não-numeradas do livro:
“Antes que os olhos
possam ver, eles devem ser incapazes de lágrimas. Antes que o ouvido possa
ouvir, ele deve ter perdido sua sensibilidade.” (p. 19)
As lágrimas significam as lamentações pessoais e a piedade de si mesmo. O
aprendiz que é incapaz desta emoção pode ver a realidade com clareza imparcial.
A sensibilidade egocêntrica com que normalmente percebemos a vida deve ser
abandonada. Só depois disso pode surgir a percepção superior, impessoal.
O texto prossegue:
“Antes que a voz
possa falar na presença dos Mestres, ela deve haver perdido o poder de ferir.
Antes que a alma possa erguer-se na presença dos Mestres, os seus pés devem ser
lavados com o sangue do coração.” (p. 19)
A ideia de Mestres simboliza o mundo divino dentro de nós. O estudante deve
avançar no caminho através do sacrifício da sua natureza pessoal. O sangramento
das nossas paixões e sofrimentos pessoais (coração) deve purificar os pés, que
são a nossa base e o nosso contato com a Terra e o mundo material. Assim nossa
vida será coerente e poderemos perceber a presença do mundo divino. Porém, o estudante
não necessita buscar sofrimento. O próprio ato de viver é perigoso, e o
sofrimento vem naturalmente para todo ser vivo. O que o estudante do caminho
espiritual faz é apenas colocar seus sofrimentos pessoais dentro do contexto
maior da busca da verdade, reconhecendo que toda vida é uma grande lição, e
aceitando tudo com a humildade do aprendiz. Então a purificação ocorre. E a
pureza surge com força quando desistimos unilateralmente de agredir
outros seres, seja física, emocional ou mentalmente. Temos o direito de
proteger-nos, dentro dos limites da ética, mas passamos a ser basicamente
inofensivos.
A tradição mística diz que as almas humanas saíram um dia do mundo divino e
deverão voltar a ele, mais tarde, enriquecidas pelas experiências
que acumularam no mundo externo.
“Luz no Caminho” é uma ferramenta de trabalho para os que decidem acelerar
conscientemente a volta para a casa divina. Em poucas palavras, sempre
paradoxais, as regras de “Luz no Caminho” recomendam aos discípulos:
“Mata a ambição. Mata o desejo de viver. Mata o
desejo de conforto. Trabalha como aqueles que são ambiciosos. Respeita a vida
como aqueles que a desejam. Deves ser feliz como aqueles que vivem em função da
felicidade.” (pp. 19-20)
A ambição pessoal cega o estudante. Já o medo do desconhecido pode
transformá-lo em um medroso incapaz de abrir caminhos, aceitar riscos ou
assumir responsabilidades. O desejo de conforto o leva a uma preguiça
paralisante.
Desenvolvendo o Poder do Altruísmo
O aprendiz deve estar decidido a buscar o impossível. Cabe a ele esforçar-se
com a intensidade de um egoísta, enquanto abandona a busca de comodidade e abre
mão do que é seu.
Afirma-se que em geral os egoístas têm vontade forte e buscam com todas as
forças materializar suas ilusões, enquanto os seres espirituais parecem não ter
motivação alguma e ficam parados, como se não tivessem nada para fazer ou como
se não tivessem vontade de fazer coisa alguma. Talvez seja por isso que o mundo
enfrenta tantos desafios. Os cidadãos altruístas devem ser ativos, para que o
mundo melhore com rapidez.
Como podem eles obter uma motivação para as coisas espirituais?
O que move uma pessoa são seus desejos e emoções. Diga-me o que você
deseja, e eu lhe direi quem você é. Quando purificamos nossas intenções,
alcançamos a felicidade interior. Mas cabe examinar quem está disposto a trocar
seus desejos egoístas por outros, melhores e mais puros. “Luz no Caminho”
aconselha:
“Deseja apenas aquilo
que está dentro de ti. Deseja apenas aquilo
que está além de ti.” (p. 22)
A sabedoria está dentro de nós, e também além de nós. Nossas
personalidades são apenas noções superficiais de um “eu” separado. Quando
olhamos profundamente para nós próprios vemos que não somos “alguém”. Apenas
somos. Ser “alguém” na vida é fazer o papel de um personagem construído
socialmente. Em compensação, o zen-budismo costuma perguntar a seus aprendizes,
para que meditem:
“Qual era teu nome, e qual era teu rosto, duzentos anos antes de
nasceres?”
