Classificar Livros
é uma Ciência,
Mas Não
Classificá-los é uma Arte
Lin Yutang
A sra. Yao
Ying escreveu um delicioso artigo sobre o seu método de arrumar livros na sua
biblioteca, método que coincidiu tanto com o meu que, se eu já tivesse
publicado uma palavra sobre o assunto ou já a tivesse visto, a teria acusado de
furtar as minhas ideias.[1]
Escrevi, portanto, um longo
pós-escrito editorial no artigo - gostaria que os redatores escrevessem longos
pós-escritos - mostrando como a sua teoria se aproximava perigosamente da
minha. Na verdade, temos somente uma teoria comum, que é aproximadamente a
seguinte (traduzida do artigo dela):
Sem dúvida, está certo que as
bibliotecas públicas e escolares tenham um sistema de catálogo e tenham os
livros convenientemente etiquetados e classificados, de acordo com o sistema de
Dewey ou com o de Y. M. Wong. Mas isso é manifestamente impossível a um ou uma
pobre estudante, que não tem edições completas para ostentar e que muitas vezes
ocupa uma pequena casa de terraço em Xangai ou em Nanquim. Essa casa de terraço
consiste geralmente em uma sala de jantar, uma sala de visitas, dois quartos de
dormir, dois banheiros, e ele ou ela está com sorte se tem um gabinete dele mesmo
ou dela mesma (esse inconveniente gramatical existe só na tradução, e não no
original). Além disso, a pequena coleção dele ou dela é comumente do gênero
pessoal, provavelmente rica dos seus autores prediletos e deficiente nos
outros. Que deve então fazer?
Não sei como procedem os outros,
mas é este o método. (Folgo desta transição da terceira para a primeira pessoa,
porque a língua inglesa se esqueceu inexplicavelmente de distinguir um “I”
e um “my” masculinos e femininos).
O meu método é o método natural.
Por exemplo, quando um livro ou uma revista chega pelo correio na ocasião em
que me acho à secretária, deixo-os na secretária. Se, no meio da leitura, vem
uma visita, levo-os para a sala e partilho-os com o meu amigo. Quando o amigo
sai, se me esqueço de trazê-los de novo, deixo-os na sala de visitas. Mas às
vezes a conversa foi tão interessante que ainda não tenho vontade de dormir e
quero apenas repousar um pouco; então levo-os para cima e leio-os na cama. Se o
livro consegue manter o meu interesse, continuo a lê-lo, mas, se o interesse
afrouxa, posso usá-lo com proveito como travesseiro. É a isso que chamo o
método natural, que se pode mais ou menos definir “método de deixar os livros
onde estão”. Nem mesmo posso dizer que há um lugar “predileto” para os meus
livros.
A consequência lógica deste sistema
é, naturalmente, que há livros e revistas por toda parte, na cama, no sofá, na
sala de jantar, no aparador, junto da pia, no lavatório, etc., dando-nos assim
uma riqueza de impressão inatingível pelo sistema Dewey ou de Y. W. Wong.
Este sistema tem três vantagens que
o recomendam. Primeiro, há a beleza da irregularidade. Os livros assim ficam um
ao lado do outro, edições encadernadas em couro, capas de papel, chineses,
ingleses, grandes e pesados volumes e exemplares leves e artísticos, alguns com
retratos de heróis medievais, outros com jovens modernas nuas, todos misturados
numa selvagem profusão de saber, abrangendo num relance o curso inteiro da
história humana.
Em segundo lugar, há a riqueza e a
variedade de interesse. Deixo um volume de filosofia ficar ao lado de um
tratado de ciências naturais, e deixo uma brochura humorística arrimada a
alguns reformadores morais perfeitamente bem intencionados. Eles formam
verdadeiramente uma sociedade heterogênea que faz questão de conservar opiniões
divergentes e de empenhar-se, na minha imaginação, em algum caloroso debate
mitológico para divertimento meu. Terceiro, este
sistema tem a vantagem da manifesta comodidade. Por que, se a pessoa colocar
todos os livros na biblioteca, evidentemente não terá o que ler na sala de
visitas. Com este sistema posso sempre aperfeiçoar o meu espírito até mesmo no
banheiro.
