Lenda do Povo Araweté, do
Rio Xingu
Vera do Val

Araweté: a volta da caçada.
Foto de Eduardo Viveiros de Castro, 1982 - ISA
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Nota Editorial:
A lenda a seguir é
reproduzida do livro “A
Criação do Mundo e outras
lendas da Amazônia”,
de Vera do Val, Editora Martins
Fontes, São
Paulo, 2008, 48 pp.,
ilustrações de Geraldo Valério.
São fáceis de ver as
dimensões teosóficas da narrativa.
Em etapas anteriores, a
humanidade viveu em um plano
sutil, sem necessidade de
corpos físicos. Quando o céu
e a terra se separaram,
surgiu o sofrimento. Porém existe
a esperança de religar no
futuro o céu e a terra, tal como no
passado remoto. Há uma
ponte viva entre o humano e o divino.
Os Araweté são um povo
tupi-guarani e habitam a região média
do rio Xingu, no Pará. Embora
a população seja de poucas centenas
de pessoas, a sua grande riqueza
cultural permanece preservada.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Houve um tempo em
que o mundo era sem morte e sem trabalho. Existiam na terra os índios e os Mai,
uma tribo de imponentes homens-deuses. Não havia as roças nem o fogo; todos
colhiam o mel e as frutas.
Não
se conheciam as doenças; a velhice e a morte não existiam. A floresta era amiga
e os animais, dóceis. Durante as noites, os índios e os Mai fumavam grandes
charutos, cantavam e dançavam; não se tinha inventado a mentira e a maldade;
todos eram amigos, casavam-se entre si e viviam em harmonia.
O
chefe Mai, Ananãmi, havia se casado com uma índia. Moravam felizes em uma
aldeia ao lado de árvores cheias de frutos e cipós floridos.
Um
dia, sem motivo nenhum, a mulher de Ananãmi discutiu com ele. Levantou a voz e,
aos gritos, o insultou. O mundo todo parou surpreso. Aquilo jamais havia sido
visto.
O
grande chefe Mai percebeu então que o paraíso estava morto. Chamou seu sobrinho
Hehede, pegou seu chocalho de pajé e começou a cantar e a fumar. Foram rodeados
por toda a aldeia, que se espantou quando o solo de pedra, onde estavam os
dois, começou a subir sem parar até desaparecer nas alturas. Foi assim que
surgiu o céu.
Estava
feita a confusão na terra.
Muitos
Mai subiram com Ananãmi. O céu povoou-se de guerreiros divinos, que levaram o
paraíso com eles. As melhores plantas, os melhores animais foram viver nas
alturas. Alguns Mai subiram ainda mais alto, criando o céu vermelho que era o
céu do céu.
Abandonada
e perdendo seu suporte de pedras, a terra começou a se dissolver em água;
jacarés e piranhas esfomeados saíram dos rios e devoraram os índios. Uma tribo
Mai, que tinha ficado para trás, afundou na água e entrou terra adentro. Passou
a viver em grandes ilhas nos rios subterrâneos.
Os
índios foram desaparecendo um a um. Os que não foram devorados acabaram por
afogar-se. Só três pessoas escaparam. Dois homens e uma mulher, mais rápidos
que os demais, subiram em um pé de bacaba e de lá assistiram ao desastre.
Viriam a ser, depois, os pais de todos os índios.
Quando
as águas desceram, a terra estava diferente. Aos poucos, povoou-se de animais
ferozes; as árvores já não ofereciam tantas frutas; os sobreviventes tiveram
que passar a pescar, caçar e plantar para viver. Ananãmi teve pena deles e
mandou um pássaro vermelho para lhes ensinar a fazer fogo, plantar os roçados,
construir canoas e remos fortes. Ensinou também os pajés sobre as ervas
necessárias para curar e tratar a grande quantidade de doenças que surgiram e a
enterrar os mortos.
A
vida no céu era muito diferente da que se levava na terra. Lá as sementes
brotavam sozinhas, as frutas e o mel estavam ao alcance da mão. Ananãmi levou o
segredo da juventude, e não havia nada a fazer além de cantar, dançar e beber
cauim. Os deuses eram bonitos e altos, o corpo pintado com tinta de jenipapo de
um negro brilhante, e usavam maravilhosos cocares de penas de araras. Tudo era
feito de pedra que não estraga com o tempo. E, se o tempo não se fazia sentir ao
passar, então a vida deles era sempre presente e não existia futuro.
Na
terra existia o tempo, o envelhecer, o esperar o dia de amanhã. O futuro. Na
terra existia a esperança. Isso foi um presente de Ananãmi aos homens.
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Sobre os Araweté, veja o livro “Os Deuses Canibais”, de Eduardo Viveiros de Castro, Zahar, 1986. Edição norte-americana: “From the Enemy’s Point of View”, Eduardo Viveiros de Castro, The
University of Chicago Press, Chicago & London, 1992.
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A lenda “A Criação do Mundo”, na
versão de Vera do Val, foi publicada nos websites associados dia 04 de setembro
de 2019.
Vera do Val nasceu em Campinas, São Paulo, e é contista premiada em
diversos concursos literários. Entre
suas obras está “O Imaginário da
Floresta”.
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Leia “A Metafísica do Sanduíche” (sobre
a teosofia presente em uma lenda Carajá), “A Sabedoria Ecológica dos Indígenas”,
“O Chimarrão e a Sabedoria Pagã”,
“A Amazônia Segundo Al Gore”, “O Despertar da Amazônia” e “Meditando Pelo Despertar da Amazônia”.
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