Se olharmos para a essência dentro de nós, esqueceremos nosso pequeno mundo
pessoal. Ao olharmos para fora deste pequeno mundo psicológico, também
esqueceremos o “eu” que tem o hábito de ver a si mesmo como o único centro do
universo. Mas é preciso desejar o que está além de nós próprios.
O texto de “Luz no Caminho” prossegue:
“Deseja apenas aquilo
que é inalcançável. Porque dentro de ti está a luz do mundo - a única luz que
pode iluminar o Caminho. Se fores incapaz de percebê-la dentro de ti, será
inútil procurar fora. Ela está além de ti; porque quando a tocares terás
perdido a ti mesmo. Ela é inalcançável, porque sempre recua. Tu entrarás na
luz, mas nunca tocarás a chama.” (pp. 22-23)
A sabedoria está “além de nós” porque só podemos alcançá-la deixando de
lado o pequeno eu pessoal e ativando o hemisfério cerebral direito, sede da
intuição superior. Como ensinou São Francisco de Assis, é morrendo que se nasce
para a vida eterna. É deixando de existir para o hemisfério cerebral esquerdo,
lógico, linear e quase sempre prisioneiro do egocentrismo, que nascemos
para a consciência do hemisfério cerebral direito, que é intuitiva, criativa,
capaz de perceber simultaneamente cada instante e a eternidade inteira.
Entraremos na luz, mas nunca tocaremos a Chama, porque ela é de uma
dimensão superior à humana.
“Mata todo sentido de separação”,
diz um dos preceitos. E o instrutor que ditou a parte central da obra explica em
seguida:
“Não penses que podes permanecer
afastado do homem maldoso ou do tolo. Eles são tu mesmo, embora em uma
proporção menor que o teu amigo ou teu mestre. Mas se deixares que cresça em ti
a ideia de separação em relação a qualquer coisa ou pessoa má, ao fazer isso
criarás um Carma que te amarrará a aquela coisa ou pessoa até que a tua alma
reconheça que não pode ficar isolada.” (p. 21)
Aqui, mais um paradoxo. Ficamos presos a tudo aquilo que rejeitamos. Só
podemos libertar-nos de algo mau quando deixamos de temê-lo. A energia do
rancor nos prende àquilo de que queremos afastar-nos. A rejeição é uma forma de
apego.
O texto também ensina que todas as pessoas e situações que enfrentamos são
sempre espelhos de nós próprios, mesmo que secundários e distorcidos:
“Lembra que o pecado
e a vergonha do mundo são o teu pecado e a tua vergonha; porque tu és parte do
mundo; o teu Carma está inevitavelmente ligado ao grande Carma.” (p. 21)
O carma individual é parte do carma coletivo. Assim, o caminho espiritual
só pode ser trilhado em solidariedade com os outros seres. Isto não significa
que não devemos ser ambiciosos. O livro ensina:
“Deseja o poder
ardentemente. Deseja fervorosamente a paz. Deseja posses, acima de tudo. Mas
estas posses devem pertencer apenas à alma pura. Devem ser propriedade,
portanto, de todas as almas puras (…). Deves ansiar pelas posses que podem ser
obtidas por uma alma pura, de modo que possas acumular riquezas para aquele
espírito unificado da vida que é o teu único verdadeiro eu. A paz que deves
desejar é aquela paz sagrada que nada pode perturbar, e na qual a alma cresce
como cresce a flor sagrada nas lagoas de águas imóveis. E o poder que o
discípulo deve desejar é o poder que o fará parecer nada aos olhos dos homens.” (p. 23)
O poder que nos faz parecer nada aos olhos dos outros é a força da
alma.