Desejo apenas dizer que este é
simplesmente o meu método pessoal, e que não procuro a aprovação de outras
pessoas, nem lhes peço que sigam o meu exemplo. Escrevo isto simplesmente
porque as minhas visitas muitas vezes abanam a cabeça ou soltam um grande
suspiro quando veem como eu moro. Uma vez que não lhes perguntei, não sei se é
um suspiro de desaprovação, ou um suspiro de admiração… Mas, não me importo.
O que ficou transcrito pode servir
plenamente como um bom exemplo do ensaio familiar na China de hoje. Tem a
leveza de toque do velho ensaio chinês e a negligente facilidade do moderno. O
que se segue é uma tradução sucinta do meu longo pós-escrito editorial. Disse
eu:
Quando recebi este manuscrito, o
título atraiu a minha atenção como se alguém me tivesse furtado um grande tesouro,
e quando continuei a ler, descobri, com grande espanto, que a minha teoria
predileta sobre a colecionação e o arranjo dos livros já tinha sido descoberta simultaneamente
por um trabalhador independente. Como posso eu, portanto, deixar de dizer
alguma coisa do assunto? Sei que a leitura é uma ocupação requintada, mas,
desde que caiu sob o domínio dos registradores das universidades, degenerou em
um negócio barato, vulgar, mercantil. Colecionar livros era também um
passatempo requintado, mas agora as coisas mudaram tristemente, desde que os nouveaux
riches entraram neste ramo de negócio de antiquário. Essa gente possui
sempre obras completas deste autor e edições completas daquele escritor, encadernadas
em belo marroquim, e otimamente conservadas em lindas estantes de vidro, as
quais fazem parte do que exibem aos amigos. Mas quando olho para as estantes, nunca
há espaços vazios, nem volumes retirados, fato que mostra que estes nunca foram
tocados, exceto pelo criado para o fim de limpar e espanar. Entre as capas, não
há cantos dobrados, nem marcas de dedos, nem cinzas de cigarros deixadas cair
por acaso, nem emendas cuidadosamente escritas a lápis azul, nem folhas de
bordo, mas uma quantidade de páginas por cortar. [2]
Desse modo, parece mesmo que
colecionar livros degenerou também numa moda vulgar. Hsu Hsieh, da dinastia
Ming, escreveu um artigo, “Das Velhas Pedras Para Moer a Tinta”, em que expõe a
absoluta trivialidade de colecionar curiosidades, e agora a sra. Yiao
transportou a ideia para a colecionação de livros, e o meu coração pula de
contente. Parece que se disserdes o que realmente pensais, deve haver sempre
outras pessoas no mundo que concordam convosco.
O sistema Y. W. Wong é todo muito
bonito para as bibliotecas públicas, mas que têm elas que ver com o gabinete de
um pobre estudante? Devemos ter um princípio diferente, o indicado pelo autor
de Fou-sheng-liu-chi, a saber, o de “mostrar o pequeno no grande,
mostrar o grande no pequeno, encontrar o real no irreal e encontrar o irreal no
real”. O mencionado autor dava a sua opinião particular a respeito da casa de
um pobre estudante e do arranjo do jardim, mas o princípio vale efetivamente em
relação ao arranjo dos livros. Com a sábia aplicação deste princípio, podeis
transformar a biblioteca de um pobre estudante num verdadeiro continente
inexplorado. A minha teoria é esta:
Os livros nunca devem ser
classificados. Classificá-los é uma ciência, mas não os classificar é uma arte.
A vossa estante de cinco pés seria
um pequeno universo em si mesma. Obtém-se este efeito deixando um livro de
poemas inclinar-se sobre um jornal científico, e permitindo que uma história
policial faça companhia a um volume de Guyau. Arrumada assim, a estante de
cinco pés torna-se uma estante rica,
intrigando-vos a imaginação. Ao contrário, se a estante é ocupada por uma
coleção do Espelho da História de
Ssema Kuang, nos momentos em que não vos sentis dispostos a consultar o Espelho da História, a estante não pode
ter significação para vós, e torna-se uma pobre estante, nua até os ossos.
Todos sabem que o encanto das mulheres reside no seu mistério e na sua
dissimulação, e velhas cidades como Paris e Viena são tão interessantes porque,
depois de ali permanecerdes dez anos, nunca sabeis bem o que vai aparecer numa
rua estreita. Dá-se o mesmo com uma biblioteca. Deve nela haver aquele mistério
e aquela dissimulação que vêm do fato de que nunca estais bem certos do que
escondestes em determinada prateleira alguns meses ou anos antes.
