Buscando a Felicidade na Ausência de Barulho
Malba Tahan
Depois de
oferecer-me um de seus deliciosos cigarros egípcios, o silencioso e taciturno
filósofo retomou a palavra e contou-me o seguinte:
-
Como todos sabem, tenho a velha mania de viver no silêncio. O criado que me
serve é mudo, e o único ruído que posso tolerar, por vezes, é o marulhar suave
da água no fundo do meu narguilé. Devo dizer ainda que esta casa, erguida no
centro de grande parque, foi construída por um notável arquiteto especializado
em “habitações sem ruído”. As paredes, portas, tetos, pisos e vidraças são
impermeáveis ao som.
Disponho,
além do mais, de um apartamento subterrâneo, mobilado com todo o conforto, onde
me recolho nos dias de trovoada ou temporal. Bebo água em copos de papel (o
cristal é estridente, insuportável!), só uso talheres com cabo de borracha e
minhas refeições são servidas em pratos de galalite. Detesto os pássaros que me
perturbam com seus gorjeios, mas admiro as borboletas pequeninas que voam sem
ruído!
Foi,
pois, com grande satisfação que recebi a notícia de que existia nesta cidade um
delicioso centro social denominado “Clube dos Silenciosos”, do qual podiam
participar todos aqueles que tivessem aversão ao ruído. Era exatamente o meu
caso!
Por
intermédio de um amigo, apresentei-me, com boas credenciais, candidato a um
lugar de sócio, a fim de poder frequentar livremente a confortável e magnífica
sede do Clube.
Não
sou vaidoso; mas, dada a minha indiscutível paixão pelo silêncio, estava certo,
ou melhor, certíssimo de que seria admitido, por aclamação, no “Clube dos
Silenciosos” e convidado, no fim de poucas semanas, para um cargo de prestígio
na Diretoria dessa notável agremiação.
Em
dia previamente marcado fui solenemente recebido, estando os “Silenciosos”
reunidos em Assembleia Geral. Ninguém pode avaliar o silêncio que reinava no
Clube. Basta dizer que as salas eram forradas de grossos tapetes de veludo e
aos sócios não era permitido pronunciar a menor palavra, tossir, espirrar, ou
mesmo respirar com entusiasmo fora do normal.
Na
parede principal havia um valioso quadro no qual se admirava uma singular
“Paisagem polar”. Procura o talentoso artista reproduzir na tela uma região
ideal, situada muitas léguas para além da Groenlândia, onde todos os anos,
segundo verificou o Prof. Brethazik, reina um silêncio absoluto durante um
período de seis meses! Aquela visão inesperada do País do Eterno Silêncio
deixou-me deslumbrado.
Ao
chegar ao grande salão - sem ferir o profundo silêncio que dominava - senti-me
profundamente constrangido ao notar que todos os sócios olhavam para mim,
assombrados, os olhos esbugalhados de espanto. Alguns chegaram a levar as mãos
aos ouvidos como se os atormentasse, naquele momento, uma algazarra infernal
que eles não podiam suportar!
-
Esses homens são loucos - pensei. - Aqui entrei sem causar o menor ruído e
ainda não pronunciei uma sílaba sequer! Por que insistirão eles em tapar os
ouvidos no meio deste silêncio?
Sobre
um alto estrado, forrado de cortiça clara, erguia-se uma grande mesa. A
poltrona do centro era ocupada pelo impassível Presidente e, a seu lado, tomava
lugar o secretário do clube. Procurando exprimir-me por meio de gestos - pois
não queria com o som de minha voz perturbar o delicioso silêncio do recinto -
dei a entender ao ilustre Presidente que desejaria ter a honra de ser admitido
no Clube dos Silenciosos.
Vi
repetir-se, com ligeiras variantes, aquela estranha cena que o imaginoso Padre
Blanchet descreve em seus “Apóstolos Orientais”.