A paz interior não é alterada pela maré perpétua das emoções que sobem e
descem, seguindo alegrias e tristezas de curto prazo. O caminho espiritual é
uma trilha estreita que se abre entre duas expectativas igualmente ilusórias: a
esperança do prazer, de um lado, e o medo da dor, de outro. Estes dois extremos
geram dependência emocional e sofrimento psicológico.
Um dos preceitos mais inspiradores do livro recomenda:
“Aprende a olhar
inteligentemente os corações dos homens. Desde um ponto de vista absolutamente
impessoal, pois caso contrário a tua visão estará distorcida.” (p. 34)
O indivíduo desatento olha os outros mas não os vê. Apenas projeta seus
próprios conteúdos mentais e emocionais sobre eles, porque está preocupado
exclusivamente com os seus interesses pessoais. Olhar inteligentemente as
pessoas significa muitas coisas. Uma delas é respeitar o outro pelo que
ele é, e não pelo que podemos ganhar dele.
Segue o texto:
“A inteligência é
imparcial: ninguém é teu inimigo; ninguém é teu amigo. Todos são teus
instrutores. O teu inimigo se torna um mistério que deve ser resolvido, mesmo
que para isso sejam necessárias longas eras; porque o ser humano deve ser
compreendido.” (p. 35)
Este preceito é recomendado em diferentes tradições.
O pensador clássico Plutarco escreveu um pequeno tratado intitulado “Como
Tirar Proveito dos Seus Inimigos”. No século 20, Carlos Castaneda escreveu
sobre a técnica do “pequeno tirano”, em que o aprendiz espiritual aproveita a
existência de um inimigo (o “pequeno tirano”) para observar em si mesmo os
processos do medo, do ódio, do orgulho ferido, da autoimportância, infantilidade,
etc. Os amigos quase sempre nos acostumam mal, os inimigos frequentemente nos
ensinam.
O Segredo da Vitória
“Luz no Caminho” oferece uma chave-mestra para vencer os momentos difíceis,
que são inevitáveis na caminhada espiritual.
São João da Cruz falou da “noite escura da alma”. O Jesus do Novo
Testamento fala das tentações. No Velho Testamento, a história de Jó mostra
como o bom discípulo é entregue às forças negativas para que seja testado amplamente
por elas. A tradição oriental ensina que as decisões altruístas do aprendiz são
colocadas em cheque e questionadas até que ele tenha um alto grau de pureza,
coerência, perseverança e bom senso.
Para cada pessoa, a todo momento, os testes e as “provações” serão
diferentes. Nenhum estudante está livre deles. Como, porém, podemos obter uma chave
que nos permita vencê-los? “Luz no Caminho” fala do perigo e dá um conselho
decisivo:
“Quando tiveres
encontrado o começo do caminho, a estrela da tua alma mostrará sua luz; e por
esta luz perceberás como é grande a escuridão em que ela brilha. A mente, o
coração e o cérebro permanecem escuros até que a primeira grande batalha tenha
sido vencida. Não fiques assustado nem aterrorizado por esta visão; mantém os
teus olhos fixos na pequena luz e ela crescerá.” (p. 26)
Na medida em que mantemos o pensamento concentrado no bem e nas coisas
boas, o lado saudável da vida cresce e cada sofrimento se mostra como uma
oportunidade de crescimento. Por isso o homem sábio usa seu indispensável
espírito crítico para construir o que é bom. Assim ele fica livre para ajudar
na construção de uma nova era de paz e solidariedade. Um processo que ocorre
sempre de dentro para fora, fluindo do nosso coração para o mundo ao redor.
NOTA:
[1] “Luz no Caminho”, de M.C., edição luso-brasileira com tradução, notas e
prólogo de Carlos Cardoso Aveline, The Aquarian Theosophist, Portugal, 2014, 85
pp.
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Para conhecer a teosofia original desde o
ângulo da vivência direta, leia o livro “Três
Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.

Com 19 capítulos e 191 páginas, a obra foi
publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.
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