Todos os livros devem ter a sua
individualidade e não devem ter a mesma encadernação. Por isso é que nunca quis
saber de comprar o Sse-pu-pei-yao ou o
Sse-pu-ts’ung-k’an. A individualidade
dos livros resulta em parte da sua aparência e em parte das circunstâncias da
compra. Podeis ter descoberto o volume casualmente numa pequena cidade, de
passagem por Anhui durante uma viagem de verão, ou pode alguém num leilão ter
querido oferecer maior lance do que vós pelo volume. Ora, suponde que os livros
tenham sido comprados e colocados numa estante pela ordem natural, e que tendes
necessidade de consultar a História dos Dramas de Yuan, de Wang Knowei,
um volume pequeno e fino. Partis como para uma caçada, e o procurais para cima
e para baixo, para o este e para o oeste, e, quando o tiverdes achado, tereis
realmente achado, e não apenas
tirado. Já se formaram na vossa testa algumas gotas de suor, e sentis-vos tão
feliz quanto um caçador numa jornada bem sucedida. Ou seguistes-lhe talvez a
pista até a sua toca, e, precisamente quando buscais o volume terceiro de que
precisais, verificais que desapareceu de novo. Ficais ali, paralisado um
momento, perguntando a quem o emprestastes, e soltais um grande suspiro de
pesar, como um menino de escola a quem foge o pássaro que ele quase segurou na
mão. Desta forma, pairará para sempre sobre a vossa biblioteca um véu de
mistério e de encanto, e nunca sabereis o que ides achar nela. Em suma, a vossa
biblioteca possuirá a dissimulação das mulheres e o mistério das grandes
cidades.
Faz alguns anos encontrei um
colega, professor em Tsing Hua e dono de uma “biblioteca” que consistia somente
numa estante e meia de livros, mas que estavam rigorosamente etiquetados e classificados,
de um a mil, de acordo com o sistema da Associação Bibliotecária
Norte-Americana. Quando lhe perguntei por uma história da economia, ele pôde
imediatamente dizer-me com grande orgulho, que era “580-73A”. Estava
orgulhosíssimo da sua eficiência norte-americana. Era um verdadeiro estudante
de volta dos Estados Unidos, e dizendo isso não tenho, aliás, a intenção de
elogiá-lo.
NOTAS:
[1] Publiquei
no Jen Chien Shih um artigo de Miss Yao Ying - na realidade ela é uma Mrs., mas não é Mrs.
Yao Ying, e em inglês não parece haver meio de citar o nome de uma senhora sem
revelar se é casada ou não. Há mais o inconveniente de, ao citar uma escritora
conhecida, terdes de omitir o seu primeiro nome uma vez que acrescentais a
palavra “Mrs”. Na China, pelo menos, podemos usar o termo nu-ssu sem nos
comprometermos assim, da mesma forma que podemos referir-nos a uma terceira
pessoa sem distinguir entre “ele” e “ela” - norma de igualdade sexual que só
existe na terra de Catai. Não poderíamos, pergunto eu, dirigir-nos a uma pessoa
simplesmente com um genérico “M” e desistir da nossa curiosidade de saber se é
um “ele” casado ou solteiro ou uma “ela” casada ou solteira? (Lin Yutang)
[2]
“Páginas
por cortar”. Era comum até a década de
1960 os livros serem vendidos com as páginas apenas dobradas, e não
cortadas. Impressos em folhas grandes
que incluíam até oito páginas, os volumes eram encadernados sem que as folhas
ficassem soltas. Antes de ler cada leitor devia usar uma faca ou espátula para separar as páginas. (CCA)
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O artigo acima foi publicado nos websites associados
dia 31 de julho de 2020. O texto é
reproduzido do livro “Com Amor e Ironia”,
de Lin Yutang, Irmãos Pongetti Editores, Rio de Janeiro, 1956, 304 pp., ver pp.
93-99. Em nossa transcrição, as linhas iniciais do artigo de Lin Yutang são incluídas como Nota [1]. Alguns dos parágrafos mais longos
foram divididos em parágrafos menores.
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