O
Presidente mostrou-me um copo cheio de água, quase a transbordar, querendo de
tão simbólica maneira explicar-me que, estando o Clube com o seu número
completo, não podia admitir um novo sócio. Tomei, sem hesitar, de uma pétala de
rosa que se achava sobre a mesa, e coloquei-a delicadamente sobre a superfície
da água que enchia o copo. Todos compreenderam que eu queria, com tal gesto,
explicar que, com boa vontade, haveria ainda um lugar para mim naquele ilustre
cenáculo! O Presidente, porém, com um olhar cheio de impaciência que me
surpreendeu, despejou (e isso sem fazer o menor ruído) toda a água que enchia o
copo, deixando apenas no fundo a pétala que eu havia colocado. Isso feito
deitou o copo sobre a mesa. Compreendi, no mesmo instante, o que ele queria
significar com tal proceder: “A sua aceitação no quadro social acarretaria a
saída de todos os outros sócios, e, consequentemente, a queda e o
desaparecimento do nosso Clube!”
Retirei-me
nessa tarde do Clube sem saber como explicar o meu fracasso, pois seis horas
antes eu fora informado de que havia duas vagas entre os associados. A alegação
feita inicialmente de que o quadro do Clube estava completo não passava de uma
desculpa atenciosa de que a Diretoria havia lançado mão para recusar-me. Havia,
portanto, em relação ao meu caso, algum outro motivo muito grave que, por
delicadeza, o Presidente se abstivera de declarar na presença dos sócios.
Mas
que motivo seria esse, afinal?
Resolvido
a esclarecer aquele intrincado mistério, escrevi, nesse mesmo dia, ao
Presidente, pedindo, em termos enérgicos, uma explicação, insinuando que para a
minha recusa não podia existir pretexto ou desculpa que fosse aceitável.
Desafiei que houvesse no Clube, apesar da severidade de seus estatutos, um
“silencioso” que fosse mais apaixonado e mais intolerante do que eu na nobre
campanha contra o ruído que avassala o mundo.
O
meu criado mudo (com sapatos de sola de seda) levou a carta, escrita, aliás,
com uma pena de fabricação especial, que desliza sobre o papel liso ou áspero
sem fazer o menor ruído.
Uma
semana depois, recebi do Secretário do “Clube dos Silenciosos” uma resposta,
redigida em termos cheios de cativante gentileza, cuja leitura fez desmoronar
todas as ilusões da minha vida de silencioso. Dizia o ilustre missivista que eu
não podia ser aceito no “Clube dos Silenciosos” por ter provado, perante todos
os sócios, ser um apaixonado apreciador do detestável ruído e que, portanto,
nessas condições, jamais seria um apologista do silêncio ideal. “Pois o senhor
- acrescentava o digno Secretário dos Silenciosos - teve a coragem de vir à
sede de nosso Clube trazendo, no bolso, um desses barulhentos e infernais
relógios europeus!”…
Só
então compreendi tudo. Lembrei-me dos gestos desagradáveis de espanto e de horror
com que os “silenciosos” haviam acolhido a minha chegada ao salão de honra.
É
que entrara comigo, sem que eu pudesse perceber, o ruído, a barulhada - a
tortura enfim!
Sim,
meu amigo, é espantoso!
Para
aqueles homens habituados ao silêncio absoluto, o tique-taque do meu minúsculo
relógio de algibeira era um barulho ensurdecedor.
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O conto “O Clube dos Silenciosos” está publicado nos websites associados desde
o dia 10 de junho de 2020. Foi reproduzido do livro “Maktub!”, de Malba Tahan, 11ª Edição,
1964, Ed. Conquista, Rio de Janeiro, 220 pp., ver pp. 111-116. A ortografia foi
atualizada.
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Leia mais:
*
“Mestre Silêncio”.
*
“A Música do Silêncio”.
*
“Elogio ao Silêncio”.
*
“O Silêncio”.
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